3. Princípio da dignidade da pessoa humana
Juntamente com a instituição de um Estado Democrático de Direito, são evidenciados, no Título I, os princípios fundamentais, sendo o da dignidade da pessoa humana um deles [33].
De acordo com a doutrina de Alexandre de Moraes,
"A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a idéia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos." [34]
A dignidade da pessoa humana, na lição do professor José Afonso da Silva "é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida." [35]
A professora Maria Helena Diniz comenta que,
"Os bioeticistas devem ter como paradigma o respeito à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1.º, III) e o cerne de todo o ordenamento jurídico. Deveras a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado, sendo o valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico. Conseqüentemente, não poderão bioética e biodireito admitir conduta que venha a reduzir a pessoa humana à condição de coisa, retirando dela sua dignidade e o direito a uma vida digna." (36)
Miguel Reale, em sua obra "Pluralismo e liberdade", comenta que
"(...) o processo de objetivação histórica levou a uma conquista axiológica: a do reconhecimento do valor da pessoa humana enquanto ‘valor-fonte’ de todos os valores sociais e, destarte, o fundamento último da ordem jurídica, tal como formulado, seja pela tradição do jusnaturalismo moderno, seja pela deontologia, no âmbito do paradigma da filosofia do direito." [37]
A dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, fornece ferramentas para a redução das injustiças cometidas nos diversos níveis sociais, culturais e econômicos. Além disso, são evidentes as diferenças entre regiões geográficas, bem como, diferenças no trato político-social. Com este princípio, é possível a redução destes problemas, bem como, ele se torna fundamento para teses sociais mais apuradas, que objetivam não somente, no campo científico-tecnológico, mas também no campo sócio-cultural, a consecução de um fundamento de toda República; assumindo estes preceitos, o Brasil terá condições de enfrentar os problemas sociais, sendo grave, a situação deplorável que está nosso sistema judiciário. Os grandes prejudicados não são os "ricos" litigantes, mas aqueles que não conseguem tratamento de saúde de qualidade e, quando o tem, mesmo precário, ainda não são bem atendidos, devendo recorrer àquele sistema trino, já citado, defasado, moroso e injusto. Aí, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser aplicado, juntamente com outros princípios constitucionais, como o da saúde, no artigo 6.°, além daqueles princípios bioéticos já elencados, principalmente, os princípios da não-maleficência e o da justiça.
4. Jurisdição e a efetividade da ordem jurídica justa
Segundo ensinamento dos professores Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, a jurisdição:
"é uma das funções do Estado, mediante a qual este se substitui aos titulares dos interesses em conflito para, imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve com justiça." (38)
Assim, destaca-se que o Estado se substitui aos titulares daquele direito material lesionado e, o Estado dará uma solução imparcial e justa para aquele conflito. Continuam, os nobre professores:
"A realização do direito objetivo e a pacificação social são escopos da jurisdição em si mesma, não das partes." (39)
É evidente que a jurisdição tem por finalidade a pacificação social, mesmo que essa pacificação seja entre sujeitos particulares, o Estado tem por dever fundamental fomentar isto. Porém, hodiernamente, a jurisdição ("juris" + "dicto"= dicção do direito) não pode mais ser entendida como a aplicação do direito legal, ou seja, da "letra fria" da legislação. A jurisdição moderna possui, como já explicitado, ferramentas principiológicas, principalmente fundamentadas no princípio da dignidade da pessoa humana, que a autorizam fazer justiça.
