Infelizmente, as promessas da modernidade[1] fracassaram ou, simplesmente, exauriram-se. O refugo humano se alastra vertiginosamente no planeta e, não há como apenas ignorar e seguir o roteiro da individualidade. Há outras possibilidades de convivência que não estão impressas em códigos ou mandamentos, afinal, não há um rol enumerativo e seguro a elencar os deveres.
Com o Iluminismo, esperava-se que prevalecesse a tolerância, o humanismo e o respeito à natureza e, se afirmaria o direito à liberdade e à igualdade entre os homens. Acreditava-se piamente no progresso contínuo em benefício da humanidade graças ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia.
O Iluminismo correspondeu a uma ideologia que fora desenvolvida e incorporada pela burguesia na Europa a partir de lutas revolucionárias deflagradas no final do século XVIII, cujos temas gravitaram em torno da liberdade, progresso e humanidade.
Visava à correção das desigualdades da sociedade humana e à garantia dos direitos considerados naturais do indivíduo, como as liberdades e a livre posse de bens.
As teses políticas do Iluminismo fracassaram desde a Revolução Inglesa de 1640, a Revolução norte-americana (1776) e a Revolução Francesa (1789) o que abriu caminho para a ideologia marxista em todo o mundo que se propunha a dar fim a exploração do homem pelo homem, com a redução de desigualdades econômicas entre as classes sociais e, no futuro, conseguir sua completa abolição.
Enfim, fracassaram porque não cumpriram suas promessas históricas de se conquistar a felicidade humana. Fracassaram os ideais iluministas, mas também, fracassaram os ideais marxistas.
A modernidade, por sua vez, nasceu com a Revolução Industrial significando um grande esforço intelectual dos iluministas para desenvolver a ciência e a razão e, descobrir as leis universais para serem postas a serviço da humanidade.
Com a Revolução Industrial, a ciência e a tecnologia adquiriram relevância fundamental para o progresso humano mediante as sucessivas e contínuas inovações tecnológicas.
A modernidade, geralmente associada à Segunda Revolução Industrial, ocorrida na segunda metade do século XIX, representou o conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas por volta de 1870, com a industrialização da França, da Alemanha, da Itália, dos EUA e do Japão, caracterizadas especialmente pelo desenvolvimento de novas fontes de energia (como a eletricidade e petróleo), pela substituição do ferro pelo aço, pelo surgimento de novas máquinas e ferramentas além de novos produtos químicos (como o plástico).
Por sua vez, a pós-modernidade está relacionada mais propriamente com a Terceira Revolução Industrial, que corresponde ao conjunto de transformações socioeconômicas iniciadas a partir da segunda metade do século XX, com surgimento de complexos industriais e empresas multinacionais, o desenvolvimento de indústrias química e eletrônica e os avanços da automação, da informação, da engenharia genética e, respectiva incorporação ao processo produtivo que passou a depender cada vez mais de alta tecnologia e de mão de obra cada vez mais especializada.
A razão preconizada pelo Iluminismo fora então substituída pela razão do capitalismo de mercado que ao exercer seu controle sobre as forças da natureza, estendeu sua dominação também sobre os seres humanos. O capitalismo de mercado tornou-se a referência privilegiada dessa modalidade de controle sobre a natureza e sobre os seres humanos.
Enfim, a complexidade e a diversidade das relações humanas não podem ser contidas em regras. As regras e os comandos normativos não conseguem mais abarcar toda filosofia moderna do dever-ser[2].
O aparente vazio de valores que é nítido, particularmente, na passagem da modernidade para a pós-modernidade e, que se apresenta por causa do adiamento contínuo das consequências produzidas pelas ações de todos para com todos.
Adia-se continuamente o futuro, postergando-se seus efeitos, tornando-se cada vez mais árdua a tarefa de compreender o ser humano em sua profunda complexidade cotidiana. As promessas da Idade Moderna se eternizaram, vivemos delegando as responsabilidades de nossas escolhas morais para experts[3] da ética, a fim de que sejam determinados para cada homem e mulher, quais são os fenômenos bons e maus, bem como prover a avaliação estratégica de como realizar a escolha correta e adequada. Não há garantia de se manter uma convivência infalível.
