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O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância

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16/01/2017 às 11:05
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Há a possibilidade do reconhecimento, pelo delegado de polícia, da incidência do princípio da insignificância ou da bagatela aos casos concretos que lhe são submetidos à apreciação no cotidiano policial.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva analisar a possibilidade de aplicação, já na fase pré-processual, do princípio da insignificância pela autoridade policial, que é, em nosso ordenamento jurídico, o delegado de polícia. Tal exame se faz dentro de uma ótica moderna, levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, que vincula todos os envolvidos na persecução penal, os quais devem observância aos direitos e garantias fundamentais dos investigados.

 Ao delegado de polícia, na condição de autoridade estatal, com atribuições bem delineadas na Constituição e em diplomas legais esparsos, incumbe o primeiro contato com fatos supostamente delituosos, o que ocorre quase que de imediato. Sobre ele, por vezes, recai a responsabilidade de decidir acerca da manutenção ou não de alguém no cárcere. Para tanto, deve fazer valer a natureza jurídica de seu cargo, fundamentando suas decisões à luz do arcabouço legal vigente.

Deste modo, o Delegado de Polícia, hodiernamente, não pode mais ser enxergado como aquela autoridade com traços excessivamente inquisitivos, da maneira como atuava no período ditatorial no Brasil. Em verdade, o delegado de polícia, legítima autoridade policial, detentor de carreira jurídica – como já dissemos –, nomeado após concurso público e bacharel em Direito, deve ser compreendido como o primeiro garantidor dos direitos fundamentais do cidadão, combatendo qualquer abuso contra ele perpetrado e possibilitando o exercício de suas garantias constitucionais.

Utilizando-se do inquérito policial, instrumento legítimo para a formalização das investigações preliminares, o delegado de polícia não deve apenas colher elementos que visem obter à condenação do suspeito.

Ao contrário, fazendo bom uso da discricionariedade que lhe é concedida – sempre nos limites da lei – o Delegado de Polícia deve buscar elementos de informação que objetivem que os fatos apurados no inquérito policial se aproximem, tanto quanto possível, daqueles realmente ocorridos. Para tanto, poderá levantar informações e dados que auxiliem, em eventual e futura ação penal, na defesa do investigado ou que possibilitem, até mesmo, o arquivamento do inquérito policial, evitando um processo-crime desnecessário contra aquele suspeito, que resultaria em marcas indeléveis à dignidade desse sujeito de direitos.

Por todo o exposto, se faz necessária uma detalhada análise do tema em testilha, à luz dessa moderna concepção de delegado de polícia, uma vez que a possibilidade de reconhecimento do princípio da bagatela por parte dessa autoridade estatal, traz inúmeras consequências ao investigado e à sociedade como um todo.


2. BREVES DIGRESSÕES ACERCA DA TEORIA GERAL DO CRIME

2.1. CONCEITOS DE INFRAÇÃO PENAL, CRIME E CONTRAVENÇÃO PENAL

A compreensão dos conceitos abordados no presente tópico é ponto basilar para a análise dos demais institutos jurídicos de Direito Penal, sendo essencial para assimilação da tese aventada neste trabalho. Todavia, cumpre-nos alertar que inexiste, no ordenamento jurídico pátrio, conceito de infração penal, cabendo mormente à doutrina tal definição.

Inicialmente, para Rogério Sanches Cunha (2014, p. 150), faz-se necessário apontar as notas distintivas entre infração penal, crime e contravenção penal. Para o estudioso, infração penal se trata de gênero, o qual se subdivide em crime – também denominado delito – e contravenção penal (ou crime anão, delito liliputiano ou crime vagabundo). Desta feita, conclui o autor que, no Brasil, adotou-se o sistema dualista ou binário relativamente às infrações penais e que a diferenciação entre as citadas espécies é de natureza meramente axiológica, ou seja, de valor:

Conclui-se, com isto, que o rótulo de crime ou contravenção penal para determinado comportamento humano depende do valor que lhe é conferido pelo legislador: as condutas mais graves devem ser etiquetadas como crimes; as menos lesivas, como contravenções penais. Trata-se, portanto, de opção política que varia de acordo com o momento histórico-social em que vive o país, sujeito a mutações.                       

