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Sucessão legítima:aspectos históricos e fundamentos

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Agenda 24/02/2017 às 17:09

Sucessão Legítima, seus aspectos históricos e fundamentos.

1.1.            Conceito

Suceder significa substituir, vir depois, do latim succedere, na sucessão se verifica a substituição do titular de direitos, obrigações, bens. Há, assim, uma mudança na titularidade de uma relação jurídica, sendo certo que o Direito das Sucessões regula a destinação do patrimônio do de cujus (de cujus sucessione agitur). Eis o sentido estrito do vocábulo "sucessão" para o direito. [1]

Sucessão, no sentido lato, ensina Itabaiana de Oliveira,

“aplica-se a todos os modos derivados de adquirir a propriedade – é a sucessão inter vivos. Assim o comprador sucede ao vendedor. [...] no sentido restrito – implica uma ideia de morte, significando um dos modos de adquirir direitos e de transmitir, total ou parcialmente, a herança às pessoas a quem é devolvidaé a sucessão causa mortis”.  [2]

Sucessão, na lição de Pontes de Miranda:  “Em sentido mais estreito, mais técnico, suceder é herdar, ou haver por legado, ou haver por deixa modal: supõe a morte de quem foi sucedido”.  [3]

Clovis Bevilacqua assim define sucessão:

“Sucessão, em sentido geral e vulgar, é a sequência de fenômenos ou fatos que aparecerem uns após outros, ou vinculados por uma relação de causa, ora conjuntos por outras relações. Na technologia juridica, significa à transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa a outra. Sendo assim, a sucessão pressupõe, como doutrina SAVIGNY, a conexão intima e imediata entre o direito da primeira pessoa, que realiza a transferência, e o da segunda a quem é ela feita, de modo que o direito subsista o mesmo sem solução de continuidade, não obstante haver mudado o seu sujeito”.  [4]

Constata-se que suceder significa substituir uma pessoa física, pré-falecida, na titularidade dos bens, direitos, e deveres, respeitando-se os limites impostos pela legislação civil, quanto aos seus efeitos e responsabilidades. A sucessão constitui, portanto, uma forma de transmissão do patrimônio deixado pelo de cujus aos seus sucessores, herdeiros e legatários.

 Silvio de Salvo Venosa assim define, “suceder é substituir, tomar o lugar de outrem no campo dos fenômenos jurídicos. Na sucessão, existe uma substituição do titular de um direito”. [5]

A sucessão pode ser classificada pela totalidade ou não da transferência do patrimônio. Sucessão a título universal se verifica quando se transfere a totalidade do patrimônio. A título singular, na transferência de bem, objeto singularmente considerado, (legado).

A sucessão será mortis causa ou inter vivos considerando-se o fato que lhe origina. Fala-se em sucessão inter vivos a título singular, na transmissão de bens, cessão de crédito, nos contratos, sendo proibidos os pactos sucessórios sobre herança de pessoa viva- art. 426 do Código Civil - pois são nulos de pleno direito.

A repulsa pelos pactos sucessórios remonta ao Direito Romano, que já os considerava nulos. Da mesma forma, a doutrina canônica e as primeiras codificações portuguesas, a afonsina, a manoelina e as Ordenações Filipinas as proibiam. [6]

Sobre essa proibição, esclarece Maria Berenice Dias:

 “De forma expressa a lei proíbe pacto sucessório: a herança de pessoa viva não pode ser objeto de contrato (art. 426). A vedação decorre da revogabilidade do testamento, que é um dos seus elementos essenciais. Qualquer  avença que afronte esta vedação legal é nula (CC 166 VI): é nulo o negócio jurídico quando tiver por objeto fraudar lei imperativa” [7].

Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf lecionam:

“Não existe objeto lícito em um contrato onde se negocia com a própria morte, podendo levar ao desejo expressivo de se obter a morte de alguém, além de limitar, e muito, a disposição dos bens do autor da herança. Não à toa, outorgou-se-lhes a denominação de pacta corvina, evidenciando a repulsa provocada por semelhante estipulação”. [8]

A sucessão mortis causa pressupõe a morte, que se prova com o registro do óbito, consoante dispõe o artigo 9º, I do Código Civil Brasileiro.

Na lição de Pontes de Miranda: “A morte só se refere a pessoas físicas. Não há morte das pessoas jurídicas: há extinção”.

Observe-se, mais, que a sucessão legítima tratada pelo Direito das Sucessões não guarda relação com a sucessão empresarial da pessoa jurídica. São institutos diferentes, uma vez que a sucessão da pessoa humana é baseada no Direito de Família, enquanto que a sucessão da pessoa jurídica baseada no Direito Empresarial e Societário.

Insta observar que a pessoa jurídica poderá ser legatária, recebendo herança através de disposição testamentária, muito comum no caso das fundações.

Ainda, sobre o conceito de sucessão, Salomão Cateb assim define: “Depreende-se que sucessão vem a ser a transmissão do patrimônio de um a pessoa morta para uma ou mais pessoas vivas. O patrimônio conjunto de direitos e obrigações, de créditos e débitos, é, sobre certo aspecto, sinônimo de herança”. [9]

Entre os doutrinadores contemporâneos, Flávio Tartuce aduz: “Genericamente, ou em sentido amplo, a palavra sucessão significa transmissão, o que pode ocorrer por ato intervivos ou mortis causa”.  [10]

Essa última constitui o objeto do presente estudo.

A sucessão mortis causa destina o patrimônio deixado por uma pessoa física que tenha falecido, configurando-se um dos modos de aquisição derivada da propriedade, consubstanciado na transmissão de bens, direitos, obrigações ocorridas em razão do evento morte. Sua origem, requisitos, modalidades serão abordadas a seguir.

1.2.            Origem

A sucessão, bem como o Direito Sucessório remonta a antiguidade, baseado no Direito Romano e no Direito Germânico. No Brasil, também, sofreu forte influência do Direito Português.

Não se tem como precisar, com exatidão, a origem temporal da sucessão. Engels em sua obra - A origem da família, da propriedade privada e do Estado, destaca a evolução das famílias antes matriarcais, tribais e sua evolução para os primeiros núcleos sociais, sob a proteção de gerência do pater, a fixação da família em área determinada, com a exploração da agricultura, foi determinante para o surgimento da noção de propriedade.

Com o fortalecimento da família, principia-se a ideia de propriedade, sua manutenção e transmissão.

No livro Cidade Antiga de Fustel de Coulanges, extrai-se os meandros da família romana especialmente, como ela se configurava e o que era importante para ela. Naquele momento, havia a prevalência da condição biológica, uma vez que o ius sanguini era o ponto nodal das relações patrimoniais decorrentes da paternidade e filiação. A propriedade e a sua transmissão aos seus herdeiros representavam a continuação do culto doméstico. A transmissão era feita através do testamento.[11]

O primeiro fundamento da sucessão foi, portanto, de origem religiosa, a continuação do de cujus no culto doméstico, a preservação dos manes. Adquirir a propriedade também significava adquirir o culto de seus antepassados.

De tal sorte que, já no Código de Manu, (200 A.C. e 200 D.C.), de origem hindu, havia a designação das oferendas aos antepassados. [12]

Na Grécia e na Índia, havia estreita conexão entre a sucessão de um homem e o cumprimento dos ritos em sua honra e de seus antepassados. O sucessor deveria ser do sexo masculino, podendo o pai designar um marido para a filha, caso não tivesse filhos homens, a fim de possuir um sucessor. [13]

Em Roma, primitivamente, o herdeiro era o continuador dos sacras do defunto. Esclarece Clóvis Bevilácqua, que a Lei das XII Tábuas, inicialmente deferia a sucessão legítima, aos que a o tempo da morte do de cujus se achavam sob o seu pátrio poder, inclusive a mulher, que herdava loco filiae. Era a primeira ordem dos sucessíveis – heredes sui et necessarii .

