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Mr. Tambourine Man e o Nobel de Literatura: a voz da contracultura e a cultura industrial.

Agenda 01/02/2017 às 23:24

A música se apresenta como forma de contestação em muitas ocasiões. O artigo se coloca na posição de analisar o que é cultura de massa e cultura como forma de criação autêntica.

Introdução

Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), ambos filósofos alemães, componentes da famosa Escola de Frankfurt (1923-1933), escreveram em parceira um livro, no mínimo alvissareiro para a época, no ensaio Dialética do Esclarecimento, publicado em 1942.

Momento complexo no mundo, encontrava-se em plena 2ª Guerra mundial, todavia, os pensadores, insistimos, que que primeiro ocuparam a revisão das obras de Karl Marx em alemão, a chamada Frankfurter Schule, possui pensadores de altíssimo nível, tais como: Georg Lukács, Karl Korsch, Karl August Wittfogel, Friedrich Pollock, Max Horkheimer, Erich Fromm, Herbert Marcuse e Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno entre outros.

Karl Marx estava recluso à Universidade, em outras palavras, recluso à análise dos intelectuais. O próprio Antonio Gramsci em manifestação de saudação à Revolução bolchevique, em dezembro de 1917, dizia ele, ser uma revolução não do Capital de Marx, sim dos intelectuais russos que manejaram as classes operárias na Rússia sob as idéias marxistas1.

Os intelectuais alemães, em diferentes áreas da sociologia, filosofia e até da psicanálise, como Eric Fromm, analisaram Marx sob um viés crítico frente aos movimentos sociais que se davam na década de 1920 e 1930, por exemplo a própria Revolução russa e a ascensão do nazismo na Alemanha. Importava ler Marx e escrever sobre Marx de forma a criticar os meios de poder que não se coadunavam com o social.

Adorno e Horkheimer produziram um ensaio no qual criticavam o entendimento de cultural, como “cultura industrial” em alemão Kulturindustrie. No trecho do ensaio da Dialética do Conhecimento, a saber, “O iluminismo como mistificação das massas” 2 , surge o termo “indústria cultural.

O termo “iluminismo” é no seu original, a já castigada palavra Aufklärung. Em alemão, a obra possui o título de: Dialektik der Aufklärung. Adorno e Horkheimer criticam o conceito de cultural vigente vinculando esse conceito ao produto capitalista, ou seja, cultura é o que o capitalismo aprova e qualifica como tal, logo, uma visão eurocêntrica e ocidentalíssima do entendimento de cultura.

Em profundidade, Adorno e Horkheimer conseguem mostrar que produção cultural e massificação cultural são a mesma coisa. O capitalismo e o método escolhido por esse, a exploração, são capilarizados na cultura produzida e nada é cultura se não houver o “nihil obstat” do capitalismo.

Percebe-se uma triste realidade: Com seus produtos, a Indústria Cultural pratica o reforço das normas sociais, repetidas até a exaustão sem discussão. Em consequência, uma outra função: a de promover o conformismo funcional.

Ela fabrica seus produtos cuja finalidade é a de serem trocados por moeda; promove a deturpação e a degradação do gosto popular; simplifica ao máximo seus produtos, a obter uma atitude sempre passiva do consumidor; assume uma atitude paternalista, dirigindo o consumidor ao invés de colocar-se a sua disposição.

Com a fragrância capitalista, a cultura é o produto do aceitável pelas castas sociais, criando aqui classes e padrões entre o que é e o que não é arte ou cultural. Fica explícito que os objetos e obras de artes expostas em museus, serão os que a “mass media” entender como resultado da sua própria elaboração midiática. O consumismo sufoca a cultura e logo, no entender dos dois alemães que nos debruçamos em estudo: cultura não é arte, sim indústria.

Pensar sobre cultura industrial e cultura de massa é caminhar lado a lado com a história, por exemplo, mesmo em 1940 e 1950, os movimentos sociais dos negros nos Estados Unidos da América evoluíam para um debate que chegará ao ápice na década de 1960. O Jazz, como forma de oposição a uma música branca dominante, estudado em seu contexto social por Howard Becker (1928- ) , particularmente em duas obras capitais3.