Greco (2009, p. 141), tratando desta matéria, aponta o art. 1º da Lei de Introdução ao Código Penal como critério de distinção entre crime e contravenção. De acordo com o dispositivo mencionado, crime é “a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa”. De outra ponta, contravenção penal é, conforme o ditame legal, “a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas alternativas ou cumulativamente”.

Tal distinção é apontada por Masson (2013, p. 176) como o denominado critério legal de crime, que se relaciona intimamente com seu enfoque formal. Sob este aspecto, “crime seria toda conduta que atentasse, que colidisse frontalmente contra a lei penal editada pelo Estado” (GRECO, 2009, p. 142).

A doutrina também destaca um critério material ou substancial de crime, para o qual este é “toda ação ou omissão humana que lesa ou expõe a perigo de lesão bens jurídicos penalmente tutelados” (MASSON, 2013, p. 176). Rogério Sanches Cunha acrescenta a este conceito a ideia de que esta lesão ou perigo de lesão deva ser passível de sanção penal (2014, p. 150).

Greco (2009, pp. 142-143) exterioriza abalizada crítica concernente à insuficiência dos conceitos formal e material de crime:

Na verdade, os conceitos formal e material não traduzem com precisão o que seja crime. Se há uma lei penal editada pelo Estado, proibindo determinada conduta, e o agente a viola, se ausenta qualquer causa de exclusão da ilicitude ou dirimente da culpabilidade, haverá crime. Já o conceito material sobreleva a importância do princípio da intervenção mínima quando aduz que somente haverá crime quando a conduta do agente atentar contra os bens mais importantes. Contudo, mesmo sendo importante e necessário o bem para a manutenção e a subsistência da sociedade, se não houver uma lei pena protegendo-o, por mais relevante que seja, não haverá crime se o agente vier a atacá-lo, em face do princípio da legalidade.

Diante dessa escassez, surge o conceito analítico de crime. Toledo (1994, p. 80) o define como aquele apto “a pôr a mostra os aspectos essenciais ou os elementos estruturais do conceito de crime”. Conforme sua doutrina, a definição analítica de crime abrangeria as três notas fundamentais do fato-crime, a saber, “ação típica (tipicidade), ilícita ou antijurídica (ilicitude) e culpável (culpabilidade)”. Passaremos a analisar mais detidamente o conceito analítico de crime no tópico a seguir.

2.2. CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

Como visto, o critério analítico de crime, também denominado formal, estratificado ou dogmático, se baseia nos elementos estruturantes do crime. Tem como função a análise destes elementos ou características, as quais integram o conceito de infração penal sem que com isso importe fragmentação, haja vista ser o crime um todo unitário e indivisível; ou o agente comete o delito (fato típico, ilícito e culpável) ou o fato por ele praticado será considerado um indiferente penal (GRECO, 2009, pp. 144-145).

Destaque-se, entretanto, que ainda existe alguma dissonância na doutrina sobre quantos e quais seriam estes elementos.

Para Battaglini (1973, p. 339), o crime se compõe por quatro elementos basilares, quais sejam: fato típico, ilicitude, culpabilidade e punibilidade. Igual posição adota Basileu Garcia (apud MASSON, 2013, p. 181). Todavia, alerta Masson (2013, p. 181), adotando entendimento análogo a Juarez Tavares (1980, p. 1):

Essa posição quadripartida é claramente minoritária e deve ser afastada, pois a punibilidade não é elemento do crime, mas consequência da sua prática. Não é porque se operou a prescrição de determinado crime, por exemplo, que ele desapareceu do mundo fático. Portanto, o crime existe independentemente da culpabilidade.

Diversos autores adotam a teoria tripartida de crime, já exposta anteriormente, para a qual o crime se constitui de fato típico, ilicitude e culpabilidade. Adotam este entendimento, conforme levantamento realizado por Masson (2013, p. 181), entre outros, Nelson Hungria, Aníbal Bruno, Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Cezar Roberto Bittencourt e Luiz Regis Prado. Trata-se, pois, de posição majoritária na doutrina nacional e estrangeira (GRECO, 2009, p. 147). Destaca-se a brilhante explanação de Zaffaroni sobre este conceito de crime (1996, p. 324):

(...) delito é uma conduta humana individualizada mediante um dispositivo legal (tipo) que revela sua proibição (típica), que por não estar permitida por nenhum preceito jurídico (causa de justificação) é contrária ao ordenamento jurídico (antijurídica) e que, por ser exigível do autor que atuasse de outra maneira nessa circunstância, é reprovável (culpável).