Contemporâneamente, Salomão de Araújo Cateb, para quem a “a evolução da família coincide com a ideia jurídica de propriedade e Cogliolo faz consentir o fundamento da sucessão nesses dois institutos combinados, a propriedade e a família, que são admiravelmente harmônicos, existindo entre eles um tão íntimo consenso que consolidou a sociedade dos povos europeus.”[14]

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka alerta sobre as diferenças entre o Direito Romano em seu aspecto meramente histórico, e a abordagem desse direito dada pelos juristas, e seu aspecto romanceado para a época:

“é verdade que houve, nos costumes romanos, um culto aos antepassados e que esse culto teve um caráter religioso, e não meramente civil; no entanto não significa que esse culto dos antepassados fosse àquele que fartamente se verifica nas religiões orientais ou mesmo no Egito, o qual os romanos conheciam tão bem. Era uma forma diferente de religião, muito diversa de tudo a que estamos, hoje, acostumados”.[15]

Maria Berenice Dias observa que “nas sociedades organizadas em bases capitalistas, o direito sucessório surge com o reconhecimento natural da propriedade privada, estando ligado à continuação do culto familiar, [...] é o desejo de transcender para além da existência, de resguardar o futuro e bem estar da prole”. [16]

Contextualizar qualquer conceito a partir de dados históricos não é tarefa das mais fáceis. Os historiadores juntamente com os arqueólogos, e outros tantos profissionais, como paleontólogos, por exemplo, buscam em seus estudos e pesquisa a comprovação científica dos relatos compilados nos diversos textos de referência.

Não é tarefa dos juristas a comprovação histórica dos fatos. Assim, os juristas, pelo menos em regra, aceitam as pesquisas feitas pelos historiadores, de tal sorte que podem incidir mesmos erros de interpretação daqueles que as pesquisaram e retrataram.

Dito isso, inicia-se o estudo pelo Direito Romano.

1.2.1. Sucessão no Direito Romano.

Parafraseando John Gilissen, os romanos foram os grandes juristas da antiguidade. Conseguiram realizar um sistema jurídico notável, tendo sido seus jurisconsultos dos sécuslos II e II, os primeiros a realizar uma técnica jurídica e uma ciência do Direito.[17]

A sucessão em Roma era testamentária, como regra. A ausência de testamento implicava em grave ofensa ao seu sucessor, bem como desonra ao de cujus, pois além dos bens, seu sucessor deveria responder por seu corpo e pelo culto dos antepassados, uma vez que o culto era familiar, doméstico. [18]

Abelardo Saraiva da Cunha Lobo ensina que o Direito Romano pode ser dividido em quatro fases distintas, sendo que a primeira delas, mores veterum a consuetudinária, em suas palavras:

“Na primeira fase, que pode chamar-se a dos mores veterum, era rigorosamente consuetudinário, não tinha um caráter próprio e específico para poder distinguir-se da religião. Nascia, por assim dizer, do altar da família, propagava-se de lar em lar, dominava os espíritos por uma prática constante, supersticiosa, e cristalizava-se, afinal, como regra, para resolver casos particulares. A função sacerdotal era, ao mesmo tempo, uma função legislativa: o Pater Famílias era o Ministro da Religião e Legislador da Casa. “ [19]

O Direito Romano, seu estudo, divisões, sempre suscitou discussões entre os estudiosos, pelo seu aspecto histórico, tido como romanceado, seja por sua importância filosófica ou por sua contribuição ao pensamento jurídico. [20]

É na primeira fase em que se vê o surgimento dos conceitos do princípio da vontade subjetiva, o princípio criador do Estado e o princípio religioso.

Como esclarece José Carlos Moreira Alves, tanto a história interna como a externa se dividem em períodos, cuja delimitação, os autores também divergem[21].

Para referido autor, a história interna é dividida em tres fases, a primeira do direito antigo – das origens de Roma até a Lex Aebutia. A segunda do direito clássico de 126 a.C até o término do reinado de Diocleciano em 305 d.C, e a terceira – do direito pós clássico da morte de Diocleciano até a morte de Justiniano – 565 d. C.

No que tange à história externa, sugere João Carlos Moreira Alves, que seja dividido pelas diferentes formas de governo que Roma possuiu, ficando assim classificado: 1º período Real, das origens de Roma até a queda da Realeza em 520 a.C; 2º período republicano de 510 a 27 a.C, no momento em que o Senado investe Otaviano no poder com o título de princeps ; 3ª período do principado, de 27 a.C até 285 d.C, com o início do dominato por Otaviano. 4º período – Dominato de 285 a 585 d. C. data em que morre Justinano.

No período real, segundo a tradição, Terentílio Arsa teria proposto que fosse organizada uma comissão, que redigisse as leis que viessem a por fim na luta entre a plebe e o patriciado. Assim organizou-se um Decenvirato.

Foi Ápio Cláudio que ao término do trabalho dos dez magistrados, apresentou ao povo as X Tábuas, e como se o trabalho não tivesse completo, instituiu novo Decenvirato que redigiu mais duas tábuas, surgindo assim a Lei das XII Tábuas. [22]

Com a Lei das XII Tábuas, houve a previsão de três classes de herdeiros, caso o de cujus morresse sem que tivesse providenciado seu testamento.[23]

Na Tábua V – DE HOEREDITATIBUS ET TUTELIS – das Heranças e Tutelas lê-se: "IV – Si intestato moritur, cui suus heres nec sit, adgnatus proximus familiam habeto". Traduzindo, se a pessoa morre intestado, sem herdeiro, que o agnato mais próximo receba a herança[24].

Sobre a primeira sui heredes, como leciona Fulstel de Colanges: “a linguagem jurídica de Roma chama o filho de heres suus, como se dissesse: heres sui ipsius. Com efeito, ele não herda senão de si próprio. Entre o pai e ele não há nem doação, nem legado, nem mudança de propriedade. Há simplesmente continuação: Morte parentis continuatur dominium. — Ainda em vida do pai, o filho era coproprietário do campo e da casa: Vivo quoque patre dominus existimatur”. [25]

A segunda classe chamada de agnatus proximus era composta pelos parentes colaterais, mas de origem exclusivamente paterna, uma vez que as filhas e esposas estavam sujeitas aos manes de seus maridos. A última categoria era dos gentiles, membros das gens (grupo familiar).

Esclarece Silvio A.B. Meira, que o “escritor francês Eugène Revillout nos seus livros Précis de Droit Egypyien e Les Origines Egyptiennes Du Droit Civ. Romain defende a tese que a lei decenviral continha muitos preceitos oriundos da legislação egípcia[26].   

Diverso do defendido pelos autores clássicos, como Bonfante, para quem a influência era grega.[27]

Verifica-se em cada fase do Direito Romano a evolução dos institutos jurídicos, e sua abrangência, frisando-se que, em Roma ou a sucessão seria testamentária, ou legítima, inexistindo a possibilidade de coexistência conjunta. Tal ocorria, como elucida Clóvis Bevilacqua, pois o herdeiro era o continuador da pessoa do defunto, nas relações econômicas, familiares e no culto.[28]

Sucessão na acepção de Itabaiana de Oliveira:

a)              “A SUCESSÃO – A sucessão, portanto, é uma consequência necessária à conservação das afeições da família pela perpetuação da personalidade e ao cumprimento dos deveres que ela impõe na continuação da propriedade: primeiramente - pela afeição que, em regra, existia entre o defunto e seus mais próximos parentes [...] o templo dos deuses Manes;

b)            depois – pelo princípio da propriedade familiar, que forma um todo, uma universitas, na qual cada membro tem uma parte ideal”.[29]

A evolução da successio no Direito Romano, a semelhança do sistema atual, designava a transferência de direito de uma pessoa à outra, dividindo-se em sucessão causa mortis e sucessão inter vivos.

Como dito, no Direito Romano pós-clássico, surge a obra legislativa de Justiniano composta de quatro partes: Institutas – manual escolar;  Digesto compilação dos iuras; Código - compilação das leges; e Novelas – reunião das constituições promulgadas por Justiniano. Conhecido por Corpus iuris Civilis. [30]     

Por sua vez, com a reformulação nas leis de Roma (Novella 117 e 228) estabeleceu-se uma nova ordem de vocação hereditária, chamando-os na seguinte ordem: os descendentes, os ascendentes em concurso com os irmãos e irmãs germanos, os agnados e cognatos, o cônjuge sobrevivo e, na ausência destes, o fisco.

Sobre essa realidade histórica César Fiúza esclarece que:

 “Grosso modo, pode-se dizer que quatro são as ordens de influência sobre a sucessão legítima. Historicamente, esteve presente em todos os povos da antiguidade – romanos, egípcios, gregos, babilônios, hindus, chineses, árabes, hebreus etc. Na atualidade, vamos encontrá-lo em todos os países ocidentais e orientais. Até mesmo nos de orientação socialista que, em princípio, e como já observamos, posicionam-se contra a sucessão causa mortis”.  [31]

A grandeza dos ensinamentos dos Romanos, não consistiu em compilar e estabelecer leis, mas em vivê-las plenamente, distinguindo o que é jurídico do que é afetivo e moral. Suas diretrizes acabaram por regular as questões entre diversos povos, apresentavam soluções para os conflitos entre as diversas etnias que viviam no mesmo território e praticavam o comércio.