O tocador de pandeiro

Hey! Mr. Tambourine Man, play a song for me,

I'm not sleepy and there is no place I'm going to.

Em 1936 não somente a Europa irrompia no frenesi da guerra, o Estados Unidos da América, beiravam o barril de pólvora da guerra social com fósforos acessos à mão. Em 1935 Donald Gaines Murray, estudante negro, logrei êxito de admissão na University of Maryland School of Law, todavia, impedido em decorrência das leis raciais de Maryland. 4

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Murray foi represented por Charles Hamilton Houston e Thurgood Marshall. Conhecido o caso como Murray v. Pearson , Murray logra êxito nas apelações e surge a emblemática figura de Thurgood Marshall, que será o primeiro justice da Suprema Corte nos Estados Unidos da América, em 13 de junho de 1967. Cabe lembrar que Marshall foi ardente militante da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP).

Óbvio que uma “cultura branca” e ocidental e capitalista se fazia imperar. Ainda um recorte histórico que contribuiu para mudanças de valores a partir de 1960 foi o ato de Rosa Parkers no anoitecer de 1º de dezembro de 1955 em Montgomery Alabama. Negra, cansada após um dia de trabalho, recusou-se a ceder seu lugar a uma pessoa branca que reclama “o direito” de sentar-se por ser branca. Parkers recusou-se.

A população negra de Montgomery, solidariza-se com o ato de resistência e protesto de Parkers e segue um boicote aos ônibus que aplicavam as leis de segregação racial. Mudança de postura, mudança de cultura, mudança de pensamento, não sem resistência. Gandhi na índia, agora Martin Luther King na América. Resistência sem violência.

Há uma canção de Billie Holiday (1915-1959) chamada Strange Fruit que diz:

“ Southern trees bear strange fruit,

Blood on the leaves and blood at the root,

Black body swinging in the Southern breeze,

Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant South,

The bulging eyes and the twisted mouth,

Scent of magnolia sweet and fresh,

Then the sudden smell of burning flesh!

Here is fruit for the crows to pluck,

For the rain to gather, for the wind to suck,

For the sun to rot, for the trees to drop,

Here is a strange and bitter crop”. 5

A canção de 1939 gerou um descontentamento racial intense. A Ku Kux Klan criada em 1965 e de forte reacionismo branco, perseguia os negros, detidamente nos Estados do Sul e os enforcavam, daí a canção de Holiday.

No contexto social, as tecnologias traziam quebras de tabus, por exemplo a televisão. Quando em 1954 um garoto sulista do Tennessee ecoou sua voz no rádio cantando “Don’t be cruel”, pensou-se negro o rapaz, todavia, não o era, sim Elvis Presley. Um espírito de rebeldia se espalha e também inconformismo.

Letras rebeldes, danças enlouquecidas traziam o oposto do puro e limpo padrão branco americano. Chuck Berry (1926- ) vai ao rádio com “Roll over Beethoven” e parece que o negro assume um papel que culminará com os protestos, drogas e powerflower dos anos de 1960.

Robert Allen Zimmerman, nasceu em 1941 em Minnesota. Tornou-se Bob Dylan na década de 1960:

"Eu havia visto alguns poemas de Dylan Thomas. A pronúncia de Dylan e Allyn era parecida. Robert Dylan. A letra D tinha mais força. Entretanto, o nome Roberto Dylan não era tão atraente como Roberto Allyn. As pessoas sempre haviam me chamado de Robert ou Bobby, mas Bobby Dylan me parecia vulgar, e além disso já haviam Bobby Darin, Bobby Vee, Bobby Rydell, Bobby Neely e muitos outros Bobbies. A primeira vez que me perguntaram meu nome em Saint Paul, instintiva e automaticamente soltei: 'Bob Dylan'" 6

Dylan surge no cenário musical com um violão, uma gaita e uma voz ruim, compensada apenas pela acidez e amargura de suas belas poesias cantadas. Com influências “folk” e de poetas como Woodrow Wilson "Woody" Guthrie (1912-1967), que em seu canto “country” fazia uma espécie de crítica bitter-sweet do movimento social. Chegou a hora de contestar, chegou a hora do “ homem do tamborim” fazer sua arte e cultura e alcançar o chamado “underground” do público. Guthrie protestava onde podia com violão e voz e é célebre seu manuscrito no qual dizia:

“Nas praças da cidade, na sombra de um campanário;

No intervalo do escritório, eu vi o meu povo.