Em posição oposta, Damásio (1994, p. 94), Dotti (2001, pp. 335-339), Mirabete (1994, p. 94) e Delmanto (1986, pp. 18-19) consideram que o conceito de crime abarca apenas os elementos fato típico e antijuridicidade, sendo a culpabilidade mero pressuposto de aplicação da pena.

    Para os renomados doutrinadores, tal teoria se confirma pela própria redação dos dispositivos do atual Código Penal. Como se vê no mencionado diploma, ao tratar das causas de exclusão da ilicitude, fala-se que “não há crime” (art. 23). De outro modo, quando o Código Penal se refere às causas de exclusão da culpabilidade, diz ser o autor “isento de pena” (MASSON, 2013, p. 183).

 Em abalizada e consistente crítica, Greco (2009, p. 147) afirma que “todos os elementos que compõem o conceito analítico do crime são pressupostos para a aplicação da pena, e não somente a culpabilidade, como pretendem os mencionados autores”. Assevera que se não houver fato típico, será impossível a aplicação de pena; de igual modo, se a conduta não for antijurídica, também não poderá ser infligida pena ao agente.

Greco conclui ainda que, “embora o Código Penal utilize essas expressões quando quer se referir às causas dirimentes de culpabilidade, tal opção legislativa não nos permite concluir que o crime seja tão-somente fato típico e antijurídico”. Para tanto, menciona exemplo em que a expressão “isento de pena” ou alguma outra parecida é, por vezes, utilizada pelo diploma penal para afastar outras características do crime ou mesmo apontar causas que impedem a punibilidade do injusto culpável, a exemplo, respectivamente, do artigo 20, §1º e do art. 181 da legislação aludida.

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Acatamos, no presente trabalho, a teoria tripartida do crime, sendo que os seus elementos serão esmiuçados, ainda que de forma sucinta, nos tópicos seguintes.

2.2.1 FATO TÍPICO: O PRIMEIRO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

Fato típico é o fato humano que se encaixa com perfeição aos elementos descritos pelo tipo penal (MASSON, 2013, p. 217). Para Rogério Sanches Cunha (2014, p. 163):

(...) pode ser conceituado como ação ou omissão humana, antissocial que, norteada pelo princípio da intervenção mínima, consiste numa conduta produtora de um resultado que se subsume ao modelo de conduta proibida pelo Direito Penal, seja crime ou contravenção penal.

Desta última definição, podemos extrair os elementos do fato típico, a saber: conduta (ou ação), resultado, nexo causal e tipicidade – os quais passaremos a analisar a seguir.

  A despeito de diversas discussões doutrinárias, que permearam a evolução do Direito Penal e as quais não interessam aos limites do presente trabalho, entendemos que o Código Penal brasileiro adotou a teoria finalista da ação. Nesse sentido, Rogério Sanches Cunha (2014, p. 175). Também acolheram a teoria no Brasil, Heleno Cláudio Fragoso, René Ariel Dotti, Damásio E. de Jesus, Julio Fabrini Mirabete e Miguel Reale Júnior (MASSON, 2013, p. 221).

A teoria finalista foi desenvolvida pelo jusfilósofo e penalista alemão Hans Welzel em meados do século XX, concebendo a conduta como “comportamento humano voluntário psiquicamente dirigido a um fim” (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 169). Para Greco (2009, p. 151):

Com o finalismo de Welzel, a ação passou a ser concebida como o exercício de uma atividade final. É a ação, portanto, um comportamento humano voluntário, dirigido a uma finalidade qualquer. O homem, quando atua, seja fazendo ou deixando de fazer alguma coisa a que estava obrigado, dirige a sua conduta sempre a determinada finalidade, que pode ser ilícita (quando atua com dolo, por exemplo, querendo praticar qualquer conduta proibida pela lei penal) ou lícita (quando não quer cometer delito algum, mas que, por negligência, imprudência ou imperícia, causa um resultado lesivo, previsto pela lei penal).