Zygmunt Bauman esclareceu sobre as distinções entre a “Era da Ética” típica da modernidade, e a “Era da Moral”, peculiar da pós-modernidade. Há de se entender mais sobre outras perspectivas de convivência humana que não são tão novas e nem inéditas, mas, precisa-se do caráter pedagógico para rememorar àqueles que não sabem se, diante do abismo, atira-se para um caminho sem volta ou, ao observar sua profundidade, procura refletir sobre o significado de “ser-junto-com-o-outro” e, finalmente, descobrir sua humanidade.
A ética e a moral da pós-modernidade desvela-se na responsabilidade moral incondicional na qual cada pessoa exerce, por meio de suas atitudes, o “estar junto com o outro” na vida cotidiana.
A ética está para a filosofia enquanto que moral está para religiosidade. Mesmo a ética menor, também chamada de etiqueta[4], existe para prover a melhor convivência de diferentes pessoas que habitam o mesmo contexto.
A Ética, na dicção de Bauman, não consegue tornar efetivo o seu projeto racional de tudo prever e tudo prescrever. A expertise da ética, em sua função, foi o transformar o pecado (da Idade Medieval) na culpa esculpida pela razão lógica e procurar expiá-la.
Assim, a promessa de vida livre do pecado (doravante renomeada de culpa) traduziu-se apenas num projeto de refazer o mundo à medida das necessidades e das capacidades humanas, de acordo com o modo racional (Vide: Bauman, Z. A vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011).
Os mandamentos éticos conduzem à autoridade necessária para impor o que deve ser feito, de modo igual e por todos. A ética da modernidade é um projeto universalizável e, pode ser capaz de enunciar quais as condutas são possíveis ou não, dentro de um grupo, a fim de manter sua coesão e promover a convivência.
A Ética moderna é categoria que num esforço procura antever e prescrever, com maior grau de certeza possível, a ocorrência de certos fenômenos, além de procurar diminuir, ou até eliminar, os conflitos, buscando as alternativas de resolução e superação dessas dificuldades[5].
Procura-se atender ao adágio: “na medida em que surge a dificuldade, ter-se-á apenas uma resposta para sua solução”. Tal resposta precisa ser enunciada senão, imposta pela autoridade ética e guiada pela razão lógica.
A ética proposta pela modernidade elabora cada base a partir daquilo que as suas autoridades prescrevem como verdades. O poder desses peritos funciona como o legislativo e o judiciário[6] ao mesmo tempo.
As condutas humanas serão julgadas aptas ou não, conforme a previsão da norma ética. Os especialistas são capazes de tornar universais as condutas éticas porque dispõem de um conhecimento que a pessoa comum não tem.
O homem da vida do cotidiano não tem capacidade intelectual para orientar suas próprias ações. Enfim, não conhece o bom para disseminar o bem. Tal depreciação dos deuses olímpicos sobre a incapacidade das pessoas em escolherem o razoável para suas vidas tem significado, qual seja, a de que os seus juízos éticos não sejam fundamentados, em outras palavras, não sejam racionalmente demonstráveis, quantificáveis ou mensuráveis.
A ausência da razão lógica a fim de tornar tudo sólido, oficial e obrigatória uma conduta para todos, implica na necessidade de pessoas especialistas para iluminar as mentes e direcioná-las a algo de “bom”.
Por esse motivo, conclama-se aos peritos: ”Salvem-nos da angústia e ambivalência de nossas decisões pessoais. Apontem-nos o que é o “bom” a partir da tabula rasa[7] de nossas obrigações”. Desta forma, a impotência ética dos leigos e a autoridade ética dos peritos explicam-se e justificam-se mutuamente. E o postulado de uma ética devidamente fundamentada, suporta-as.
O pretenso abandono sobre a escolha de nossas decisões - e o delegar dessa tarefa para as agências supraindividuais aos gestos éticos - já produziu desastres históricos, tais como a Segunda Guerra Mundial.