Não é outra a dicção dos ensinamentos dos professores Cintra, Grinover e Dinamarco:
"A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa." (40)
A ordem jurídica justa, à luz da instrumentalidade do processo, é assumir que o processo não está ligado com a lei material. Como estudamos nas Academias, o processo não é somente direito adjetivo e o direito material, não é somente direito substantivo. Como nos ensina Cintra, Grinover e Dinamarco:
"O Estado é responsável pelo bem-estar da sociedade e dos indivíduos que a compões: e, estando o bem-estar social turbado pela existência de conflitos entre pessoas, ele se vale do sistema processual para, eliminando os conflitos, devolver à sociedade a paz desejada. O processo é uma realidade desse mundo social, legitimada por tr~es ordens de objetivos que através dele e mediante o exercício da jurisdição o Estado persegue: sociais, políticos e jurídica. A consciência dos escopos da jurisdição e sobretudo do seu escopo social magno da pacificação social constitui fator importante para a compreensão da instrumentalidade do processo, em sua conceituação e endereçamento social e político." [41]
O acesso à justiça, a instrumentalidade do processo como formas da consecução de uma ordem jurídica justa, devem superar os óbices econômicos e jurídicos que se antepõem ao livre acesso à justiça, [42] bem como, o processo como meio de aplicação da jurisdição, deve atender aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da vida e da saúde.
A ordem jurídica justa está para o processo assim como o processo bem realizado está para a pacificação social efetiva. E somente será bem realizado o processo, quando em seu término, a decisão seja justa e eficaz.
Entendemos por ordem jurídica justa quando efetiva-se os princípios constitucionais da cidadania e do acesso à justiça (art. 1.°, I c/c art. 5.° XXXV), assegurando-se a integridade física, moral e social (art. 5.°, X), no sentido de resguardar-se a dignidade da pessoa humana (art. 1.°, III). Além disso, se faz necessário a celeridade dos processos em geral, bem como, a moralidade das decisões, para a efetivação do art. 5.°, III, onde se consagra o direito de não ser submetido a tratamento desumano ou degradante.
5. Conclusão
Atualmente, a realidade biotecnológica versus a realidade social, leva os aplicadores do direito a terem dificuldades de interagirem com as necessidades individuais daqueles que demandam nesta seara.
Fatos como reprodução humana assistida, mudança de sexo, adoção por homossexuais, casamento entre homossexuais, clonagem terapêutica, aborto seletivo, transgênicos, terapia gênica entre outros, faz com que o direito não possa mais ficar inerte naquele princípio "nulla poena sine lege". Os princípios e fundamentos constitucionais estão dispostos sistematicamente de forma a permitir que a consecução de "direitos" pessoais, morais e sociais não reconhecidos pela lei sejam albergados pelas decisões judiciais.
Assim, faz-se necessário um estudo multidisciplinar entre a bioética e o direito, onde seja possível a utilização dos princípios e fundamentos, de ambos os campos do saber, para a efetiva busca de uma ordem jurídica justa e igualitária, no real sentido do artigo 5.°, "caput" da nossa Constituição Cidadã.
Os aplicadores do direito não podem mais utilizar o processo como simples ferramenta protetiva de direitos injustos, muito menos, utilizar o sistema recursal vigente em nosso país como forma de desqualificar as decisões monocráticas no sentido de protelar algo que flagrantemente está errado e injusto.
A bioética veio como forma de abrir o diálogo entre a ética aplicada e as ciências da saúde, porém, temas emergentes com relação àquelas ciências, que estão na pauta das discussões dos países em desenvolvimento, faz com que os bioeticistas tenham que se debruçar sobre questões muito mais significativas e efetivas para a situação social e moral. Assim, o direito, como disciplina auxiliar, deve, ajudar, efetivando os direitos constitucionais, os princípios e garantias fundamentais e, através do processo, deve orientar as decisões no sentido da efetividade de uma ordem jurídica e eticamente justa.
A miscigenação de valores éticos, morais, sociais e religiosos, num primeiro momento, após um diálogo aberto e sem pretensões, ajudará o direito na busca de parâmetros legais suficientes para embasarem as decisões futuras sobre aqueles direitos materiais lesionados. Num segundo momento, pode-se esperar por uma sociedade mais humana e justa.
Notas bibliográficas:
1 Luiza Pastor e Mário Chimanovitch. A humanização da justiça: entrevista com David Diniz Dantas. n.° 1804. Revista Isto É. São Paulo : Editora Três, 2004.