Em síntese, com base na teoria finalista, a ação deixa de ser concebida como mero processo causal para ser enfocada como exercício de uma atividade finalista Ainda, o dolo e a culpa migram da culpabilidade para o fato típico, inserindo-se, mais especificamente, na conduta (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 170).

Como consequência da conduta do agente, advém o resultado, que pode ser de duas espécies: naturalístico (ou material) e jurídico (ou normativo).

O resultado naturalístico é aquele que se dá com a alteração do mundo exterior, perceptível pelos sentidos, causada pelo comportamento do agente (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 206). De outro lado, o resultado jurídico ou normativo “é a lesão ou exposição a perigo de lesão do bem jurídico protegido pela lei penal” (MASSON, 2013, p. 229).

Insta destacar, todavia, que não são todos os crimes que possuem ou exigem resultado naturalístico. Para compreensão dessa assertiva, se faz necessário apontar as notas distintivas entre crimes materiais, crimes formais e crimes de mera conduta.

Entende-se por crime material aquele em que o tipo penal descreve conduta e resultado naturalístico, cuja ocorrência é indispensável para a consumação do delito (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 206). Em outras palavras, não há consumação do crime se não ocorrida a modificação do mundo exterior. É o que se dá, por exemplo, com o homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal.

Já nos crimes formais, também denominados de consumação antecipada, apesar de haver descrição de conduta e resultado naturalístico no tipo penal, este é dispensável para a consumação do delito, servindo como mero fator exaurimento da infração, podendo, pois, interferir no quantum da pena aplicada (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 207). Exemplifica-se com o crime de extorsão (art. 158, CP).

Ainda, nos crimes de mera conduta, há a apenas a descrição da conduta delituosa, sem sequer mencionar o resultado naturalístico, punindo-se pela simples atividade, como ocorre, por exemplo, no crime de violação de domicílio (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 207).

De outra ponta, ressalte-se que “não há crime sem resultado jurídico, pois todo delito agride bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal” (MASSON, 2013, p. 229).

Diante destes conceitos, a doutrina discute qual dos dois resultados – o naturalístico ou o normativo – é integrante do conceito de crime. Resumindo esta celeuma, Gomes e Molina (2007, p. 186) asseveram o que se segue:

Há crime sem resultado? Para a teoria naturalística sim (os crimes formais e os de mera conduta não exigem resultado naturalístico). Para a teoria jurídica ou normativa não (inexiste crime sem ofensa ao bem jurídico protegido – nullum crimen sine injuria). Somos partidários da segunda teoria, ou seja, partimos da premissa que jamais existe delito sem essa ofensa ao bem jurídico (ou seja: sem resultado jurídico desvalioso). Logo, para nós, não há crime sem resultado jurídico. Essa postura dogmática, diga-se de passagem, é a que mais coaduna com o disposto no art. 13 do       CP, que diz: ‘O resultado, de que depende a existência do crime, só é imputável a quem lhe deu causa’. Pela própria literalidade do citado diploma legal nota-se que não há crime sem resultado (jurídico).

A clássica doutrina penal que se contentava (só) com o resultado naturalístico para a existência da tipicidade já não pode prosperar. Era uma doutrina que não distinguia entre causação e imputação do delito ou mesmo entre causação e valoração (desaprovação). Só via o lado ôntico ou naturalístico (formal), não cuidava das questões atinentes à desaprovação ou imputação do fato ao seu agente (como obra dele). Preocupou-se exageradamente com a tipicidade formal, esquecendo-se da material. Atentou-se para o aspecto valorativo da norma, mas não atinou para o seu aspecto valorativo, que contempla a tutela do bem jurídico.

O terceiro elemento do fato típico corresponde ao nexo causal, também denominado relação de causalidade. Trata-se, na lição de Greco (2009, p. 217), do “elo necessário que une a conduta praticada pelo agente ao resultado por ela produzido”. Afirma o doutrinador que, caso inexistente esse vínculo, não se pode falar em relação de causalidade e, assim, o resultado não será atribuído ao agente, haja vista não ter sido ele o seu causador.