Quando procedimentalizou-se racionalmente a indiferença taxando como “normal” ou “racional”. Não havia espaço para reflexão pessoal sobre o que se mostrava como razoável. Tal ação pertencia apenas aos peritos. A eficiência, precisão das normas racionais e a especificação de seus papéis, rememora Bauman, permitiu que a violência fosse autorizada e as vítimas desumanizadas, especialmente por definições e doutrinas ideológicas. Eis a negação de autoridade à consciência moral. Lembremos o comportamento Ohlendorf[8] na descrição de Bauman:
Quando instado a explicar, no julgamento de Nuremberg[9], por que não renunciou ao comando cujas ações, ele pessoalmente desaprovava. Ohlendorf invocou precisamente este senso de responsabilidade, pois se expusesse as ações de sua unidade para se ver livre de obrigações que, garantiu, o indignavam, estaria deixando seus homens fossem erroneamente acusados.
“Obviamente, Ohlendorf esperava que a mesma responsabilidade paternalística em relação aos seus homens, seria praticada por seus superiores para com ele, e, isso o eximia da preocupação com a avaliação moral de suas ações, que poderia com segurança deixar a cargo dos que comandavam”.
Eis o paradoxo ressaltado por Bauman:, não existe necessidade de orientar o nosso modo de agir conforme padrões determinados. Afinal, os códigos de ética nem sempre são lembrados porque a maioria se comporta e decide seguindo o hábito e a rotina, desde que nenhuma pessoa dificulte ou impeça de se fazer o usual.
Os especialistas em ética trazem sempre argumentos coerentes e fundamentados racionalmente, além de garantias infalíveis a fim de preservarem seu status dentro da dinâmica social.
Mas ainda se questiona: Tais peritos realmente entendem de modo adequado à ética? E, se a ausência dos experts, se traduzisse na incapacidade nossa em descobrir como devemos nos comportar perante o Outro? E, quando finalmente nos definirmos como pessoas verdadeiramente morais e decentes? (In: BAUMAN, Z., A vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna[10]).
A resposta ao questionamento de Bauman quando não observada pela nossa responsabilidade, pode seguir a própria sugestão do filósofo. De que cedo ou tarde começaremos a procurar intensamente em nossa vontade, uma orientação confiável de “pessoas do saber”. Se deixarmos de confiar em nosso julgamento, iremos se tornar sensíveis ao medo de estarmos errados.
Receamos o pecado, a culpa ou vergonha, mas sentimos a necessidade da mão útil do perito para nos trazer o conforto da segurança. Trata-se de um medo que amplia a dependência de especialização. A necessidade de uma especialização ética, torna-se autoevidente e, sobretudo autorreproduzida. (In: BAUMAN, Z., Modernidade e Holocausto).
O fato de ser autorreproduzida revela uma preocupação aguda. Quando se delega a decisão de nossas escolhas a um perito em ética, por não se saber lidar com a ambivalência, incerteza ou dúvida, desse tipo de ação, da autoridade na qual está mais capacitada a decidir o destino do homem comum.
Para Zygmunt Bauman, a ética pós-moderna é aquela que abandonou a ilusão da universalidade para leis morais e assume que é a competência moral de seus membros que torna possível a existência contínua e o bem- estar da sociedade.
Segundo Bauman, os sujeitos capazes de decisões próprias sem serem coagidos por um sistema de normas[11] elaboradas por legisladores que contam com a força para fazê-las cumprir, são sujeitos que desenvolvem o senso de responsabilidade necessário para lidar com situações que exigem consenso.
Eis o início da erosão nas relações humanas e a produção em massa da indiferença na qual se instaura o chamado cenário “normal” da vida cotidiana. Afinal, a Ética da Idade Moderna trouxe novos modos de criar a ordem e segurança, diante de um passado expectante. Identifica-se a ansiedade de se libertar dos grilhões impostos pelo Deus ditado pelo cristianismo, a partir da razão e, que trazia a garantia sólida de um futuro promissor.
A nova arquitetura ética prescreve novos modelos de atuação onde o dever-ser se torna mais autoevidente, mas sem as bases que possam ser demonstráveis, calculáveis e previstas. Enfim, a Ética seria tão-somente mais uma opinião pessoal na qual sua autoridade seria destronada pela objetividade e universalidade.
