O artigo 406 do novo Código Civil vem gerando acirradas discussões a respeito do montante devido à guisa de juros legais, quando não houver estipulação contratual a respeito.
Na liça do antigo diploma, preconizava o art. 1.062 que tal referencial era de 6% ao ano.
Entendemos que o novel dispositivo impõe regra constitucional de isonomia, e procurando equiparar as taxas devidas no âmbito privado e particular, não poderia ser mais explícito do que foi, tendo em vista que a história passada de nossa economia é prolixa na criação de indexadores de toda ordem, uns para avenças da construção civil, outras para correção de índice de poupança e FGTS, outros específicos para tributos, apenas para citar alguns.
O debate, apesar de ainda não muito disseminado nos Tribunais, inexistindo posição definitiva daquele a quem cabe o controle da interpretação da legislação infraconstitucional, já vem se disseminando na doutrina.
Entre os que defendem que a nova taxa autorizada pelo novo Código é a SELIC, como FÁBIO AJBESZYC, em artigo publicado no site Consultor jurídico (www.conjur.uol.com.br/textos/180041/), fica assentado que:
"Logo, os juros legais, pela dicção do citado dispositivo do novo Código Civil, são fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional, o que nos leva a crer que o limite da taxa de juros estipulada pela ‘Lei de Usura’ é o dobro da taxa utilizada pela Fazenda Nacional para a cobrança dos impostos a ela devidos."
Isto não obstante já anteveja o mesmo autor a volatilidade do índice referencial apontado visto que
"deve-se lembrar que se o Conselho Monetário Nacional alterar a taxa SELIC (utilizada para a mora do pagamento do impostos da Fazenda Nacional) alterar-se-á também a taxa de juros convencionada entre as partes, o que significa que o contrato deverá prever que a mora será calculada pelo percentual representativo do dobro da taxa utilizada pela Fazenda Nacional para a mora do pagamento a ela devido"
A fragilidade da manifestação já desponta, por si só, o arbítrio e a falta de segurança jurídica que seria deixar ao talante de um mero Conselho do Governo Federal, por meio de diploma infra-legal, a determinação do que deveria ser cobrado à guisa de sanção pela impontualidade no pagamento de toda e qualquer avença cível onde não esteja convenção contrária.
Além do mais, há que se destacar que a atitude do novel diploma está em consonância com o seu espírito, visto que longe, de obrigar uma aplicação isolada, tende a albergar cláusulas gerais e a induzir o intérprete à uma primazia da interpretação sistemática, sendo não um fim em si mesmo, mas um mecanismo de efetivação das garantias do Direito Civil Constitucional. Não por outra razão aduz ROBERTO BRAGA ANDRADE que anteriormente "o espectro da análise legislativa restringia-se sempre às operações unitariamente consideradas, não envolvendo qualquer ponderação sobre os seus reflexos na economia global da sociedade" enquanto que hoje destaca-se a sua visão macro-jurídica "como elo de uma cadeia de operações capaz de irradiar efeitos positivos ou negativos sobre todas as engrenagens do processo econômico – produção, comercialização e consumo" [1].
No que diz respeito aos juros, é ponto pacífico entre parte dos doutrinadores, dentre os quais me incluo, que há de haver proporcionalidade entre a necessidade do sistema de sancionar o devedor faltoso e a necessidade de se adequar tal imperativo com as garantias de dignidade da pessoa humana e intangibilidade patrimonial previstas nos artigos 170, caput e 5º, XXII, ambos da Carta Política, de maneira que a falta de pontualidade não pode levar à espoliação completa do accipiens.