O nexo causal encontra previsão no artigo 13, caput, do Código Penal vigente, que assim dispõe:

Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou a omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

A parte final do dispositivo mencionado revela a adoção, pelo Código Penal, da teoria da equivalência dos antecedentes causais (teoria da equivalência das condições, teoria da condição simples, teoria da condição generalizadora ou da conditio sine qua non). Para os defensores desta tese, todos os fatos que antecedem ao resultado se equivalem, desde que sejam indispensáveis a sua ocorrência (GRECO, 2009, p. 220).

Entretanto, existindo inúmeros fatos anteriores a um resultado, Rogério Sanches Cunha (2014, p. 211) alerta faz um alerta acerca da aplicação prática da teoria da equivalência das condições:

Deve-se somar à teoria da conditio sine qua non o método ou teoria da eliminação hipotética dos antecedentes causais. Idealizado pelo professor sueco Thyrén, em 1894, este método é empregado no campo mental da suposição ou da cogitação: causa é todo fato que, suprimido mentalmente, o resultado não teria ocorrido como ocorreu ou no momento em que ocorreu.

No mesmo sentido, Greco (2009, p. 220) assevera que “se, suprimido mentalmente o fato, vier a ocorrer uma modificação no resultado, é sinal de que aquele é causa deste último”.

Por fim, Rogério Sanches Cunha (2014, p. 212) afirma que a teoria em estudo tende a regressar ao infinito na busca das causas, sendo, por isso, objeto de críticas. Entretanto, assevera que para se chegar à imputação do crime, se faz indispensável perquirir a causalidade psíquica, indagando-se se o agente agiu com dolo ou culpa para a produção do resultado delituoso.

Destaque-se que há diversos outros aspectos que poderiam ser analisados acerca do nexo de causalidade. Todavia, para direcionamento do tema da presente pesquisa, consideramos suficientes este breve escorço, sem qualquer objetivo de esgotamento da matéria.

Partimos, neste momento, para uma breve análise do último elemento do fato típico, a saber, a tipicidade, cuja compreensão é essencial para a validação da tese defendida no presente trabalho.

Para Rogério Sanches Cunha (2014, p. 224), a compreensão acerca da tipicidade penal tem evoluído conjuntamente com o Direito Penal.

Destaca o professor que a teoria tradicional concebia a tipicidade sob o aspecto meramente formal – deste modo, a tipicidade era definida como a mera subsunção do fato à norma penal.

Continua afirmando que, dentro de uma perspectiva moderna, a tipicidade penal passou a se compor pela tipicidade formal e pela tipicidade material. Assim, deixou de ser apenas a subsunção do fato à norma, “abrigando também juízo de valor, consistente na relevância da lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado”.

Mais modernamente, surge a teoria da tipicidade conglobante, desenvolvida por Zaffaroni. Como explica Masson (2013, p. 255), para essa teoria, a tipicidade penal resulta na soma da tipicidade formal (ou legal) com a tipicidade conglobante. Para o autor:

(...) a tipicidade conglobante (antinormatividade) é a comprovação de que a conduta legalmente típica está também proibida pela norma, o que se afere separando o alcance da norma proibitiva conglobada com as demais normas do sistema jurídico.

(...)

Não basta, pois, a mera tipicidade legal, isto é, a contrariedade do fato à lei penal. É necessário mais. A conduta do agente, contrária à lei penal, deve violar todo o sistema normativo. Em suma, deve ser antinormativa.

Estes são os principais aspectos do fato típico cuja análise é necessária para o desenvolvimento do presente trabalho. Ressalte-se, mais uma vez, a falta de intenção de esgotar o assunto, o que fugiria dos limites desta pesquisa.

2.2.2. ANTIJURIDICIDADE: O SEGUNDO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

A antijuridicidade ou ilicitude deve ser concebida como a relação de contrariedade entre a conduta do agente e o ordenamento jurídico como um todo (não somente em relação ao direito penal), conforme lição de Greco (2009, p. 157).