Surge ainda outro questionamento até mais incômodo: É possível que a ética seja sempre fundamentada na razão?[12] Em caso positivo e sob semelhante argumento, a moral poderia ser explicada a partir desses critérios capazes de controlar, ou ao menos, conter o mal e disseminar o bem[13]?
Examinando o núcleo dos fenômenos éticos, a moral se revela ser o mais caótico meio. Metaforicamente não seria mais aquela luz branca irradiada pela beleza de sua estrutura lógica. Vivemos numa cegueira moral.
Quando utilizamos o conceito de insensibilidade moral para denotar algum tipo de comportamento empedernido, desumano e implacável, ou apenas, uma postura imperturbável e indiferente, assumida e manifestada em relação aos problemas e atribulações de outras pessoas, sendo o tipo de postura que se exemplifica no gesto de Pôncio Pilatos, ao lavar as mãos diante do destino de Cristo.
Aliás, cogitamos em insensibilidade como metáfora, sua localização básica fica na esfera dos fenômenos anatômicos e fisiológicos dos quais é extraída seu significado fundamental que é a disfunção de alguns órgãos dos sentidos, seja ela ótica, auditiva, olfativa ou táctil, resultando na incapacidade de perceber estímulos que em condições normais evocariam imagens, sons ou outras impressões (...).
A não percepção dos primeiros sinais de que algo pode dar ou já está dando errado com nossa capacidade de conviver e, com a convivência com a comunidade humana, e que, se nada for feito, as coisas poderão piorar, significa que o perigo saiu de nossa vista e, tem sido subestimado por tempo suficiente para desabilitar as interações humanas como fatores potenciais de autodefesa comunal – tornando-as superficiais, frágeis e díspares”. (...).
Com a dor moral sufocada antes de se tornar insuportável e preocupante, a rede de vínculos humanos composta de fios morais se torna cada vez mais débil e frágil, vindo mesmo a se esgarçar. Com cidadãos treinados a buscar a salvação de seus contratempos e a solução de seus problemas nos mercados de consumo, a política pode (ou é estimulada), pressionada e, em última instância, coagida a interpelar seus súditos como cidadãos, e a redefinir em primeiro lugar, o ardor consumista como virtude cívica e, a atividade de consumo como a realização da principal tarefa de um cidadão”.
A principal condição ética da modernidade era o fato de que tudo se explicava, tudo era previsto, antevisto e controlado. Tal modo promoveu a homogeneização de condutas humanas que se tornam universais e descontextualizadas do tempo, espaço e cultura. Tal ética se destina a salvar a todos de seus medos e angústias e, também criar novos medos[14], os quais todos se tornam seus reféns.
A fundamentação racional da ética representa um terreno ambivalente posto que tenha base caótica, não sendo explicada ou contida. E ser caótico, é estar desprovido de estrutura. Pensando a estrutura como uma distribuição assimétrica de probabilidades, uma não-aleatoriedade dos eventos...
“O caos é o que há de mais aterrador para as promessas acenadas pela rotina do estabelecido. A sociedade é uma fuga do medo, mas também é solo fértil desse medo e, dele se alimenta é dele a garra com que ela nós detém e extrai sua força”. (...). (In: BAUMAN, Z., A vida em fragmentos sobre a ética pós-moderna).
Conforme Bauman nos instigou, há uma outra indagação é feita: Por que devo ser moral? E daí, surgiram outras questões: O que me torna responsável pelo Outro? Esses questionamentos são cada vez mais atormentantes por conta da liquefação da ética e a liquefação do mundo.
Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para ele, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”.
Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa.
Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro.
Descrições de líquidos são fatos instantâneas, que precisam ser datadas. (In: Bauman, Z., Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001).
A liquefação[15] da modernidade transforma-se no período histórico também chamado de pós-modernidade. A modernidade demonstrava as promessas estáveis, sólidas e que se tornaram líquidas. Havia um projeto de vida elaborado pela razão instrumental que aos poucos foi se saturando e, passa a demandar por outras viabilidades de conveniência.
Horkheimer[16] rememora os efeitos produzidos pela expressão “lógica instrumental”. Pois a redução da razão a um mero instrumento afeta finalmente até mesmo seu caráter como instrumento. O espírito antifilosófico que é inseparável do conceito subjetivo da razão e que na Europa culminou a perseguição totalitária nos intelectuais fossem ou não seus precursores, é sintomático da degradação da razão.