1.2.2. – Sucessão no Egito Antigo

 John Gilissen ensina que os “mais antigos escritos de natureza jurídica aparecem nos finais do 4º ou começo do 5º milênio, isto é, cerca de 3000 anos antes de nossa era, por um lado egípicio, por outro na Mesopotâmia. O Egito não nos transmitiu até a data códigos ou livros jurídicos, mas foi a primeira civilização na história da humanidade que desenvolveu um sistema jurídico que pode se chamar individualista.”[32]

Na antiguidade, o povo egípcio influenciou todo o ocidente. Sua cultura, escrita, arte, religião, aquitetura, impactaram na construção de diversas sociedades, crenças e valores. Segundo Burns:

 “a organização social do Egito distinguia-se por um surpeendente grau de maleabilidade. Jamais se desenvolveu um sistema inflexível de castas. Todos os homens eram iguais perante a lei. Ainda que naturalmente existissem graus de desigualdades econômicas, ninguém se sentia aprisionado para sempre na sua categoria social, a menos que se tratasse de um membro da família real.”[33]

Ainda para Burns: poucas civilizações antigas soprepujam a egípcia em importância para o mundo moderno. Mesmo a influência dos hebreus não teve maior extensão. Da terra dos faraós vieram o germe e o estímulo de numerosas conquistas intelectuais dos tempos posteriores. A filosofia, a aritmética, a geometria, a astronomia, a escrita e a literatura tiveram seu marco inicial nessa época.

Os egípcios desenvolveram, também, um dos mais antigos sistemas de jurisprudência e de teoria política. Dentre estes sistemas destacam-se, consoante Burns, a criação da escritura de propriedade, do contrato escrito e do testamento. Assim relata o referido autor:

“As maiores contribuições do povo egípicio, viu-se no campo da religião e da ética individual e social. [...]. A teoria ética egípcia foi a fonte na qual várias nações foram buscar suas normas de moralidade pessoal e social, pois ela compreendia não somente a condenação do assassínio, do furto e do adultério, mas incluía, também, elevadas concepções de justiça, de benevolência e da igualdade de todos os homens. [...].Vêem-se ali a fonte das doutrinas básicas de todas as grandes religiões do mundo, os princípios do direito e da moralidade, os fundamentos do progresso científico as formas de organização econômica.” [34]

Itabaiana de Oliveira discorda desse posicionamento, consoante se depreeende de sua explanação: “O testamento foi inteiramente desconhecido no antigo Egito, na Índia e na legislação mosaica; e, unicamente, penetrou na Grécia, para Atenas após as reformas de SOLON, e, para Esparta, depois da guerra do Peloponeso.”[35]

Pontes de Miranda, sobre a sucessão no Egito Antigo, relata:

“Pelo que se sabe através dos papiros, a divisio parentum inter liberos foi frequente no Egito. [...] Havia diferenças entre o instituto egípicio e o romano. Fingia-se, naquele, ter havido venda, com os dois títulos de transmissão (o da propriedade e o da posse) e com a transmissão imediata da propriedade, de modo que os genitores ficavam como administradores e ususfrutuários. No direito grego-egípcio, os outorgados pagavam o imposto de transmissão.”[36]

Á guisa de exemplo, se transcreve relatos extraídos dos textos compilados pelos escribas. Escrito por Amon-nakht, escriba da tumba do rei de entrada proibida.

Ano 4, 3º mês de inundação, dia 17. Neste dia o trabalhador Khaem-nun e seus filhos novamente se apresentaram no tribunal dizendo: 'Quanto aos escritos que a cidadã Nau-nakht tomada relativamente à sua propriedade, eles serão (realizados) exatamente como prescrito. O operário Nufe-hotep não deve participar nela". Ele fez um juramento pelo Senhor, dizendo: "Se eu mude meu compromisso, de modo a contestá-la de novo, '- (que então) ele seria susceptível de 100 golpes e ser privado da sua propriedade." [37]

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Adoção Papyrus 

"Ano 1, 3 meses de Verão, dia 20, sob a majestade do Rei do Alto e do Baixo Egito Ramsés (XI). Neste dia, de proclamação para Amon do Radiante nobre deus , que surge e brilha, e faz oferta para Amon. Então Neb-nufe, meu marido, fez uma escrita para mim, o músico de Seth Nanufe, e me fez uma filha dele, e escreveu para todos que não possuía nenhum filho ou filha além de mim . "Todo o lucro que fiz com ela, vou legar a Nanufe, minha esposa, e se <qualquer um dos> meus próprios irmãos ou irmãs surgem para confrontá-la na minha morte manhã ou após essa data e dizer" Vamos ter parte dos bens de meu irmão ser dada (para mim) - "antes de muitas e diversas testemunhas:. ...  Eis que fez a doação para Rennufe, minha esposa, este dia antes Huy-irymu, minha irmã '.[38]

Como se denota, não há certezas nas antigas práticas legislativas e nas origens da sucessão, e tão pouco sua conotação atual é a mesma que a dos povos antigos. Os valores, ciência, política e práticas eram diversos, cada etnia contribuiu de uma forma ou de outra para a construção do pensamento e do direito atual.

 1.2.3. Sucessão na Civilização Mesopotâmica

Enquanto a cultura egípicia era religiosa, a mesopotâmica era jurídica. Inicialmente formado pelos Sumérios, tendo sido, posteriormente substituídos pelos babilônicos. Nessa época, surgiu o famoso Rei, Hamurabi.

A mais alta realização da civilização mesopotâmica foi, sem dúvida, seu sistema de leis. Dentre eles a compilação do chamado Código de Hamurabi. [39]

Posteriormente, se tornou a base do direito de muitos outros povos, como os assírios, caldeus, babilônicos e hebreus.

O código de Hamurabi possui diversos artigos que visam regular a vida cotidiana, as relações familiares, comerciais, bem como devem agir os representantes da lei nos processos, com a lei de talião, a administração da justiça, a noção de desigualdade perante a lei, os homicídios, a distribuição dos bens, por exemplo:

 150º - Se alguém dá à mulher campo, horto, casa e bens e lhe deixa um ato escrito, depois da morte do marido, seus filhos não deverão levantar contestação: a mãe pode legar o que lhe foi deixado a um de seus filhos que ela prefira, nem deverá dar coisa alguma aos irmãos.

165º - Se alguém doa ao filho predileto campo, horto e casa e lavra sobre isso um ato, se mais tarde o pai morre e os irmãos dividem, eles deverão entregar-lhe a doação do pai e ele poderá tomá-la; fora disso se deverão dividir entre si os bens paternos.

As disposições sucessórias como se percebe pelos textos, eram feitas através de escritos, testamentos, que podiam ser questionados diante dos juízes.

Sem sombra de dúvidas, tanto o código de Hamurabi, quanto a Lei das XII Tábuas influenciaram o direito na civilização ocidental, ainda hoja, não há quem desconheça a lei de talião, “olho por olho, braço por braço etc”, e mais especificamente no direito sucessório, as três classes de herdeiros, prevista na Lei das XII Tábuas. (sui heredes, agnatus proximus, gentiles)

Conclui-se que, todos os ensinamentos das civilizações romanas, etruscas, helenicas, egípicias, hindu, e outras tantas, que influenciaram nas legislações modernas, foram resgatados, de uma forma ou de outra, pelos glosadores durante a Idade Média e pós-glosadores.

O direito justinianeu que vigeu até o império bizantino, passou a exercer forte influência na Itália. Mesmo com a invasão lombarda ao norte, expulsando os bizantinos, não se conseguiu extinguir o Direito Romano.

A escola de Bolonha, na Itália, no século XII projetou sua influência em Montepellier e Bourges, locais em que foram fundadas escolas de direito.

A partir do século XVI, surgiram muitos jurisconsultos na França, na chamada escola Humanista. Os capitães de Carlos Magno, por exemplo, aproveitaram muitos ensinamentos consuetudinários germânicos.

Consta que o arcebispo de Canterbery, na Inglaterra, tenha redigido uma obra entitulada Petri Exceptiones Legum Romanarum, alicerçada no Direito justinianeu e destinada a ensinar direito na Normandia. [40]

A aplicação do Direito Romano na Alemanha, por exemplo, se operou até o final do séc. XIX, com a promulgação do Código Civil em 18 de agosto de 1896, tendo entrado em vigor em 1º de janeiro de 1900. [41]

1.3.            Morte

Muitas são as discussões sobre o evento morte, como esta se configura, principalmente diante dos avanços da medicina, tais como a constatação da morte cerebral, o estudo sobre o estado de coma, a criogenia e a preservação do corpo da gestante diante da morte cerebral, mantida por aparelhos a fim de ultimar a gestação.