Zaffaroni e Pierangeli (2009, pp. 540-541), em acertada explanação acerca do tema, aduzem:

Devemos ter presente que a antijuridicidade não surge do direito penal, mas de toda a ordem jurídica, porque a antinormatividade deve ser neutralizada por uma permissão que pode provir de qualquer parte do direito: assim, o hoteleiro que vende a bagagem de um freguês, havendo perigo na demora em acudir a justiça, realiza uma conduta que é típica do art. 168 do CP [apropriação indébita], mas que não é antijurídica, porque está amparada por um preceito permissivo que não provém do direito penal, mas sim do direito privado (art. 1470 do CC/02).

A antijuridicidade é, pois, o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa de preceitos permissivos.

O método, segundo o qual se comprova a presença da antijuridicidade, consiste na constatação de que a conduta típica (antinormativa) não está permitida por qualquer causa de justificação (preceito permissivo), em parte alguma da ordem jurídica (não somente no direito penal, mas tampouco no direito civil, comercial, administrativo, trabalhista, etc.).

Insta destacar que, conforme doutrina majoritária, em relação à antijuridicidade, o Brasil adotou a teoria da indiciariedade ou da ratio cognoscendi. Para esta tese, provada a tipicidade, há indícios de ilicitude. Deste modo, em matéria probatória, o ônus sobre a existência da causa de exclusão da ilicitude é, em regra, da defesa, salvo se houver dúvida razoável sobre a existência desta, quando o réu deverá ser absolvida, nos termos do artigo 386, VI, parte final do Código de Processo Penal (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 233).

Conforme lição de Olivé (2011, pp. 385-386), as causas excludentes da ilicitude se encontram espalhadas por todo o ordenamento jurídico. Entretanto, suas regras básicas estão anotadas no Código Penal, especialmente (e não exclusivamente), no artigo 23, que assim anuncia: “não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”.

Também é possível se falar em causas supralegais de excludente da ilicitude, a despeito de algumas divergências doutrinárias. No Brasil, aceita-se, pacificamente, apenas o consentimento do ofendido como espécie desta categoria (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 235).

A seguir, passaremos a analisar, de forma resumida, as descriminantes previstas no artigo 23 do Código Penal, bem como o consentimento do ofendido.

O estado de necessidade encontra conceituação legal no artigo 24 do Código Penal, consoante transcrição literal abaixo:

Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fasto para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

Segundo Rogério Sanches Cunha (2014, p. 235), o estado de necessidade remete à ideia de sopesamento de bens diante de uma situação adversa de risco de lesão. Desta feita, se houver dois bens em perigo, “permite-se que seja sacrificado um deles, pois a tutela penal, nas circunstâncias do caso concreto, não consegue proteger a ambos”.

O doutrinador enumera os requisitos objetivos para que seja constatado o estado de necessidade, a saber: perigo atual; que a situação de perigo não tenha sido voluntariamente causada pelo agente; a salvaguarda de direito próprio ou alheio; a inexistência de dever legal de enfrentar o perigo; a inevitabilidade do comportamento lesivo e a inexigibilidade de sacrifício do interesse ameaçado. Acresce também o requisito subjetivo de conhecimento da situação de fato justificante.

A legítima defesa também possui conceituação legal, desta vez no artigo 25 do Código Penal, como se vê:

Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Greco (2009, p. 340), explorando o conceito de legítima defesa, ressalta que para que se possa alegar a legítima defesa, faz-se necessário que o agente se veja diante de uma situação de total impossibilidade de se recorrer ao Estado, bem como esteja presentes os requisitos legais objetivos e subjetivos. Se de outro modo ocorrer, não há que se falar em legítima defesa, mas sim, em vingança privada.

A doutrina, quase que reproduzindo o dispositivo legal, elenca como requisitos objetivos e cumulativos da legítima defesa: a ocorrência de agressão injusta; que tal agressão seja atual ou iminente; que esta agressão seja contra direito próprio ou alheio; que sejam empregados os meios necessários para repelir esta agressão e que estes meios sejam moderadamente empregados (MASSON, 2013, p. 414).

Rogério Sanches Cunha (2014, p. 244) acrescenta ainda um requisito subjetivo, qual seja, que o agente conheça as circunstâncias do fato justificando, demonstrando ter ciência de que está agindo diante de um ataque atual ou iminente.