Os críticos tradicionais e conservadores cometem um erro fundamental quando atacam a civilização moderna, sem atacarem ao mesmo tempo o embrutecimento que é apenas um outro aspecto do mesmo processo.
O intelecto humano[17] que tem origens biológicas e sociais, não é uma entidade absoluta, isolada e independente. Foi declarado ser assim apenas como resultado da divisão social do trabalho a fim de justificar esta última na base da constituição natural do homem (In: Horkheimer[18], Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2000).
Bauman com acerto chamou a Ética na Pós-Modernidade como a “Era da Moral”. O referido fundamento nuclear dos fenômenos éticos não consegue ser exaurido dentro de normas precisas calculáveis. A moral, para Bauman, não pode ser demonstrada tampouco logicamente deduzida. Moral é categoria contingente, ambivalente e incontível.
É a única autoridade capaz de orientar os seres humanos para compreensão de si, pois flui na incerteza do desejo. Bauman advertiu conforme in litteris:
“Se não houver essa força e essa autoridade, os seres humanos estarão abandonados ao seu próprio juízo e à sua própria vontade. E, estes, como os filósofos argumentam e os pregadores tentam fazer com que as pessoas entendam, e podem dar à luz apenas o pecado e o mal; como os teólogos nos explicaram de forma convincente, não se pode confiar neles para produzir com comportamento correto ou fazer passar um julgamento correto. Não pode haver algo como uma “moral eticamente infundada”, e uma moralidade autofundada é, gritante e deploravelmente, algo infundado do ponto de vista ético. De uma coisa podemos ter certeza: não importa quanta moralidade haja ou possa haver numa sociedade que tenha reconhecido estar sem chão, sem propósito e diante do abismo atravessado apenas por uma frágil prancha feita por convenções, ela pode apenas ser uma moral eticamente infundada. Como tal, é e continuará a ser incontrolável, imprevisível. Ela se constrói da mesma maneira pode se demonstrar e se reconstruir de outra forma no curso da sociabilidade (...).”
Eis um novo confronto moral versus sociabilidade[19]. A moral pode ser observada a partir de dois critérios, a saber: 1. A sua ambivalência; 2. Sua responsabilidade e proximidade. Assim, a referida categoria torna-se o fundamento não-fundado na qual se constata a ausência de qualquer argumento primordial anterior à Moral.
Questiona-se que antes da moral[20] aparece “o Ser” sob o ângulo da Ontologia, porém, não é possível reduzir a existência alheia ao self moral pela descrição indiferente e vazia do Ser.
“Numa moralidade[21] que vem antes de o ser existir, não há nada para justificar minha responsabilidade, e ainda, menos para determinar que eu seja responsável e, que a responsabilidade é minha; a determinação e justificação são traços do ser, do ser ontológico, o único ser que há, afinal. E o leitor razoável estará certo ao apontar que “antes do ser” não existe nada e mesmo se existisse, não saberíamos nada sobre ele de alguma forma – não da forma – como sabemos sobre fatos (...) não existe nenhum outro lugar para a moralidade senão antes do ser (...)”. (In: BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-Moderna).
No momento em que o Outro surge diante do Eu, não existem os fundamentos ou justificativas razoáveis que expliquem minha obrigação de cuidado com Outrem.
É na relação com o desconhecido, no “ser-junto-com Outro” no qual se desvela minha humanidade. O caminho da ambivalência desenha a cartografia de minha responsabilidade e não exaure numa lista finita de obrigações.
A ambivalência retrata o caráter fragmentário da vida. É a incerteza produzida pelas nossas percepções sobre o que é – ou venha a ser – razoável e irrazoável. Essas consequências não-antecipadas mostram a necessária ponderação na qual precisa ser realizada a fim de compreender o trânsito entre os aspectos dicotômicos da vida.
A ambivalência[22] denota a ausência de uma resposta pronta, infalível para que as nossas angústias e tormentos sejam eliminados e se retome ao afago e segurança dos enunciados éticos propostos pelos códigos ou seus especialistas.