 Sobre tal questionamento, apesar de não ser o objeto principal da presente dissertação, que pretende expor sobre a dogmática da sucessão legítima, se faz necessária sua discussão.

Consoante o Código Civil, arts. 6º a 8º, a morte da pessoa natural poderá ser: 1) a morte real, 2) a morte presumida sem decretação de ausência, após a devida justificação, 3) morte presumida, declarando a ausência e, 4) a hipótese de comoriência. [42]

A morte, ora considerada, é a expressa no artigo 6º do Código Civil, segundo o qual, “a existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura da sucessão definitiva”.

Parafraseando Pontes de Miranda, a morte é o elemento principal do suporte fático da herança.

Nesse diapasão, esclarece Flávio Tartuce: “a morte real é aquela que se dá com corpo presente, não havendo a necessidade de buscar socorro as presunções.” [43]

Dessa forma, para que a sucessão seja aberta, o fato jurídico, stricto sensu - a morte - precisa ser provado. A prova regular da morte é o atestado de óbito.

Contudo, há casos em que a pessoa desaparece de seu domicilio sem deixar qualquer designação para seu patrimônio, ou qualquer indício do que tenha lhe ocorrido. A ausência da pessoa, sem que se possua sinal de vida, notícias, paradeiro, autoriza a seus herdeiros, o pedido de sucessão provisória (art. 22 e 26 do Código Civil). [44]

Como esclarece Pontes de Miranda: no direito brasileiro, em virtude do princípio da saisina, os bens do falecido não podem ficar sem dono, de modo nenhum e quaisquer que sejam as circunstâncias. [45]

Elucidam Débora Gozzo e Silvio de Salvo Venosa: “O ausente, pois, é uma exceção dentro do sistema do direito sucessório pátrio, uma vez que admite a abertura de sua sucessão, única e simplesmente em razão de seu desaparecimento, sem que haja certeza de seu falecimento.”[46]

Os casos de ausência pressupõem que o corpo não tenha sido localizado, que não se possua notícias sobre a pessoa, fato comum em catástrofes, como tsunami, terremoto, acidentes aéreos, marítimos, ou mesmo de pessoas desaparecidas em combate, ou ainda de pessoa que se encontrava em perigo de vida.

A ausência traz em seu âmago a incerteza, e provoca o desejo de resposta de quem ficou, nem sempre alcançado, para tanto, relembre-se das pessoas desaparecidas durante a ditadura militar no Brasil.

 Considerando que os bens não podem ficar sem destinação, os sucessores terão que promover a sucessão provisória, obedecer ao transcurso do tempo determinado em lei, sem notícias da pessoa ausente, para que se torne definitiva.

De fato, muitos são os questionamentos atuais sobre a morte, seu momento, definição, em razão das mudanças provocadas pelo avanço da medicina. Nesse contexto, ressalte-se a obra de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, intitulada Morrer e Suceder – Passado e Presente da Transmissão Sucessória Concorrente, da qual se destaca o seguinte trecho:

“O tema traz indagações muito instigantes e intrigantes, como se perguntar a respeito do deve ser feito quando alguém se encontra em estado terminal, mas não morre; ou perguntar se, em determinadas situações (de vida vegetativa, por exemplo), lidamos com um corpo, ou com um não corpo. Estas são questões que ainda escapavam à análise, ao tempo de Orlando Gomes, mas que hoje em dia – em época de manipulação da vida e da morte – já se tornou uma matéria de extrema importância. A existência da pessoa natural termina com a morte, mas como se dá a morte, afinal? Eis a questão. Trata-se, a propósito, da única morte autêntica que existe, a morte natural. Como ela ocorre? É muito importante definir quando ela se dá, mas para isso, é preciso, evidentemente, levar em consideração como ela se dá”. [47]

O grau de dificuldade para a definição do momento morte, em como e quando se dá é diretamente influenciado pelo desenvolvimento das práticas médicas e científicas, como já dito. Nessa seara, expõe Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:

“No caso relatado, todavia o organismo daquela mulher, uma vez diagnosticada a morte cerebral, só se mantinha por auxílio dos aparelhos. Se dependesse da sua própria força natural, ela não prosperaria como suporte biológico para o feto que havia em seu ventre. Aquela mulher em estado vegetativo não era mais uma pessoa viva, mas um instrumento vivo. Ela de fato não tinha mais personalidade porque seu corpo – seu corpo, e não seu ser – era mantido artificialmente, como uma máquina”.[48]

De toda sorte, Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf chamam atenção para o fato de que :

“Com o advento dos transplantes, introduziu-se novo conceito de morte, o da morte encefálica, posto que há retirada dos órgãos do indivíduo clinicamente morto, o de cujus, com o coração ‘ainda batendo’, para a disposição dos órgãos e tecidos; tem seus parâmetros estabelecidos pela Resolução n. 1.480 do Conselho Federal de Medicina, inspirado no protocolo de Harvard, e vem regulada pela Lei n. 9.434/97, denominada Lei de Transplantes, que, entretanto, não conceitua o fenômeno da morte”. [49]

Além dos casos de presunção quanto à própria justificação e ausência, o Código Civil em seu art. 8º traz outro caso de presunção legal e relativa, a comoriência.

A comoriência se caracteriza pela morte de dois ou mais indivíduos, na mesma ocasião, sem que se possa determinar quem faleceu primeiro. Trata-se de uma hipótese comum nos casos de acidentes.   

Sobre o tema, Itabaiana de Oliveira expõe:

“ É forçoso constatar, de modo preciso o momento da morte do de cujus , ou indicar com justeza, quando ela ocorreu, porque as vezes acontece morrerem muitas pessoas no mesmo desastre e ser necessário decidir qual delas morreu primeiro para se deferir a sucessão  quando, entre elas, existiam relações de direito, podendo resultar do fato da morte direito para algumas delas.”[50]

Até a individualização do momento da morte de cada envolvido, frise-se se possível, haverá presunção relativa de que morreram ao mesmo tempo. O atestado de óbito junto ao lado médico provará quem faleceu primeiro, determinando, dessa forma, a transmissão sucessória.

Insta lembrar que, a comoriência somente será objeto de análise se as pessoas que faleceram tivessem grau de parentesco, constituíssem herdeiros ou sucessores entre si.

Infelizmente, frente a constante violência que a sociedade vivencia hoje, de grupos extremistas, guerras civis, narcotráfico e principalmente com os constantes ataques terroristas, a sua ocorrência vem aumentando. 

A morte de diversas famílias sírias que fugindo da guerra se lançaram ao mar, e que nunca chegaram com vida ao continente, demonstra a triste realidade da comoriência, e o grau de dificuldade para fixação do momento morte.

Além da forma de transmissão sucessória, a fixação do momento da morte também impacta temporalmente, na incidência das leis sobre a sucessão. As disposições sucessórias devem obedecer ao direito vigente no momento da morte do de cujus.

Com a morte, termina personalidade jurídica da pessoa, abrindo-se a sucessão, lembrando que não basta o evento morte para que a sucessão seja aberta, mister se faz a existência de bens, direitos a serem transmitidos e da existência de sucessores que os recebam.

A morte sempre desafia sentimentos díspares de conformidade com a cultura envolvida, da mesma forma os cientistas tentam burla-la, prolongar a vida.

Recentemente foi noticiado que pesquisadores médicos indianos estão se dedicando a estudos de reversão da morte cerebral. O tema é bem polêmico, desafiam questões de ordem ética, moral e até mesmo religiosa, e de fato, os pacientes usados no estudo, já tiveram morte cerebral. Para os pesquisadores, se um paciente sair da morte cerebral para o estado de coma, já será uma mudança de paradigma, uma vez que objetivam a regeneração e reparo tecidural com células tronco [51]

O fato é que o evento morte sempre desafiou o homem, sendo esse o seu limite. A medicina, as ciências biológicas buscam, de fato, almejam modificar essa condição, e as mudanças provocadas pelo avanço da ciência impactam no direito, sobre a disposição do corpo, da morte em si, de seu momento objeto do estudo em comento, para fixação da abertura da sucessão.

1.4.            Dos fundamentos da Sucessão

Como toda ciência de cunho sociológico não faltam teorias para a fundamentação da sucessão no âmbito da ciência jurídica. Para os jusnaturalistas, as transmissões sucessórias são decorrências das conveniências sociais, podendo ser abolidas, as relações familiares e a família estão indissoluvelmente ligadas à ideia de sucessão[52].