Tinham fome, e eu estava lá perguntando,

Esta terra é feita para você e para mim?

Quando andava, eu vi uma placa,

E na placa, dizia "não invadir".

(Em outra versão, lê-se "Propriedade Privada")

Mas no outro lado, ela não dizia nada!

Esse lado foi feito para você e para mim”. 7

Bob Dylan agradou a Adorno, esse o compreendia como o artista que produz arte e cultura de forma pura. Frente à repercussão que foi a indicação do prêmio Nobel de Literatura, críticos comentaram:

“Como Stuart Jeffries argumentava recentemente num artigo no The Guardian, «se Adorno fosse vivo hoje, ele poderia muito bem ter defendido que o apocalipse cultural já ocorreu, mas nós somos demasiado acríticos para termo-nos dado conta disso. Os maiores receios dele já se verificaram. ‘A hegemonia da pop não está senão a um passo de ser completa, as suas superestrelas dominando os media e controlando o tipo de poder económico dos magnatas’, escreveu o crítico da New Yorker Alex Ross”.

Tal comentário saiu na mídia social com o seguinte título: “Nobel para Dylan pode ser outro sintoma do apocalipse cultural previsto por Adorno” 8 É fato que não podemos afirmar que a obra de Bob Dylan escorra pelo caminho da contracultura de massa, a cultura é forma de expressão e não de avaliação metódica.

Em artigo sobre a Escola de Frankfurt, Renato Ortiz conduz à seguinte reflexão:

“Quando os frankfurtianos se referem a cultura, eles utilizam o termo com um significado distinto do que lhe é conferido pelos antropólogos. Cultura não significa práticas, hábitos ou modo de vida, e se por um acaso é legítimo falarmos em antropologia, trata-se de uma Antropologia Filosófica. Na verdade, os autores seguem a tradição alemã que associa cultura à Kultur, e a identificam com a arte, filosofia, literatura e música. As artes expressariam valores que constituem o pano de fundo de uma sociedade. Marcuse (1970) dirá que a cultura é "o conjunto de fins morais, estéticos e intelectuais que uma sociedade considera como objetivo de organização, da divisão e da direção do trabalho". Ela é um processo de humanização que deve se estender para toda a sociedade. No debate sobre cultura, os frankfurtianos retomam ainda a diferença entre cultura e civilização, estabelecida pelo pensamento alemão. Eles associam o primeiro termo à dimensão espiritual, enquanto circunscrevem o significado da civilização ao mundo material”. 9

Ortiz acerta ao citar Herbert Marcuse e sua definição de cultura, ainda mais vinculada ao trabalho e aos meios de produção, tirando a cor de elite da palavra cultura.


Curinga

Na canção Jokerman, Bob Dylan diz: “Standing on the waters casting your bread While the eyes of the idol with the iron head are glowing… Jokerman dance to the nightingale tune”. Dylan é um poeta, tal fato é inconsteste. Agora, como na canção resta saber se o poeta esganiçado cantará e dançara sua canção para o rouxinol.

A década de 60 foi marcante, tivemos vários momentos históricos e sociais como Vietnã, o Civil Rights de 1964 nos Estados Unidos, Golpe de 1964 no Brasil, o homem chega à lua, chegam as drogas sintéticas, Woodstock...óbvio que essa geração política e culturalmente afetou todos os ramos da civilização. Bob Dylan, poeta e influenciador de vários grupos de música e rock, espelha nas suas letras mais que em suas músicas, o desconforto social que se vivia e que se viveu nos tortuosos anos de 60.

