5. Do artigo 1830 do Código Civil
Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do sobrevivente, é o que dispõe o artigo 1830 do novo Código.
Silvio Rodrigues preleciona:
[...] a lei exige, para afastar o cônjuge da sucessão, esteja o casal desquitado ou divorciado. Assim, a despeito dos separados de fato, cada qual vivendo em concubinato com terceiro, a mulher herda do marido e este dela se morrerem sem testamento e sem deixarem herdeiros necessários 24.
Primeiramente, devemos considerar a possibilidade de uma pessoa separada judicialmente, ou separada de fato há mais de dois anos, vir a constituir uma união estável. Configurada tal união e tendo os companheiros adquirido bens na constância da união estável, resta-nos a dúvida de como proceder para que não haja uma confusão patrimonial. Nesse diapasão, entendemos que a questão temporal (dois anos), disciplinada pelo legislador, deve ser repensada para que conseqüências desastrosas possam ser evitadas.
O cônjuge nesta situação pode concorrer com descendentes, ascendentes, ou até mesmo com eventual companheiro do de cujus, ainda que o requisito temporal (dois anos de separação) tenha por escopo tentar evitar essa situação 25.
6. Da sucessão e da união estável
Analisaremos brevemente a questão da sucessão quando se tratar de união estável, iniciando com o disposto no artigo 1790 do Código Civil:
A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes:
I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;
IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
Como podemos perceber, o tratamento dispensado ao companheiro quando versa sobre direito sucessório é distinto daquele que estudamos anteriormente.
Não podemos confundir cônjuge com companheiro, mesmo que haja uma evolução constante no sentido do aprimoramento dos direitos deste. Vale ressaltar que não falamos em concorrência quando nos referimos aos companheiros e sim em herança.
7. Da interpretação do artigo 1829, inciso I, do Código Civil
A chave de toda a problemática encontra-se configurada em um simples sinal de pontuação, o ponto e vírgula, que tem por finalidade indicar uma pausa mais forte do que a da vírgula e menos forte do que a do ponto final.
O sinal de pontuação, que deveria esclarecer, tem tido efeito diverso, complicando a interpretação que cabe aos operadores do direito.
Primeiramente, é importante identificar qual a intenção do legislador ao estabelecer o instituto da concorrência, ou seja, delimitar o alvo da proteção.
Em análise às alterações sofridas pelo Código Civil, vislumbramos que o cônjuge foi beneficiado em detrimento dos descendentes e ascendentes, o que, com certeza, dará ensejo a divergências, assoberbando de trabalho (ainda mais) o Poder Judiciário.
Enquanto a norma não se revestir da clareza necessária para sua aplicação sem questionamentos, o operador do direito utilizará a interpretação com o intuito de afastar a obscuridade ou a ambigüidade. Nesse diapasão, quanto à norma estudada, apenas resta-nos fazer uma sensata interpretação, visando a identificar qual o seu real alcance, ou, em outras palavras, qual o espírito da lei 26.
Especificamente quanto à interpretação do artigo 1829, inciso I do Código Civil, apresentaremos, a seguir, alguns entendimentos.
Hironaka nos ensina:
[...] não será chamado a herdar o cônjuge sobrevivo se casado com o falecido pelo regime da comunhão universal de bens (arts. 1667. a 1671 do atual Código Civil), ou pelo regime da separação obrigatória de bens (arts. 1687. e 1688, combinado com o art. 1641). Por fim, aqueles casais que, tendo silenciado quando do momento da celebração do casamento, optaram de forma implícita pelo regime da comunhão parcial de bens, fazem jus à meação dos bens comuns da família, como se de comunhão universal se tratasse, mas passam agora a participar da sucessão do cônjuge falecido, na porção dos bens particulares deste. Pode-se concluir, então, no que respeita ao regime de bens reitor da vida patrimonial do casal, que o cônjuge supérstite participa por direito próprio dos bens comuns do casal, adquirindo a meação que já lhe cabia, mas que se encontrava em propriedade condominial dissolvida pela morte do outro componente do casal e herda, enquanto herdeiro preferencial, necessário, concorrente de primeira classe, uma quota parte dos bens exclusivos do cônjuge falecido, sempre que não for obrigatória a separação completa dos bens [27].
Há doutrinadores que defendem que há concorrência na hipótese de casamento sob os regimes da separação voluntária de bens, no da participação final nos aqüestos e também no da comunhão parcial de bens, não deixando o de cujus bens particulares. Sejismundo Contija encontra-se entre tais estudiosos:
[...] o cônjuge só participa da sucessão em concorrência com descendentes na hipótese do regime de bens: a) não ser o da separação legal, b) não ser o da comunhão universal ou c) ser o da comunhão parcial mas inexistir bens particulares (ou seja, quando todos bens constituírem patrimônio comum, não deixando o falecido bens que sejam só dele) - art. 1.829, I [28].