Para Engels, a família consanguínea seria a primeira etapa da família. Nela, os grupos conjugais se separam por gerações. Todos os avôs e avós, dentro dos limites da família, são, em seu conjunto, maridos e mulheres entre si. O mesmo ocorre com os respectivos filhos, e assim sucessivamente com outros parentes. [53]

Com o desenvolvimento dos conceitos familiares, de posse e propriedade identificáveis, surgiu e se consolidou o Direito das Sucessões. A conservação e a transferência dos bens interessam tanto aos sucessores quanto à sociedade, a fim de que os bens não fiquem a ermo, sem proprietários.

A lei era intramuros. Ao chefe da família competia distribuir a justiça entre seus pares, sustentá-los, bem como aqueles que sob seu teto se encontravam, incluindo os escravos. Buscava-se preservar a família, bens e status. [54]

Washington de Barros Monteiro expõe, em seu livro Curso de Direito Civil - Direito das Sucessões, o fato de que a herança foi um dos institutos jurídicos mais discutidos, sofreu ataques dos jusnaturalistas, como Montesquieu e Rosseau, e dos socialistas, para quem a herança favorece, e a sucessão contrariam os princípios da Justiça e do interesse social. [55]

Referido autor conclui que o direito das sucessões é um complemento do direito de propriedade, uma vez que sem a transmissão, o proprietário não passaria de mero usufrutuário vitalício. [56]

Consoante os ensinamentos de Caio Mário da Silva Pereira, os fundamentos da sucessão podem ser considerados através de várias óticas, a histórica, a familial, a individual e a social:

“1. Histórica. A sucessão ab intestato está presente em todos os povos da antiguidade [...]. Em Roma, fundou-se originariamente sobre a relação de parentesco agnatício, e só mais tarde, com o desenvolvimento da Urbs, envolveu para as de consanguinidade – cognatio – especialmente por influência pretoriana.

2.             Familial. Há na sucessão legítima um fator de coesão e unidade da família, assegurando a permanência dos bens dentro desse organismo, independentemente de se lhe negar personalidade jurídica.

3.             Individual. A ordem de vocação hereditária obedece ao critério da afeição presumida. Os herdeiros são chamados a suceder uma ordem de gradação afetiva que normalmente encontra confirmação na realidade [...].

4.             Social. Tendo em linha de conta que é no ambiente social que o homem vive e labora, e que a organização social lhe permite constituir e resguardar seu patrimônio”.[57]

 O direito sucessório, na visão de Maria Berenice Dias, tem sua razão de ser no direito de propriedade conjugado ao direito das famílias. [58]

Como se observa, família e sucessão são Institutos intimamente ligados, a ideia de preservar e transmitir o bem adquirido, para a proteção e manutenção da família, é o liame que os une. Note-se que, sem o pressuposto morte não se fala em sucessão mortis causa.

A sucessão, bem como o Direito Sucessório remonta a antiguidade, com fulcro na formação familiar e na propriedade privada, bem representadas no Direito Romano, e no Germânico, como já dito.

De toda maneira, inicialmente, com a individualização do patrimônio e das relações pessoais, fortaleceram-se os laços de afeição familiares, e o desejo de perpetuar a família, reforçando-se a transmissão da propriedade entre pais e filhos.

A propriedade, atrelada aos laços familiares e a crescente individualidade, e não mais como objeto de uma coletividade, corporificou a ideia de sucessão, como esclarece Itabaiana de Oliveira:

“a propriedade corporificou, assim, a ideia de perpetuidade da família, pelo culto dos antepassados, traduzindo nas cerimônias e nos sacrifícios em hora dos mortos, de modo que não se pudesse adquirir a propriedade sem o culto, nem este sem aquela”. [59]

A transmissão da propriedade através da herança gerou diversas discussões de âmbito judicial e filosófico, como esclarece Clovis Bevilacqua:

“MONTESQUIEU achava ‘que a lei natural ordenava aos paes que alimentassem os seus filhos, mas não os obrigava a fazê-los herdeiros. AUGUSTO COMTE, julgando immoral a sucessão legítima, dizia, por seu turno, que no estado normal da civilização, os filhos, depois de receberem uma educação completa, não deviam esperar dos paes, qualquer que fosse sua fortuna, senão o auxílio indispensável para a honrosa inauguração da carreira que escolhessem”. [60]

Ainda, na lição de Itabaiana de Oliveira, são várias as correntes que fundamentam a sucessão. Leia-se:

“17. A DOUTRINA GERALMENTE SEGUIDA. A doutrina geralmente seguida, entretanto, é que a sucessão testamentária é considerada cromo emanação do direito de personalidade e a sucessão legítima é justificada pelos laços de família. Êste é o resultado das investigações históricas feitas pelos mais conceituados escritores”. (grifos originais) [61]

Consoante Caio Mario da Silva Pereira, “funda-se, genericamente, no fato de se ligar uma pessoa a um agrupamento familiar, pela consanguinidade ou pelo casamento, e faltando um ou outro, de sujeitar-se à soberania de um Estado”.  [62]

Outro fundamento, ou justificativa para o direito das sucessões, cinge-se no direito de propriedade. A propriedade como forma de manutenção e perpetuidade do poder da família, resultando, como consequência natural, a restrição na ordem de vocação hereditária.

Nessa esteira, Silvio de Salvo Venosa esclarece:

“quando se corporifica a família, nasce à propriedade privada. Com a família e a propriedade surge o direito sucessório como continuidade do corpo familiar..... Desse modo, a ligação do direito das sucessões com o direito da família e o direito das coisas é muito estreita”. [63]

Nascendo a família e a organização social, nasce o direito à propriedade, de tal sorte que família e sucessões estão intimamente imbricadas.

O direito das sucessões nas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka:

 “ trata do universo das heranças, testamentos, legados – todos os aspectos da clara relação com a morte, mas igualmente, com a vida. É um conjunto de institutos fundamental em qualquer sistema jurídico, que possui expressão considerável nos sistemas inspirados no direito romano”.  [64]

Segundo Flávio Tartuce:

“A partir das lições dos mestres, conclui-se que o Direito Sucessório está baseado no direito de propriedade e na sua função social (art. 5º, XXII e XXIII, da CF/88). No entanto, mais do que isso, a sucessão mortis causa tem esteio na valorização constante da dignidade humana, seja do ponto de vista individual ou coletivo, conforme os arts. 1º, inciso III, e 3º, inciso I da Constituição Federal de 1988, tratando o último preceito da solidariedade social com marcante incidência nas relações privadas”. [65]

Independentemente do critério empregado, após a Constituição Federal de 1988 há de se considerar como fundamento primordial a dignidade da pessoa humana, posteriormente o direito à herança, bem como a função social da propriedade.

A propósito, Ana Luiza M. Nevares afirma: “O reconhecimento da sucessão mortis causa constitui um corolário da garantia do direito à propriedade privada (CF/88, art. 5º, caput, XXII e XXIII)”.  [66]

De fato, o legislador pátrio ao tratar da sucessão, não observou as constantes transformações pelas quais a família brasileira passou, e tão pouco a mudança de paradigmas estabelecida pela nossa Constituição Federal, a mudança da ratio, para o pilar Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, da proteção absoluta do patrimônio para a função social da propriedade, da intangibilidade da legítima, pelo tratamento dado ao cônjuge, ao companheiro e na proporção da legítima a ser distribuída entre os filhos.

Nesse diapasão, Paulo Lôbo:

“Após o advento da Constituição de 1988, extinguiriam-se as distinções entre os descendentes, notadamente entre os filhos, ficando proibidas as designações discriminatórias; todos são iguais em direitos e deveres, inclusive sucessórios, independentemente da origem biológica ou socioafetiva, neste caso incluindo-se a adoção, posse de estado de filho e a concepção por inseminação artificial heteróloga”. [67]

Como já salientado, com a Constituição Federal de 1988 houve a mudança de locus do centro da normativa do Direito Privado. A ratio da Constituição Federal, na esfera da vida privada é a prevalência da dignidade da pessoa humana.

Assim, na visão dessa autora, o mais forte fundamento da herança encontra-se na Constituição Federal, no seu artigo 5º, inciso XXX, segundo o qual “é garantido o direito de herança”, não como um fim em si mesmo, mas como meio visando assegurar a dignidade da pessoa humana.

Portanto, partilho do entendimento de que os como fundamentos da sucessão são a dignidade da pessoa humana, seu direito a herança e a função social da propriedade, que juntos possibilitam a manutenção, mesmo que mínima, para sua sobrevivência e amparo da família.