Ao contrário do que se dá com o estado de necessidade e a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal não possui conceituação legal, apesar de expressamente previsto no art. 23 do diploma penal. Deste modo, cabe à doutrina a sua definição.

Greco (2009, p. 370), em brilhante explanação acerca da excludente do estrito cumprimento do dever legal, assevera:

Primeiramente, é preciso que haja um dever legal imposto ao agente, dever este que, em geral, é dirigido àqueles que fazem parte da Administração Pública, tais como os policiais e oficiais de justiça, pois que, conforme preleciona Juarez Cirino dos Santos, “o estrito cumprimento de dever legal compreende os deveres de intervenção do funcionário na esfera privada para assegurar o cumprimento da lei ou de ordens de superiores da administração pública, que podem determinar a realização justificada de tipos legais, como a coação, privação de liberdade, violação de domicílio, lesão corporal, etc.”. Em segundo lugar, é necessário que esse dever se dê nos exatos termos impostos pela lei, não podendo em nada ultrapassá-los.

Também inexiste conceito legal para a excludente do exercício regular de direito. Rogério Sanches Cunha (2014, p. 246) afirma que esta causa “compreende condutas do cidadão comum autorizadas pela existência de direito definido em lei e condicionadas à regularidade do exercício desse direito”. O autor apresenta como requisitos desta justificante a proporcionalidade, a indispensabilidade e o conhecimento do agente de que atua concretizando seu direito previsto em lei.

Por fim, cumpre-nos analisar o consentimento do ofendido, como causa supralegal de excludente de ilicitude, amplamente aceita pela doutrina e pela jurisprudência. Para que este tenha aplicabilidade, Rogério Sanches Cunha (2014, pp. 248-249) apresenta seus requisitos, de forma extremamente didática: a) o dissentimento não pode ser elementar do tipo (assim como ocorre no crime de violação domicílio, e.g.); b) o ofendido tem que ser capaz; c) o consentimento deve ser válido; d) o bem deve ser disponível; e) o bem deve ser próprio; f) o consentimento deve ser prévio ou simultâneo à lesão ao bem jurídico; g) o consentimento deve ser expresso; h) o agente deve ter ciência da situação de fato que autorize a justificante.

2.2.3. CULPABILIDADE: O TERCEIRO ELEMENTO DO CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME

Conforme Cury Úrzua (1992, p. 7), “a culpabilidade deve ser concebida como reprovação, mais precisamente, como juízo de reprovação pessoal que recai sobre o autor, por ter agido de forma contrária ao Direito, quando podia ter atuado em conformidade com a vontade da ordem jurídica”.

Imperioso se faz relembrar que, para a corrente bipartida, a culpabilidade não é substrato do crime, mas mero pressuposto de aplicação da pena. É a posição adotada por Masson, por exemplo (2013, p. 454).

De outro lado, cumpre-nos repisar que adotamos, no presente trabalho, a corrente tripartida, que considera a culpabilidade como terceiro elemento do conceito analítico de crime.

Superando eventuais discussões acerca das teorias da culpabilidade, as quais não interessam aos limites desta pesquisa, passaremos a analisar os quatro elementos que compõem a culpabilidade, a saber: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 258).

A imputabilidade deve ser compreendida como a possibilidade de se atribuir, imputar fato típico e ilícito ao agente; a imputabilidade deve ser regra, enquanto a inimputabilidade exceção (GRECO, 2009, p. 395). Para Sanzo Brodt (1996, p. 46):

A imputabilidade é constituída por dois elementos: um intelectual (capacidade de entender o caráter ilícito do fato), outro volitivo (capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento). O primeiro é a capacidade (genérica) de compreender as proibições ou determinações jurídicas. Bettiol diz que o agente deve poder ‘prever as repercussões que a própria ação poderá acarretar no mundo social’, deve ter, pois, ‘a percepção do significado ético-social do próprio agir’. O segundo, a ‘capacidade de dirigir a conduta de acordo com o entendimento ético-jurídico. Conforme Bettiol, é preciso que o agente tenha condições de avaliar o valor do motivo que o impele à ação e, do outro lado, o valor inibitório a ameaça penal.