O caminho a ser percorrido para se desenhar a Moral é tortuoso[23], não existem atalhos os quais possibilitem um rápido percurso. Fechar os olhos e se tornar indiferente diante da vida também não é uma opção adequada.
A “Era da Moral” no pensamento de Zygmunt Bauman, não pode ser descrita pelo modelo Marilyn Monroe (no qual o desapego às consequências de nossas ações perpetua um futuro dionisíaco, descompromissado e irresponsável). Refletindo sobre a imagem de Peter Parker[24] – o Homem Aranha, onde se identificam a maturação, motivação, angústia e a dificuldade de se tornar uma pessoa moral a cada escolha feita. Esse é o início da caminhada perene e dúbia de se tornar responsável.
O segundo aspecto sobre a moral conforme os argumentos da Bauman é a responsabilidade. A referida categoria antes citada, revela a necessidade de se repersonalizar a Moral e tirá-la da couraça rígida posta pelos códigos de ética, isto é, trazê-la ao início do caminho ético e não promover apenas a sua finalidade o que a faz ganhar nítidos contornos utilitaristas.
Não existe responsabilidade sem alteridade. “É na relação coma incerteza chamada ouro no qual se tece a compreensão sobre “Ser Moral” [25]. O silêncio do Outro é insuportável. Será necessário provocar sua presença a fim de sua voz tornar-se audível, mas nem sempre esse fenômeno é possível.
O Outro pode optar por não se manifestar e, nesse não-fazer, precisa-se encontrar o sentido infinito no qual destrona o “Império do Eu”. O outro é horizonte moral no qual se persegue, mas que, a cada passo, se afasta. Essa é o fundamento do “Eu Moral” (...) um eu sempre perseguido pela suspeição de que ele não é suficientemente moral.
Fora do contexto social, não há moral. O sedimento da responsabilidade pela alteridade surge com a proximidade. Bauman elucidou com clareza solar, in litteris:
“(...) A proximidade está satisfeita com o ser que ela é – proximidade. E está disposta a permanecer como tal: estado de permanente atenção[26], venha o que vier. Responsabilidade nunca completa, nunca exaurida, nunca passada. Esperar pelo Outro para que exerça o seu direito de comandar, direito que nenhum comando já dado e obedecido pode diminuir”. (In: Bauman, Z., Ética Pós-Moderna).
A proximidade revela minha responsabilidade incondicional através de estar “junto com o outro”. Há de se esperar o desvelar do outro até que sua voz seja audível e que sua mensagem seja compreensível. Mas essa espera há de ser mediada conforme os parâmetros humanos.
Eis a aporia[27] da proximidade: o outro se aproxima e se distancia, ao mesmo tempo. A moral na perspectiva da responsabilidade e proximidade, produz intensas antíteses, tais como o amor e ódio, cuidado e indiferença, entre outras.
Essa é ambivalência, o conflito humano e original e que se tenta, todos os dias, delegá-la ou eliminá-la para que os especialistas em Ética digam a todos o que é bom, o que é mau.
Conforme enunciou Bauman, “Ser Moral” é legitimar novamente as emoções, a responsabilidade e saber transitar com certa serenidade, no pantanoso caminho de escolhas as quais revelam, com maior ou menor grau – o nosso ir e vir entre a pluralidade de infinitos as quais se manifestam nas relações humanas momentâneas e finitas.
Enfim, trata-se de uma mistura paradoxal, entre a apreensão e esperança. “Ser moral” não significa ser bom ou mau, mas lidar com as consequências produzidas pelas nossas ações diante de “junto com o outro”.
“Ser moral” significa tender a fazer certas escolhas sob condições de aguda e dolorosa incerteza. Eis o desafio da Pós-modernidade, na qual precisa ser insistente: fundar uma condição moral de vida na qual cada pessoa se torna, de modo incondicional, responsável pelo Outro[28].
Trata-se de uma moralidade sem a presença de códigos de ética. A presença do Outro impõe à vontade do Eu ilimitado. Jamais cessa o caminhar[29] do ser humano para se tornar mais moral. A condição de contínuo aperfeiçoamento moral é perene e possui duas faces: guarda em si a salvação ou maldição de todos.