1.5. Princípios Aplicáveis à Sucessão.

 Como assevera Rizzato Nunes, “nenhuma interpretação será bem feita se for desprezado um princípio. É que ele, como estrela máxima do universo ético-jurídico, vai sempre influir no conteúdo e alcance de todas as normas.”[68]

Por força dos princípios constitucionais, e da ordem jurídica estabelecida de 1988 até hoje, se depreende que os princípios que norteiam a Sucessão são: a) da dignidade da pessoa humana, b) da igualdade, c) da função social da propriedade, d) da boa-fé; e) da autonomia privada; f) do droit de saisine, g) da responsabilização do herdeiro intra vires hereditatis, h) da função social da herança; i) da territorialidade; j) da intertemporalidade, e l) do respeito à vontade manifestada.

a)      Da Dignidade da Pessoa Humana.

As mudanças sociais, os novos conceitos de família, impactaram e continuam influenciando no capítulo das sucessões, por serem temas intrinsecamente associados, antecedente e consequente. Rui Celso Reali Fragoso sobre o tema, assim se pronuncia:

“O novo Código Civil não teve a pretensão de elucidar todas as questões de direito privado, apenas expressa as regras jurídicas estáveis, deixando para leis especiais às normas ainda sujeitas a mutações. [...] Porém, no que diz respeito ao direito sucessório, o legislador não acompanhou a evolução histórica, moral e legislativa já existentes, tendo ocorrido uma regressão nos direitos da (o) companheira (o)”. [69]

Destaque-se que o Código Civil de 2002 não foi concebido vislumbrando a multiplicidade de núcleos familiares, mas somente com foco na chamada família tradicionalmente surgida através do matrimônio. Isso acarreta distorções entre a norma e a realidade vigente, gerando uma série de questionamentos e dificuldades na aplicação da lei na sucessão, obrigando a análise através da ponderação de valores.

No Direito Sucessório, os valores constitucionais, da dignidade da pessoa humana, da proteção à família, da solidariedade, do direito de herança, da propriedade privada, da intangibilidade da legítima, obrigam a analisar a sucessão através da ponderação de valores, seu cunho axiológico constitucional, a fim de que a sucessão atinja sua função social.

A propósito dessa afirmação, Ana Luiza Maia Nevares leciona que:

“A regulamentação do fenômeno sucessório deve estar em consonância com os valores propugnados pela Constituição Federal, representados na cláusula geral de tutela da pessoa humana (CF/88, art. 1º, III). Forçoso reconhecer que para tanto poucos passos foram dados, não bastando uma profunda e atenta releitura das normas relativas à sucessão hereditária, sendo preciso, ainda, ampla reforma legislativa”. [70]

A manutenção da herança, em vários casos constitui a garantia mínima de subsistência de muitas famílias, permitindo que residam em seus lares, assegurando a dignidade da pessoa humana.

O direito de herança é reconhecido e assegurado constitucionalmente, condição essa que atribui ao instituto da herança à nota de fundamentalidade. Ingo Wolfgang Sarlet elucida:

“O fato de o Constituinte ter guindado os direitos fundamentais à condição de limite material expresso à reforma constitucional pode ser considerado, consoante já assinalado, um dos indicadores da fundamentalidade formal das normas que o consagram. Essa especial proteção dos direitos fundamentais é, sem dúvida, qualidade que os distingue das demais normas constitucionais. A condição de ‘cláusula pétrea’, aliada ao postulado da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais (art. 5º, § 1º, da CF) constitui justamente elemento caracterizador essencial de sua força jurídica reforçada na ordem constitucional pátria”. [71]           

Consagrado o direito de herança como um elemento insuscetível de supressão no ordenamento jurídico brasileiro, a sucessão, após a Constituição Federal de 1988, além de pautar na preservação da propriedade também tem a função de proteger a pessoa humana, a fim de assegurar-lhe condições dignas de sobrevivência, para que atinja suas potencialidades.

O princípio da dignidade da pessoa humana, para Ricardo Castilho, visa:

 "garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do direito civil, de um direito que não mais encontra nos valores individualistas de outrora o seu fundamento axiológico”.[72]

Assim deve ser entendido o princípio da dignidade da pessoa humana nas relações sucessórias.

Partindo para outro regramento importante, o princípio da igualdade está consagrado na Constituição Federal, em diversos artigos e alcançam diversas áreas em direito, que não serão esgotados na presente dissertação.

b) Princípio da Igualdade

Cite-se o artigo 5º da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei, norma que deve ser aplicada ao legislador e ao aplicador da lei. Trata-se de mandamento supremo entre os direitos e as garantias fundamentais.

Como explica Maria Celina Bodin de Moraes:

“A transposição das normas diretivas do sistema de direito civil do texto do Código Civil para a Constituição da República acarretou consequências jurídicas decisivas que se delineiam a partir da alteração da tutela, que era oferecida pelo Código ao “indivíduo” para a proteção, garantida pela Constituição, à dignidade da pessoa humana, elevada à condição de fundamento da República Federativa do Brasil [...]. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do direito civil, de um direito que não mais encontra valores individualistas de outrora o seu fundamento axiológico”. [73]

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho opinam que:

“A isonomia que se busca constitucionalmente não pode apenas aninhar-se formalmente em texto de lei, mas, sim, deve fazer-se materialmente, presente na sociedade brasileira, que se pretende erigir como solidária, justa e democrática. Daí reputamos inconstitucional qualquer determinação legal que trata, de forma discriminatória, aqueles que se encontram na mesma categoria de interesses. [74]

Para todos os indivíduos de iguais características, há de ser aplicada a igualdade material. Da mesma forma impede tratamento diferenciado e discriminatório entre iguais, como no caso da filiação, por força do disposto em seu art. 227, § 6º. Dessa forma, é inconcebível qualquer forma discriminatória no âmbito das famílias, entre filhos e de seus direitos sucessórios.

 Sobre o tema, Euclides de Oliveira ensina que:

 “O princípio igualitário estendeu-se também no plano da formação da família. Nesse ponto, mostram-se de grande impacto as inovações introduzidas pelos arts. 226 e 227 da Constituição. Primeiro, por se proclamar que a entidade familiar pode ser formada pelo casamento, união estável e pela comunidade constituída de qualquer dos pais e de seus descendentes (família monoparental), todas dignas de proteção do Estado. Depois, por se reeditar a norma de plena igualdade de marido e mulher no casamento. E, da mesma forma, por se garantir tratamento igualitário a todos os filhos, havidos ou não do casamento ou por adoção, vedada qualquer discriminação relativa à sua origem”. [75]

O princípio da igualdade no âmbito sucessório assegura a todos indivíduos, igualmente considerados, os mesmos direitos sucessórios, impedindo dessa forma que sucessores de mesma classe sejam preteridos entre si, sem quaisquer justificativas autorizadoras, preservando-lhes a legítima.

Nas palavras de Silvio de Salvo Venosa, só com a atual Constituição é que, definitivamente, e em estágio final, não mais se distinguem direitos de acordo com a origem da filiação. [76]

b)     Da Função Social da Propriedade

A função social da propriedade, além de seu matiz constitucional (art. 183 da CF/88), que relativilizou a propriedade, resulta desse princípio a imposição e ao proprietário e seus sucessores deveres socialmente relevantes, impedindo a prática meramente especulativa da aquisição da propriedade. Dessa forma, os sucessores são obrigados a cumprir sua função social.

A função social da propriedade inibe sua feição individualista e patrimonialista, adequando-a à realidade social, permitindo que se exerçam direitos elementares como o de moradia, ou posse de terra para a subsistência familiar. Dessa forma, há ingerência do legislador, impondo norma de direito público às relações eminentemente privadas, assegurando mais uma vez o principio da dignidade da pessoa humana, inclusive na sucessão.

d) Da Boa-fé

Além da função social, a sucessão deverá observar a boa-fé, um princípio contratual por excelência, encontrado em todas as relações inclusive sucessórias, na busca pelo correto.

A eticidade, consoante Miguel Reale, deve ser um princípio norteador de todo o Direito Civil:

 “Não obstante os méritos desses valores técnicos, não era possível deixar de reconhecer, em nossos dias, a indeclinável participação dos valores éticos no ordenamento jurídico, sem abandono, é claro, das conquistas da técnica jurídica, que com aqueles deve se compatibilizar”. [77]

Na sucessão, a boa-fé é particularmente lembrada quando não observada, seja pela indignidade e ou pela deserdação, temas que não serão abordados na presente dissertação.

 e) Da Autonomia Privada

O princípio da autonomia é basilar no direito, em especial nos contratos, reconhecida como o poder de autodeterminação da pessoa.