A ilustre desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, preleciona:
Primeiro, a lei exclui o direito de concorrer de forma incondicionada, pela simples identificação do regime de bens (comunhão universal ou separação obrigatória). Ao depois, prevê outra hipótese (o regime da comunhão parcial), mas limita a concessão do direito à inexistência de bens particulares. Na terceira exceção, portanto, é excluído o direito de concorrência exclusivamente no caso de haver bens particulares. É o que diz a lei: (a sucessão legítima defere-se)... aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente, [...] se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. [...] A interpretação desse intrincado e pouco claro dispositivo legal não pode ser outra, sob pena de se subverter o próprio regime de bens eleito pelas partes. Os nubentes, ao optar pelo regime da comunhão parcial (isto é, ao não firmar pacto antenupcial), quiseram garantir a propriedade exclusiva dos bens particulares havidos antes do casamento, assim como dos recebidos por doações ou herança [29] (Grifo nosso).
A mesma autora continua:
Admitir possibilidade diversa, ou seja, que existe uma dupla negação em tal dispositivo legal, pelo uso das expressões "salvo se" e "ou, se" e sustentar o direito à concorrência somente se existirem bens particulares, é subverter o regime da comunhão parcial de bens; é atentar contra a vontade dos cônjuges; é afrontar a lógica a que deve sempre se ater o intérprete. Necessário visualizar a lei dentro do sistema, o artigo dentro da lei, e não se apegar a exacerbado tecnicismo formal, na tentativa de entender a lógica gramatical do que está escrito [30].
Tal entendimento é natural, posto que o regime de comunhão parcial de bens delimita a vontade do casal em relação aos bens anteriores ao casamento, porém, de outro lado, outros autores prelecionam que há concorrência na hipótese de casamento sob os regimes da separação convencional de bens, participação final nos aqüestos e comunhão parcial de bens; nesta última hipótese, condicionam-na à existência de bens particulares.
Nesse sentido, Sylvia Maria Mendonça do Amaral afirma:
Também é preciso esclarecer que o cônjuge sobrevivente só irá concorrer com os descendentes e com os ascendentes conforme o regime de bens do casamento, não podendo haver a concorrência se o casamento foi celebrado sob o regime da i) comunhão universal de bens; ii) da separação obrigatória de bens e ii) da comunhão parcial de bens, se o falecido não houver deixado bens particulares, aqueles adquiridos com seus próprios e exclusivos recursos [31].
Fernanda de Souza Rabello, no mesmo sentido, preceitua:
[...] Assim, se impõe que a interpretação seja realizada parte à parte. A primeira conclusão que se extrai da disposição legal é que o cônjuge só poderá herdar, em concorrência, quando o falecido deixou patrimônio particular, isto é, bens adquiridos antes da união. Logo, se o falecido não possuía bens particulares o cônjuge não herda, só recebe a meação. Isto demonstra claramente o caráter protetivo do instituto 32.
Podemos concluir que, diante das ressalvas legais, somente nas hipóteses de regime da separação convencional de bens; comunhão parcial, existindo bens particulares do falecido; e de participação final nos aqüestos, o cônjuge sobrevivente herdará em concorrência com os descendentes, mas sempre sobre os bens particulares do falecido 33.
Havendo descendentes, e sendo o de cujus casado sob o regime de comunhão parcial, o cônjuge sobrevivente só será herdeiro em relação aos bens particulares daquele. Desta forma, nada herdará se não houver bens particulares. Sendo o cônjuge sobrevivente ascendente dos descendentes do de cujus, a sua quota não poderá ser inferior à quarta parte da herança 34.
Luiz Felipe Brasil Santos, desembargador do TJRS, questiona quanto à matéria:
Imagine-se, primeiramente, a situação de um casal, com um filho, cujo único patrimônio seja constituído pelo apartamento onde reside (no valor de R$ 99.000,00) adquirido na constância do casamento [...]. Admitamos, agora, que, além desse apartamento, o autor da herança fosse proprietário de uma bicicleta (no valor de R$ 1.000,00), que, por ter sido adquirida em sub-rogação de um bem pré-existente ao casamento, constitui bem particular (art. 1.659, II). Nessa hipótese, existindo bem particular, o cônjuge concorrerá com o descendente, em igualdade de condições, recebendo, portanto, – além de sua meação sobre o apartamento (R$ 49.500,00) – a título de herança, a metade de todos os bens deixados pelo "de cujus", ou seja, mais R$ 25.500,00. O total dos bens que caberão ao cônjuge sobrevivente (meação + quinhão hereditário) corresponderá, neste segundo caso, a R$ 75.000,00, ficando o filho com R$ 25.000,00. Não é demasia frisar que a circunstância de existir um singelo bem particular – mesmo de ínfimo valor – definirá a condição de herdeiro concorrente do cônjuge não apenas sobre esse bem particular, mas sobre o total da herança. Outra não é a conclusão que se extrai do texto expresso em exame, que se reforça ainda mais com o que dispõe o artigo 1.832, que assegura ao cônjuge, quando concorrer com descendentes comuns, à quarta parte da herança [...] Como se vê, o novo regramento do direito sucessório dos cônjuges, embora se reconheça a justiça do espírito protetivo que o inspira, ostenta grande complexidade, que certamente gerará um acirramento das disputas travadas no âmbito dos inventários, com a conseqüente ampliação dos prazos para encerramento desses feitos, já hoje tão dilatados 35.