Adotando tal premissa constitucional, destacamos nossa concordância com o entendimento esposado por JUDITH MARTINS-COSTA de não ser admissível o uso da SELIC como referencial de punição de mora, visto que não se afina com a ordem constitucional a respeito da taxa de juros reais:
"o art. 406 está conectado à idéia de "juros reais". Assim, para o cálculo dos juros legais moratórios, deve ser utilizada taxa empregada para a cobrança dos juros de mora devidos à Fazenda Nacional desde que essa taxa seja adstrita aos juros reais. Portanto, o emprego de qualquer taxa que englobe mais do que juros reais, ou coisa diversa do que os juros reais, será inconstitucional, contrariando a eficácia inibitória do art. 192, § 3°. Relembre-se: juro real é o juro nominal deflacionado, ou seja, o juro excedente à taxa inflacionária. A taxa SELIC (Taxa Referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia- SELIC) - fixada por ato unilateral do Poder Executivo através do Conselho de Política Monetária do Banco Central(COPOM) -, é calculada sobre os juros cobrados nas operações de venda de título negociável, em operação financeira com cláusula de recompra. É uma taxa que reflete a remuneração dos investidores pela compra e venda de títulos públicos. Portanto, é uma "taxa flutuante", determinada exclusivamente pela relação entre o mercado ("investidores") e o Governo, servindo para mensurar a remuneração de títulos públicos. O problema está em transformar a taxa SELIC em taxa de mensuração de juros por mora. Como desvendou o STJ (no RESP 215881/PR – Rel. Min. FRANCIULLI NETO, in DJ de 19.06.2000) na taxa SELIC não está embutido apenas o juro real, mas também a correção monetária, e, "mesmo nas hipóteses em que não há adição explícita de correção monetária e Taxa SELIC", esta contém "embutida fator de neutralização da inflação", na medida em que "é calculada sobre os juros cobrados nas operações de venda de título negociável em operação financeira com cláusula de compromisso de recompra e não sobre a diferença entre o valor de compra e de resgate dos títulos", refletindo "a remuneração dos investidores pela compra e venda dos títulos públicos e não os rendimentos do Governo com a negociação e renegociação da Dívida Pública Mobiliária Federal interna (DPMFi)". Como se vê, em nenhuma hipótese a taxa SELIC refletirá a "taxa de juros reais", de modo que não serve para os fins do art. 406." [2]
Aliás, é bom que se diga, a constitucionalidade da SELIC, embora não tenha sido ainda pacificada pela Corte Suprema, vem sendo questionada pelo STJ, como se vê do Acórdão no Resp 464.605-SP, Rel. Min. FRANCIULLI NETTO, com a seguinte redação:
"Entende este signatário que a taxa SELIC para fins tributários é, a um só tempo, inconstitucional e ilegal. Como não há pronunciamento de mérito da Corte Especial destes Egrégio Tribunal que, decisão relativamente recente, não conheceu da argüição de inconstitucionalidade correspectiva (cf. Incidente de Inconstitucionalidade no Resp 215.881/PR), permanecendo a mácula também na esfera infraconstitucional, nada está a empecer seja essa indigitada Taxa proscrita do sistema e substituída pelos juros previstos no Código Tributário (art. 161, §1º, do CTN).
A utilização da taxa SELIC como remuneração de títulos é perfeitamente legal, pois toca ao BACEN e ao Tesouro Nacional ditar as regras sobre os títulos públicos e sua remuneração. Nesse ponto, nada há de ilegal ou inconstitucional. A balda exsurge quando se transplantou a Taxa SELIC, sem lei, para o terreno tributário.
Para que a Taxa SELIC pudesse ser albergada para fins tributários, havia imperiosa necessidade de lei estabelecendo os critérios para sua exteriorização, por ser notório e agora até vetusto o princípio de que o contribuinte deve de antemão saber como será apurado o quantum debeatur da obrigação tributária. (...)
Fixada a Taxa SELIC por ato unilateral da Administração, além desses princípios, fica também vergastado o princípio da indelegabilidade de competência tributária. Se todo tributo deve ser definido em lei, não há esquecer sua quantificação monetária ou mera readaptação de seu valor, bem como os juros, devem ser, também, previsto em lei."
Por fim, vale referir à conclusão que resultou da Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, ao final de 2002:
"A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, §3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a 12% (doze por cento) ao ano."
De todo o exposto resulta claro que a taxa de juros legais hoje aplicáveis a título de mora no âmbito do Direito Civil, desde a edição do novo Código, é de 1% ao mês, visto ser esta a prevista no CTN, art. 161, §1º. Ressalve-se que, consoante jurisprudência do STF, resultante da ADIN 4, esta não se aplica quando uma das partes seja instituição financeira, também entendendo o STJ que neste termo abrangem-se as administradoras de cartões de crédito (súmula 283), valendo aquele percentual, portanto, apenas quando os contratos forem estritamente civis, e não quando houver pacto de consumo.
De outra parte, ressalve-se que, a nosso viso, continua em vigor a "lei de usura" (Decreto 22.626/33), que limita a convenção dos juros ao dobro indicado, ou seja, 2% a.m., também valendo a ressalva acima indicada. Isto tendo em vista tratar-se de lex specialis, que não foi derrogada neste preciso tópico pelo Código Civil atual.
Notas
1 A Limitação Constitucional da Taxa de Juros Reais: Gênese, Fundamentos e Regime Jurídico. Belo Horizonte, 1991, inédito, p. 7 e 38/39.
2 http://www.intelligentiajuridica.com.br/bate-boca/bb-abr2003_3.html