Não sem razão assume importância na sucessão. Verifica-se, mais claramente na sucessão testamentária, cuja observação da manifestação da vontade do de cujus há de ser respeitada post morten.

O testamento deflui da autonomia privada do testador, que possui limitação legal, qual seja, a preservação da legítima. No testamento o titular dos bens determina como deverá ser a sua divisão após sua morte.

Outra limitação a autonomia privada são os pactos sucessórios, vedados em nosso ordenamento, consoante art. 426 do Código Civil. 

Os princípios até agora explanados não são exclusivos da sucessão, devendo ser observados em todo o ordenamento jurídico.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho entendem que os princípios específicos do direito sucessório são os elencados nos seguintes itens: f) do droit de saisine, g) da responsabilização do herdeiro intra vires hereditatis, h) da função social da herança; i) da territorialidade; j) da intertemporalidade, e l) do respeito à vontade manifestada.

f) Do Droit De Saisine

O princípio da saisine foi introduzido no direito português pelo “Alvará de 9 de novembro de 1754, seguido do Assento de 16 de fevereiro de 1786, que introduziu no direito luso-brasileiro a transmissão automática dos direitos, que compõe o patrimônio da herança, aos sucessores, legítimos ou não, com toda a propriedade, a possem os direitos reais e os pessoais” [78]

 O princípio da saisine já constava no art. 978 da Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas, e do art. 1.572 do Código Civil de 1.916.[79]

O princípio do droit de saisine consiste na transmissão automática do domínio e posse da herança aos seus hedeiros legítimos e testamentários, na abertura da sucessão. 

O respaldo jurídico para a aplicação do direito da “saisine” encontra-se no artigo 1.784 do Código Civil. [80]

Por conta do referido princípio, com a morte abre-se a sucessão, e os herdeiros já são imediatamente considerados condôminos e copossuidores dos bens deixados pelo de cujus.

Pontes de Miranda ensina que é a investidura legal na herança, compreendendo todos e quaisquer herdeiros, sejam eles legítimos ou testamentários. [81]

Uma das consequências diretas desse importante princípio é que os herdeiros podem, imediatamente defender a posse dos bens da herança. 

Expõe Silvio de Salvo Venosa, que o princípio representa uma apreeensão possessória autorizada. A palavra deriva de saisir (agarrar, apoderar-se). A regra era expressa por adágio corrente no século XIII: ‘Le mort saisit Le vif’ (o morto prende o vivo).[82]

Dois são os efeitos desse princípio, a abertura da sucessão com o evento morte, e a transmissão imediata do direito à herança, há também os efeitos correlatos a esses como expõe Francisco José Cahali, o primeiro deles é a identificação da lei aplicável à data da sucessão e a legitimação para suceder.[83]

O princípio da saisine, que confere a transmissão da posse, ainda que indireta, aos herdeiros independentemente de qualquer outra circunstância.

Para Maria Berenice Dias, a transmissão é instantânea e abrange o domínio e a posse da herança. Mas a posse não é a mesma posse do direito das coisas (art.1.196) A posse do herdeiro é fundanda em título e não de fato. A posse direta somente é adquirida quando da partilha .  [84]

G) Da Responsabilização Do Herdeiro Intra Vires Hereditatis,

O herdeiro não pode responder por encargos superiores à força da herança, previsto no artigo 1792 do Código Civil, é a limitação da intra vires hereditatis, que também é um dos efeitos do droit de saisine.[85]

Não cabe em nosso ordenamento, a chamada herança danosa, aquela em que as dívidas deixadas pelo de cujus superam os bens por ele amealhados e transmitidos aos seus sucessores. Na herança danosa, os sucessores somente receberiam os ônus, as dívidas, o que poderia resultar na ruína dos sucessores.

Insta salientar que cabe aos herdeiros a prova do excesso, que os encargos são superiores às forças da herança.

Dessa forma, as dívidas do falecido devem ser arcadas com o seu patrimônio, não podendo excedê-lo, inserindo-se nos bens de seus sucessores.

Sobre a máxima intra vires hereditatis, manifesta-se Flávio Tartuce:

“Seguindo no estudo das regras gerais a respeito da sucessão, o art. 1.792 do Código Civil, a exemplo de seu antecessor, consagra a máxima sucessória intra vires hereditatis, estabelecendo que o herdeiro não responde por encargos superiores às forças da herança”. [86]

De outra banda, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho expõem :

 “ultra vires hereditatis’, que significa ‘além do conteúdo da herança’. A ideia que representa é a possibilidade de que o herdeiro, com a aceitação pura e simples da herança, possa ser obrigado a pagar suas dívidas e obrigações, não só com os bens do patrimônio do de cujus, mas também com seus próprios bens. [...] A regra foi positivada, de forma expressa, tanto no Código Civil de 1916, quanto na vigente codificação, a saber : art. 1.792 [...]” [87]

A disposição está em consonância com o artigo 391 do Código Civil, que pelo inadimplemento, respondem os bens do devedor, não podendo ultrapassá-los para tingir os bens particulares dos herdeiros, que não participaram daquela reação jurídica e negocial estabelecida pelo de cujus. [88]

H) Da Função Social Da Herança

A função social cinge-se a uma residtribuição da riqueza, da herança deixada pelo de cujus. O direito de herança repercute na esfera individual e coletiva, como proteção e perpetuidade da família. A garantia do direito mínimo de subsistência, de moradia, por exemplo, é um meio assecuratório da dignidade da pessoa humana, garantindo o pleno desenvolvimento dos indivíduos.

Visa dar tratamento equânime aos herdeiros e sucessores do autor da herança.

I) Da Territorialidade;

Nos aspectos processuais, há de se averiguar a questão da temporalidade e a territorialidade..[89]

A territorialidade por sua vez está prevista no art. 1.785 do Código Civil, eis que a  sucessão deverá ser aberta no último domicílio do de cujus. Havendo multiplicidade de domicílios poderá ser aberta a sucessão em qualquer um deles. [90]

Percebe-se na leitura conjunta da Constituição Federal e do atual Código Civil, quão imbuídos na norma civil estão os princípios constitucionais.

Importa ressaltar que muito embora a sucessão testamentária  (arts. 1.857 a 1.990 CC) possua em números, mais artigos, a nossa legislação dá prevalência a sucessão legítima (arts. 1.829 a 1.856 do CC).

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, sobre essa diferença aduzem: “ Soa irônico o fato de a sucessão testamentária ser regulada de forma tão abrangente e exaustiva no Código Civil, consagrando inclusive várias espécies de testamento, a despeito de sua menor aplicação prática.” [91]

J) Da Intertemporalidade

Pela temporalidade, a lei a ser aplicada na sucessão será a vigente na data do óbito do de cujus, nos termos do artigo 1.787 do CC. [92]

Objetiva a segurança jurídica, estabelecendo que a lei a ser aplicada é a data do óbito, não somente para averiguar a lei que regerá a sucessão, mas também as condições nas quais se dará, tais como a capacidade para suceder dos sucessores, e a existência de bens na data, sem os quais não se fala em sucessão.

L) Do Respeito À Vontade Manifestada.

No que tange ao princípio da vontade manifestada do falecido, também conhecida como “favor testamenti”, através do qual se admite a produção de efeitos post mortem em relação ao seu patrimônio.

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho aduzem que “tal princípio deve prevalecer, inclusive, no caso de simples irregularidades testamentárias formais, ou de modificações de fato, se for possível verificar, inequivocadamente, qual era a intenção do testador.”[93]

Ressalte-se que, a liberdade de testar no Brasil sofre a limitação da preservação da legítima, a fim de resguardar os herdeiros necessários.

Esses princípios fundamentais atuam tais e quais verdadeiras estruturas na construção do pensamento jurídico civilista brasileiro, e contribuíram para a modificação do fundamento do Direito das Sucessões, a relativização do Direito de Propriedade, hoje indissolúvel da sua função social, bem como objeto de garantia dos herdeiros enquanto herança.

1.6. Modalidades de Sucessão Causa Mortis

O direito sucessório possui duas grandes vertentes, que são a sucessão legítima, ou ab intestato, e a testamentária.

Nosso Código Civil estabelece duas formas de sucessão causa mortis que são: a) a sucessão legítima, tratada do artigo 1.829 ao art. 1.856 da codificação material, e b) a sucessão testamentária, reguladas dos seus artigos 1.857 ao art. 1.990.