O caso Rubin Carter (1937-2014) conhecido como “Furacão”, “Hurricane”, pugilista preso e condenado em 1966 e que ficou preso até 1985 após a retirada do processo e anulação da pena. Hurricane é uma das maiores letras em extensão e poesia da música americana. Dylan faz um relatório poético e esmiúça o contexto racista e circunstancial no qual se deu a condenação de Carter.

Em 1964 o filósofo francês Jean-Paul Sartre, indicado ao Nobel de Literatura, recusa-o de forma veemente. Sartre literato e formador de opiniões se manifesta em outubro sobre a recusa. Dylan, o curinga, formador de opiniões, crítico do modelo de cultura que há mais de 40 anos se debate, está silente.

Dylan é poeta. Dylan é crítico, escritor. A indústria cultural de forma tentacular sempre promove seus meios para aprisionar suas presas. Se Dylan ou Mr. Tambourine man, como queiram, aceitou o prêmio, fica sempre um gosto de vencido frente ao mercado que compra, aos costumes que ditam e as pechas que marcam, aliás foi ele mesmo quem disse:

Though I know that evenin's empire has returned into sand,

Vanished from my hand,

Left me blindly here to stand but still not sleeping.

My weariness amazes me, I'm branded on my feet,

I have no one to meet

And the ancient empty street's too dead for dreaming”. 10

Bob Dylan é uma marca da contestação, assim foi. Marcou uma geração cantando-a na sua forma mais crua, algo como doce e amargo. Vê-se que tempos modernos chegam e os governos repetem as mesmas cantigas de um reportório caduco e de pouca expressão. Em tempos difíceis surgem as crises, surgem também os que sabem expressar a crise em crítica, assim fez o “ tocador de pandeiro”.


Notas

1 CRUZ, S. R. F. 'O Marxismo de Marx e o marxismo de Aron' palestra na UEG-Departamento de História em 13 de setembro de 2008. (Apresentação de Trabalho/Seminário).

2 No original alemão: Aufklärung als Massenbetrug.

3 Boys in White: Student Culture in Medical School with Blanche Geer, Everett C. Hughes and Anselm Strauss (Chicago: University of Chicago Press, 1961). ISBN 978-0-87855-622-9

Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. (New York: The Free Press, 1973). ISBN 978-0-684-83635-5

4 "The University of Maryland does not admit Negro students and your application is accordingly rejected." In: Rath, Molly (July 2007). "Desegregation Begins". Baltimore Magazine. 100. (7): 86.

5 As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto,

Sangue nas folhas e sangue na raiz,

Um corpo negro balançando na brisa sulista

Um estranho fruto pendurado nos álamos.

Uma cena pastoral no galante Sul,

Os olhos esbugalhados e a boca torcida,

Perfume de magnólia doce e fresca,

Então o repentino cheiro de carne queimada!

Aqui está o fruto para os corvos arrancarem,

Para a chuva recolher, para o vento sugar,

Para o sol apodrecer, para as árvores fazer cair,

Aqui está uma estranha e amarga colheita. (Tradução livre do mestrado)

6 DYLAN, Bob. Chronicles, Vol. 1, 78-79. ISBN 0-7432-2815-4

7 CHRISTINE A. Spivey (1996). «This Land is Your land, This Land is My Land: Folk Music, Communism, and the Red Scare as a Part of the American Landscape» (em inglês). Loyola University Student Historical Journal. Consultado em 24 de outubro de 2016.

8 In: https://ionline.sapo.pt/527602 Consulta em 24 de outubro de 2016.

9 In : https://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_05.htm Consulta em 24 de outubro de 2016.

10 Embora eu saiba que todo império retornou ao pó- Varrido de minha mão- Deixando-me cegamente aqui parado, mas ainda não dormindo. Meu cansaço me espanta, estou plantado por meus pés. Não tenho quem encontrar, E a velha rua vazia está muito morta para sonhar. Mr. Tambourine Man (1965).

Sobre o autor
Sérgio Ricardo de Freitas Cruz

Mestre e doutorando em Direito. Membro do IBCCRIM e do IBDFAM.

Informações sobre o texto

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