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery se posicionam da seguinte forma:
[...] herda o cônjuge sobrevivente casado pelo regime da comunhão parcial (CC 1658 a 1666), na hipótese de o morto ter deixado bens particulares [...]. Ou seja: havendo descendentes, sendo o cônjuge sobrevivente casado sob o regime da comunhão parcial e tendo o morto deixado bens particulares, o cônjuge sobrevivente é herdeiro necessário, em concorrência com os descendentes do falecido. No caso de haver apenas herdeiro ascendente, o cônjuge sobrevivente casado sob o regime da comunhão parcial é herdeiro em concorrência com os mesmos ascendentes do de cujus 36 .
Luiz Felipe Brasil Santos, comentando o artigo da desembargadora Berenice Dias, conclui:
De acordo com o que esclarece o prof. Miguel Reale a razão determinante da concorrência do cônjuge com os descendentes, no regime da comunhão parcial, é justamente prevenir o desamparo em que ficaria o cônjuge sobrevivente na eventualidade de o autor da herança haver deixado apenas bens particulares, circunstância em que, não fosse a regra da concorrência, o sobrevivente, que não teria direito à meação, não seria também herdeiro, ficando desta forma inteiramente desprotegido (salvo, é claro, a hipótese de ser contemplado em testamento). Por esse motivo é que lhe foi assegurado direito a concorrer com os descendentes, como herdeiro dos bens particulares. Assim, é certo, com a devida vênia, que a concorrência somente se justifica quando há bens particulares, e não ao contrário, como sustenta a brilhante articulista! E isso também pela singela razão de que, quanto aos bens comuns, o cônjuge já tem direito à meação, não havendo motivo para uma dupla contemplação (meação mais direito à herança) (Grifo nosso) 37.
Acerca da temática estudada, apresentaremos a seguir alguns quadros indicativos pertinentes ao regime de bens e a questão da concorrência do cônjuge supérstite:
HÁ CONCORRÊNCIA |
NÃO HÁ CONCORRÊNCIA |
Regime de Separação Voluntária de Bens |
Regime de Separação Obrigatória de Bens |
Regime da Participação Final nos Aqüestos |
Regime da Comunhão Universal de Bens |
Regime da Comunhão Parcial de Bens – existindo bens particulares |
Regime de Comunhão Parcial de Bens – não existindo bens particulares |
Figura 2. Regime de Separação Convencional de Bens
Tendo em vista o exposto no quadro acima, podemos notar que os bens particulares compreendem a totalidade da herança, pois são os únicos a serem transmitidos aos herdeiros, não existindo qualquer meação.
Nesse contexto, cumpre assinalar que teremos a concorrência quanto aos bens particulares do morto, ou seja, a totalidade da herança.
Figura 3. Regime de Comunhão Parcial de Bens – existindo bens particulares
A concorrência ocorre quanto aos bens particulares do de cujus, pois o legislador instituiu que em não havendo bens particulares aquela não se verifica; assim, não seria coerente falarmos em concorrência quanto à totalidade da herança.
Figura 4. Regime de Participação Final nos Aqüestos
Quanto ao regime de participação final nos aqüestos, concluímos que o cônjuge sobrevivente concorre nos bens particulares, uma vez que tal regime é equiparado, no que se refere à sua dissolução, ao regime de comunhão parcial de bens, devendo ser regulado, no que tange à matéria sucessória, de forma semelhante.
Entendemos, pois, que o cônjuge sobrevivente terá sua meação nos bens adquiridos com os esforços comuns do casal durante o casamento, e que tais bens não devem ser objeto da concorrência.
Concorre, desta forma, quanto aos bens particulares do de cujus, compreendendo estes os bens adquiridos anteriormente ao casamento, assim como aqueles adquiridos na constância do casamento (individualmente), ou seja, sem a participação do cônjuge sobrevivente.
Figura 5. Regime de Comunhão Universal de Bens
Todos os bens que compreendem o acervo patrimonial do casal são comuns; desta forma, não existem bens particulares. Vislumbramos, pois, que não há concorrência, falando-se apenas em meação, sendo regulada pelo direito de família.
Figura 6. Regime de Separação Obrigatória de Bens
O legislador, de maneira clara e objetiva, estabelece que o cônjuge supérstite casado sob o regime da separação obrigatória de bens não concorre com os herdeiros do de cujus, diferentemente do regime da separação voluntária de bens, que não foi objeto de exceção.
Figura 7. Comunhão Parcial de Bens – não existindo bens particulares
Na hipótese de não existirem bens particulares do de cujus, há a incidência, apenas e tão somente, do instituto da meação; desta feita, resta evidente a não concorrência do cônjuge sobrevivente.