Ainda questionou Bauman: Qual dessas imagens se tornará a mais duradoura? A resposta depende de nossas escolhas morais de todos com todos.
Mas por que devo ser moral? A resposta é complexa. A Moral não se justifica, mas existe no momento em que há a pessoa.
Na relação com o Outro, desvenda-se minha responsabilidade incondicional. Descobre-se o íntimo significado de humanidade. Esse é o fundamento que precisa aparecer desde o início de uma elaboração ética que não se exaure em mandamentos, mas se desenvolve nas incertezas morais consolidadas pela responsabilidade e proximidade entre cada horizonte infinito manifestado no terreno da existência.
O cenário contemporâneo mundial revela descrença frente ao ser humano. Não existem mais esperanças capazes de animar as utopias do devir. A escolha de minhas decisões é incerta e não pode ser controlada.
Questiona-se: será mesmo possível determinar, com precisão, o que é bom e o mau? Toda escolha no qual se direciona para o bom, trará bons resultados? Ser moral significa ser bom[30]? Como é possível “Ser Moral”? Como se diferencia a Ética da Moral[31]?
E, as perguntas não cessam e, segundo o cenário contemporâneo, precisar-se-ia de especialista nessa vertente do conhecimento humano[32].
A modernidade inaugurou a “Era da Ética”. A pluralidade de condutas, a mescla de interesses, a ambivalência da vida de todos os dias, essas características não fazem parte do projeto civilizador desenhado pelo período histórico.
Precisa-se intensamente da História para garantir a infalibilidade do futuro guiado pela razão. Imortaliza-se o futuro como condição de se antever os efeitos benéficos criados pelo “mundo racional” no momento presente. O controle do imprevisível e sua possível erradicação é o triunfo da razão lógica.
A definição sobre o que seja bom, bem como os seus contrários, não pode ser elaborada pela mistura de percepções do homem comum. A trilha desenhada pelos seus interesses é confusa, ambígua e incerta.
A ausência de um fundamento sólido, estável e coerente no qual se justifique a demonstração da proposição é descompassada com os ideais do citado período histórico. Somente a autoridade do conhecimento pode liderar o homem comum para sua plena emancipação.
A universalização das condutas a partir dos códigos de ética, torna-se imperativo a caracterizar uma civilização como moderna. Com o passar do tempo, a matéria prima para a composição da Ética, ou seja, conclui-se que a moral esmoreceu. A angustiante tarefa de escolha moral não pertence mais ao sujeito, o poder decisório migrou do espaço público para o espaço privado.
O que determina o que é bom ou mau doravante é o mercado[33] e, não mais, a consciência humana.
As escolhas morais denotam responsabilidade. E essa possibilidade somente existe porque o Outro mostra, pela sua fragilidade do Ser, os limites do Ego.
Frise-se que nenhuma ação moral existe fora do contexto social. Por esse motivo, qualquer atitude é uma escolha moral. Envolve um juízo de preferência na qual precisa fundamentado pela razão lógica.
Essa é a legitimidade das emoções – um sentir algo com o Outro -, um “ser para” na qual justifica a responsabilidade moral por meio da alteridade e proximidade.
A “Era da Moral” é uma aporia. Não há respostas simples e prontas tampouco garantias infalíveis para seu aperfeiçoamento. Somente quando se compreender a natureza ambivalente, dúbia e incerta da moral, a Ética deixará de exigir a homogeneização das condutas como meio de se garantir a ordem e segurança de todos. Há, pois, uma angústia e um alívio na qual dignifica o “ser moral”.
Ética e Moral crescem no mesmo solo fértil no qual o húmus é a responsabilidade que se inova e reinventa na relação infinita do Eu e Tu. Esse é o horizonte utópico da Pós-modernidade na qual se sabe, com maturidade lidar com a responsabilidade incondicional de todos com todos[34].
Ao analisar detidamente a crise contemporânea podemos perscrutar o passado, o que não significa uma homenagem aos mortos, mas deve nos levar a venerar a história e justificar alguma esperança no futuro, onde presenciamos a confluência das vertentes gregas e judaico-cristãs que constituíram a identidade de nossa civilização e nos capacita a vencer a inércia da modernidade que aprisionou o pensamento na estéril abstração.