O Código Penal, a despeito de deixar a cargo da doutrina a conceituação de imputabilidade, enumera hipóteses de inimputabilidade, que estudaremos a seguir. Tais hipóteses são causas excludentes da culpabilidade, também denominadas dirimentes.

A inimputabilidade pode se dar por anomalia psíquica, conforme previsto no art. 26, caput, do diploma penal. Deste modo, se impossibilita a imputação daquele que “por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.

Adota-se, na hipótese supra, o critério biopsicológico, ou seja, não basta ser portador de anomalia psíquica para ser inimputável, devendo esta anomalia se manifestar de maneira a comprometer a autodeterminação ou a capacidade intelectiva do agente (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 259).

Também são inimputáveis os menores de 18 (dezoito) anos, consoante redação do art. 27 do Código Penal e previsão no art. 228 da Constituição Federal. Aqui, trabalha-se com o critério biológico, que leva em conta apenas o desenvolvimento mental do agente, dispensando-se a análise da capacidade de entendimento ou autodeterminação.

Trata-se, pois, de uma presunção absoluta de que o menor de dezoito anos possui desenvolvimento mental incompleto, motivo pelo qual se submete ao Estatuto da Criança e do Adolescente. (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 261).

Por fim, a embriaguez também pode levar à inimputabilidade do agente. Entretanto, para que isto ocorra, esta deve ter se dado por caso fortuito ou força maior, ser completa ao tempo da ação ou da omissão, bem como retirar inteiramente a capacidade intelectiva ou volitiva do agente (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 263). Atendidos estes requisitos, a embriaguez isenta o agente de pena, nos termos do art. 28, §1º, do Código Penal.

O segundo elemento da culpabilidade denomina-se potencial consciência da ilicitude e representa, segundo Rogério Sanches Cunha (2014, p. 266), a possibilidade que tem o agente imputável de compreender a reprovabilidade da sua conduta. Bittencourt (2012, p. 463), explorando o conceito, expõe o que se segue:

Com a evolução do estudo da culpabilidade, não se exige mais a consciência da ilicitude, mas sim a potencial consciência. Não mais se admitem presunções irracionais, iníquas e absurdas. Não se trata de uma consciência técnico-jurídica, formal, mas da chamada consciência profana do injusto, constituída do conhecimento da antissocialidade, da imoralidade ou da lesividade da conduta.

A dirimente da potencial consciência da ilicitude é o denominado erro de proibição, que encontra guarida legal no art. 21, do Código Penal. Segundo o dispositivo, “o erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço”.

Rogério Sanches Cunha (2014, p. 267) apresenta duas situações em que incidem o erro de proibição e, consequentemente, afastam a potencial consciência da ilicitude, quais sejam: a) o agente ignora a lei e a ilicitude do fato e b) o agente, apesar de conhecer a lei, ignora a reprovabilidade da conduta. Em ambas as hipóteses, se o erro foi inevitável, excluir-se-á a culpabilidade; se evitável, reduzir-se-á a pena.

O último elemento da culpabilidade é a exigibilidade de conduta diversa. Pedroso (2008, p. 569) traz à baila breve explanação acerca do tema:

O cometimento de fato típico e antijurídico, por agente imputável que procedeu com dolo ou culpa, de nada vale em termos penais se dele não era exigível, nas circunstâncias em que atuou, comportamento diferente. Não se pode formular um juízo de censura ou reprovação, destarte, se do sujeito ativo era inviável requestar outra conduta.

Como causas excludentes ou dirimentes deste elemento da culpabilidade, o art. 22 do Código Penal traz a coação irresistível e a obediência hierárquica. Se a coação for moral e irresistível ou o agente obedecer ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico, em seus estritos termos, restará descaracterizada a exigibilidade de conduta diversa e, por isso, inexistirá culpabilidade (ROGÉRIO SANCHES CUNHA, 2014, p. 272-4).

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Sobre o autor
Rafael Faria Domingos

É Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processo Penal com Capacitação para Docência no Ensino Professor. Professor do Centro Universitário UNIFAFIBE (Bebedouro/SP) e do Centro Universitário UNIFEB (Barretos/SP), onde ministra a disciplina de Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGOS, Rafael Faria. O delegado de polícia frente ao princípio da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4947, 16 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55049. Acesso em: 21 nov. 2024.

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