Euclides de Oliveira ensina que qualifica-se como hereditária a sucessão causa mortis, por significar a transmissão dos bens do sucessor que se denomina herdeiro. Pela mesma derivação etimológica do latim haeres, advém do termo herança. [94]

Os pressupostos para a sucessão causa mortis são a morte da pessoa física e a vocação hereditária. Nesse contexto, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka leciona que:

 “Mas, não basta à morte. A sucessão pressupõe ainda, como Orlando Gomes lembra, a vocação hereditária, que pode ter sido instituída pelo de cujus quando em vida (fonte imediata), de forma ampla e restrita, conforme seu testamento tenha abarcado a totalidade, ou apenas parte de seu patrimônio.” [95]

Ainda no que diz respeito ao estudo doutrinário dos requisitos sucessórios, na lição de Washington de Barros Monteiro: “Constituem pressupostos da abertura da sucessão: a) que o de cujus tenha falecido; b) que lhe sobreviva o herdeiro. Vivo o autor da herança, não existe sucessão (viventis nulla hereditatis)”. [96]

 Na mesma linha para Carlos Alberto Dabus Maluf e Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf, dois são os pressupostos da sucessão: “Assim sendo, dois são os pressupostos da sucessão: a morte do autor da herança e a vocação hereditária, estimando-se que desta forma, que lhe sobreviva o herdeiro.” [97]

Feitos os devidos esclarecimentos sobre seus pressupostos, passa-se a sua classificação. A sucessão causa mortis pode ser classificada em razão dos bens e sua destinação.

Será a título universal pela transmissão do todo, de todo o patrimônio do de cujus aos seus sucessores, cada qual recebendo sua parte ideal.

Em nosso direito, a sucessão a título universal somente se admite mortis causa.

A sucessão será a título singular com a transmissão de certos bens a destinatários específicos, os chamados legados.

 O sucessor a título singular é o legatário, que recebe do de cujus, por disposição de última vontade, testamento, coisa certa e determinada que compõem parte do acervo da herança. Dessa forma, não será transmitido o todo, mas parte dele, a uma ou mais pessoas, não a todos que o sucedam.

Além da diferença quanto à nomenclatura e da singularidade ou não de bem atribuídas, as responsabilidades do herdeiro e do legatário também diferem.

Orlando Gomes elucida que:

“O sucessor universal continua a pessoa do finado ou a representa. Com essas expressões quer significar que a substitui inteiramente, investindo-se em seus direitos e obrigações, mas são evidentemente impróprias. A personalidade é intransmissível e a representação supõe nome e por conta de outrem. Em verdade, assume nas relações patrimoniais sua posição Jurídica”.  [98]

Herdeiro, na concepção de Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira: “é aquele que sucede na totalidade ou em parte da herança, sem determinação de valor ou objeto”. [99]

Feitas tais considerações, consigne-se que cabem aos herdeiros os encargos e dívidas na proporção de sua quota, uma vez que, como já dito, este assume o lugar do de cujus, o que não ocorre com o legatário. Da mesma forma, o herdeiro entra na posse imediata do bem, e pode demandar para resguardar a herança, podendo até anular disposição testamentária.

A sucessão universal difere, dessa forma, da sucessão a título singular, limitando-se somente ao bem disposto em testamento – singularum rerum. Ao legatário, tratando-se de coisa certa a receber, já determinada, somente receberá a propriedade a partir do momento fixado para isso, e somente será imitido na posse quando da partilha.

Quem sucede coloca-se no lugar do indivíduo de quem provêm o patrimônio, direitos, dívidas, obrigações e pretensões, limitando-as pelo patrimônio recebido, na fração que é transmitida.

 1.6.2. Sucessão Legítima

 Diz-se que sucessão legítima porque decorre da lei, uma vez que é a norma jurídica que diz como se dá a sucessão, quem tem a capacidade e a legitimidade para suceder ao de cujus (de cujus sucessione agitur). Nas palavras de Flávio Tartuce:

“Em termos gerais, duas são as modalidades básicas de sucessão mortis causa, o que pode ser retirado do art. 1.786 do Código Civil de 2002, sendo primaz para a compreensão da matéria sucessória. A primeira modalidade é a sucessão legítima, a aquela que decorre da lei, que enuncia a ordem de vocação hereditária, presumindo a vontade do autor da herança. É também denominada sucessão ab intestato, justamente por inexistir testamento”. [100]

A sucessão será legítima, na ausência de testamento, ab intestato, ou se havendo testamento este não abarcar todos os bens do falecido, ou ainda se o testamento caducar ou perder o seu objeto, nos termos do art. 1788 do Código Civil.[101]

 Diante da pouca prática testamentária no Brasil, o legislador manteve a prevalência da sucessão legitima. Nesse contexto, demonstra Paulo Lôbo que a sucessão legítima é a preferencial, cabendo destacar: “A sucessão a causa da morte, no direito brasileiro, é preferencialmente legítima, segundo o modelo e a ordem hereditária estabelecidos em lei, ou secundariamente, testamentária, quando o falecido deixar testamento (disposição de última vontade), desde que limitado à parte disponível”. [102]

A sucessão legítima, por ser o objeto do presente estudo será analisada, com maior profundidade item a item.

1.6.3. Sucessão Testamentária

A sucessão testamentária decorre do testamento válido. Cumpre salientar que a liberdade de testar sofre limitações legais, não sendo, portanto absoluta.

Através do testamento é deixado um bem específico, individualizado a alguém, ao que reputamos o termo legado. Cabe pontuar que a palavra legado se origina de legatum, do latim, e exprime a parte da herança deixada pelo testador a alguém. [103]

Assim, quem sucede a título universal é herdeiro, e quem sucede por título singular é o legatário. Como ensina Euclides Benedito de Oliveira:

“Qualifica-se como hereditária a sucessão causa mortis, por significar a transmissão de bens ao sucessor, que se denomina herdeiro. Pela mesma derivação etimológica, do latim haeres, advém o termo “herança”, para significar o conjunto dos bens transmitidos dessa forma, ou acervo hereditário”.[104]

São poucas as pessoas que possuindo bens e herdeiros, optam pela sucessão testamentária, nos dizeres de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, “o brasileiro, não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada.” [105]

A sucessão testamentária constitui um ato personalíssimo, uma vez que configura disposição de última vontade do titular do patrimônio, e da forma como pretende vê-lo distribuído após sua morte.

O testamento é também revogável, e o testador poderá modificá-lo a qualquer momento. Constitui ato unilateral, que se aperfeiçoará no momento de sua abertura e transmissão. Contudo, possui limitação, não sendo, portanto, absoluta a vontade do testador.

Como dito, a sucessão testamentária sofre limitações, o estador deve respeitar a legítima dos herdeiros necessários (art. 1.845 e 1.723 do CC)

 Essa limitação é imposta por lei, qual seja a preservação da legítima, nos expressos termos do art. 1.789 do Código Civil[106].

A legítima é intangível, não podendo ser reduzida em sua essência, ou valor, por disposição testamentária, ou qualquer outra, salvo casos de indignidade e deserdação.

Sobre a legítima, Paulo Lôbo aduz que: “No direito brasileiro a legítima dos herdeiros necessários, também denominada parte legítima ou necessária, corresponde, no mínimo, à metade ou 50% do valor do patrimônio pertencente ao de cujus”. [107]

Pelas regras contidas nos artigos 1.789 e 1.846 do Código Civil, a vontade do testador limita-se à disposição da metade dos seus bens.

A parte sobre a qual não pode dispor o testador é a legítima de seus herdeiros necessários. O valor da legítima corresponde à metade da herança e sua apuração é feita sobre o total dos bens da herança, não incide, contudo, sobre a meação, (art.1.847 CC) uma vez que herança e meação não se confundem.

Contudo, na inexistência de herdeiros necessários, o testador poderá dispor livremente sobre seus bens.

A legítima é intangível, não podendo ser reduzida em sua essência, ou valor, por disposição testamentária, ou qualquer outra, salvo casos de indignidade e deserdação.

Assim, encerro a análise da história e dos fundamentos da sucessão.

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Sobre a autora
Silvia Bellandi Paes de Figueiredo

Advogada formada pela Universidade Mackenzie. Especialista em Direito Empresarial e em Direito Civil. Mestranda em Direito Civil - pela FADISP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Parte da dissertação de mestrado apresentada e aprovada na FADISP. Banca Examinadora Dr. Mario Luiz Delagdo Regis, Dr. João Aguirre e Dr. Flávio Tartuce. Orientador: Flávio Murilo Tartuce. Aprovada.

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