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Crime de trabalho escravo x irregularidades trabalhistas

Agenda 02/02/2017 às 16:58

O presente estudo tem o intuito recordar de forma breve os limites impostos ao poder de atuação do Direito Penal, confrontando tais limites com a previsão de aplicação aos casos que envolvam matéria estritamente trabalhista.

Introdução

No diz respeito ao crime de tipificado no artigo 149 do Código Penal, qual seja, o de submeter alguém a condições análogas à de escravo, cabe a análise pormenorizada do caso concreto, não bastando a simples existência de más condições de trabalho, confundindo-os com indícios da prática do tipo penal em questão, sob pena de conflito entre matérias de ordem trabalhista e penal.

O presente estudo tem o intuito recordar de forma breve os limites impostos ao poder de atuação do Direito Penal e seu caráter de severidade que o tornam aplicável apenas em casos de extrema relevância, onde os demais ramos do Direito mostram-se insuficientes para tutela do bem jurídico em questão.

  1. Princípio da intervenção mínima do Direito Penal.

O Direito Penal, como ramo fragmentário do direito, ocupa-se de pontos específicos do ordenamento jurídico como ultima ratio na proteção de determinado bem jurídico. A sua intervenção deve ocorrer apenas em situações de extrema gravidade, justificando assim a severidade das penas aplicadas ao crime incorrido.

De acordo com Cezar Roberto Bitencourt[1],

“O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanções ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização será inadequada e desnecessária. Se para o restabelecimento da ordem jurídica forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o direito penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade.”

Destarte, a fragmentariedade do Direito Penal emana do princípio da intervenção mínima que por sua vez está ligada a ideia de minimalismo penal. O Direito Penal, como instrumento mais severo de controle da ordem social, deve ser aplicado o mínimo necessário e apenas diante da ineficácia de outros ramos do direito.

Trata-se, portanto, de postulado que em matéria penal relativiza a função de proteção dos bens jurídicos atribuída à lei penal, limitando sua atuação a defesa de bens jurídicos imprescindíveis à ordem pacífica de convivência em sociedade.

  1. CRIME DE TRABALHO ESCRAVO X IRREGULARIDADES TRABALHISTAS

Código Penal define tipifica a conduta nos seguintes termos:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando a condições degradante de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além de pena correspondente à violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho:

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

No crime em estudo a vítima é submetida a condições semelhantes às de um escravo. Ocorre a despersonalização do sujeito passivo, que é tratado como coisa, perdendo, portanto, a vítima sua personalidade, e, por conseguinte, sua dignidade.

Os meios de execução do delito são:

(i) Submissão a trabalhos forçados: Aquele cujo trabalhador é coagido a praticar.

(ii) Submissão a jornada exaustiva: É a submissão a jornada exaustiva, que ultrapassa os limites do ser humano comum, além daquela prevista pela Constituição Federal, como de duração máxima de oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais. Para que se configure a jornada exaustiva, é preciso que o trabalhador seja compelido a exercê-la.

(iii) Sujeição a condições degradantes de trabalho: Trata-se de submeter o trabalhador a condições de que o rebaixam e prejudicam, deteriorando sua saúde e privando-o de sua dignidade.

(iv) Restrição da locomoção devido a dívida: O trabalhador é compelido a ter residência no local de trabalho, sendo obrigado a comprar alimentação, e demais necessidades básicas em estabelecimento mantido pelo patrão que o faz contrair dívidas que nunca a são quitadas.

(v) Retenção do trabalhador no local de trabalho: Pode ocorrer tanto por cerceamento de meio de transporte, pela manutenção de vigilância ostensiva ou apossamento de documentos ou de objetos pessoais do trabalhador, de modo a impedir que este deixe o local de trabalho.

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Cumpre ressaltar que o dispositivo penal em estudo não possui o condão de regular as irregularidades de cunho meramente trabalhistas, como o desrespeito a condições de saúde e segurança ou a eventual extrapolação da jornada de trabalho. Tais circunstâncias devem ser analisadas dentro do contexto do dispositivo penal, sob a ótica do objetivo colimado pelo legislador, não podendo se confundir a priori com trabalho escravo.

Más condições de trabalho, a priori, configuram trabalho em condições degradantes e são infrações à legislação protetiva do trabalhador, reprimidas administrativa ou judicialmente no âmbito do DIREITO TRABALHISTA. O mesmo serve para o descumprimento dos limites impostos à jornada de trabalho.

Assim, como tipo penal não conceitua o que seriam condições degradantes de trabalho deve, portanto, o operador do direito, de acordo com sua concepção ideológica, identificar quais seriam estas condições, a fim de encaixar a conduta no tipo penal do art. 149 do Código Penal, que, como o crime material, consuma-se apenas com a produção do resultado, mediante conduta penalmente relevante. Desta forma, nem toda situação de trabalho degradante é considerado penalmente relevante.

Importante frisar que o dispositivo penal em estudo deve ser interpretado dentro do contexto do capítulo ao qual pertence, qual seja DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL (Capítulo VI, Seção I do CP), não havendo que se tratar aqui de irregularidades de natureza trabalhista, conforme entendimento do TJ/RS.

“Para que se configure o delito, necessário se faz a segura verificação de total sujeição, de supressão do estado de liberdade, sujeitando a vítima, moral e fisicamente, ao poder do dominador; não é qualquer constrangimento gerado por irregularidades nas relações laborativas suficiente para determinar a incidência do art. 149 (TJRS, RT 722/515)” (Grifos nossos)

A interpretação do dispositivo em tela, obedecida sua posição topográfica, é corroborada pela Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal:

“No artigo 149, é prevista uma entidade criminal ignorada do Código vigente: o fato de reduzir alguém, por qualquer meio, à condição análoga à de escravo, isto é, suprimir-lhe, de fato, o status libertatis, sujeitando-o o agente ao seu completo e discricionário poder. É o crime que os antigos chamavam plagium. Não é desconhecida a sua prática entre nós, notadamente em certos pontos remotos do nosso hinterland.” 

Certamente que a concepção atual de liberdade, influenciada pela evolução dos Direitos Humanos, tornou-se mais ampla, superando, portanto, o antigo conceito de restrição da liberdade.

Destarte, não parece coerente deixar que a amplitude do conceito de liberdade, que atualmente transcende o contexto físico do sujeito passivo, afete a interpretação do dispositivo sob a ótica do princípio da intervenção mínima, da fragmentariedade do Direito Penal e sua posição topógrafica, que expressa o objetivo do legislador.

Concluindo, a aplicação do tipo penal de redução a condição análoga à de escravo carece de uma interpretação sob a ótica dos princípios basilares do Direito Penal. O anseio da sociedade por reprimendas severas às condutas que nem sempre são penalmente relevantes, não pode servir de base para julgamento penal de matérias que podem ser tuteladas com eficácia por outros ramos mais especializados do direito.

Referências

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

BRASIL, Decreto lei nº 2.848, de 7 de Dezembro de 1940.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Lições de direito penal – parte geral. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995.

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