2 Excertos do capítulo 3 da nossa monografia "Clonagem terapêutica: aspectos bioéticos e seus reflexos no direito", apresentada à banca examinadora da Faculdade de Direito de Bauru da Instituição Toledo de Ensino como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em direito sob a orientação do Prof. Ms. Ney Lobato Rodrigues. pp. 19-31.
2 Adriana Diaféria, Clonagem, aspectos jurídicos e bioéticos. Bauru : EDIPRO, 1999. p. 81.
3 Idem. Op. cit., p. 81.
4Op. cit., p. 81.
5 Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito. 2. ed. aum.e atual. São Paulo : Ed. Saraiva, 2002. p. 9
6 Idem. Op. cit., p. 9.
7Op. cit., p. 10.
8 Encyclopedia of Bioethics, 2ª edição, vol. 1, introdução, pág. XXI, W.T. Reich, editor responsável, 1995 apud Adriana Diaféria, op cit, p. 84.
9Op. cit., p. 84.
10 Adriana Diaféria. Op. cit., p. 84.
11 Pietro de Jesus Lora Alarcón, As conquistas da genética e sua importância na proteção constitucional da vida humana: uma proposta de emenda para a proteção do patrimônio genético humano na Constituição Federal de 1998. Tese de Doutorado. São Paulo : Pontifícia Universidade Católica, orientador: prof. Dr. Luiz Alberto David Araújo, 2002. p. 176.
12 Joffre M. de Rezende, Caminhos da medicina, disponível em <http://usuarios.cultura.com.br/jmrezende/orkos.htm>, acesso em 02.out.2003.
13 José Eduardo de Siqueira, Os princípios da bioética, disponível em <http://www.gobloodless.org/saopaulo/siqueira.doc>, acesso em 02.out.2003.
14Op. cit.
15 Matilde Carone Slaibi Conti, Ética e direito na manipulação do genoma humano. Rio de Janeiro : Editora Forense, 2001. p. 16.
16 Paulo Vinícius Sporleder de Souza, A criminalidade genética. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 103.
17 Paulo Vinícius Sporleder de Souza, op. cit., p. 103.
18Op. cit., p. 87. O Relatório de Belmont foi a resposta dada pelo Congresso norte-americano ao aumento das experiências científicas com seres humanos, na década de 1970, instituindo limites éticos para tais experiências.
19Op. cit., p. 87.
20 Francesco Bellino, Fundamentos da bioética: aspectos antropológicos, ontológicos e morais. Trad. Nelson Souza Canabarro. Bauru : EDUSC, 1997, p. 198.
21Op. cit., p. 88.
22Op. cit., p. 85.
23Op. cit., p. 198-199.
24Op. cit., p. 85.
25Op. cit., p. 85.
26 W.K. Frakena, Ética, Rio de Janeiro : Zahar, 1981, p. 61-73, apud Paulo Vinícius Sporleder de Souza, op. cit., p. 104.
27 Matilde Carone Slaibi Conti, op. cit., p. 17.
28 Francesco Bellino, op. cit., p. 199.
29Op. cit., p. 88
30 The Belmont Report: Ethical Guidelines for the Protection of Human Subjects. DHEW Publications, (OS) 78-0012, Washington, 1978, apud Adriana Diaféria, op. cit., p. 88-89.
31 Adriana Diaféria, op. cit., p. 89.
32 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil 1988, inc. III, art. 1.º.
33 Alexandre de Moraes. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo : Atlas, 2002. p. 50.
34 José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. rev. atual. São Paulo : Editora Malheiros, p.105.
35Op. cit., p. 17.
36 Miguel Reale, Pluralismo e liberdade, São Paulo : Saraiva, 1963, p. 63 e 80 (Cap. 2, nota 57) apud Maria Helena Diniz, op. cit., p. 17, nota 43.
37 CINTRA, A.C.R.; GRINOVER, A.P.; DINAMARCO, C.R. Teoria Geral do Processo. 15. ed. São Paulo : Editora Malheiros, 1999. p. 129.
38 Idem. op. cit. p. 132.
39 Idem. op. cit. p. 33.
40 Idem. op. cit.p. 41.
41 Idem. op. cit. P. 42.