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Limitando o limite

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Agenda 25/08/2004 às 00:00

5. Proposta de superação

A proposta que passa a ser desenvolvida limitar-se-á a demonstrar quais são os limites do postulado da unidade, sem adentrar, registre-se, em algumas possíveis variáveis do tema, quais sejam: como seria declarada esta inconstitucionalidade originária? Por qual órgão seria declarada? Qual o amparo constitucional para tal procedimento? O órgão incumbido a realizar tal declaração não desvirtuaria o princípio da separação dos poderes, na medida em que teria um poder quase incomensurável? E como um órgão constituído poderia reformar a obra do órgão constituinte sem a sua autorização expressa?

Apesar de totalmente cabíveis estas indagações, caso fossem respondidas neste artigo, o desvirtuaria, tendo em vista que ele desviar-se-ia do seu objeto inicial e tornar-se-ia uma monografia25.

Delimitado o objetivo desta seção e lembrando, como foi dito na seção dois deste trabalho, que os princípios têm caráter inicial e que as regras não o possuem, passa-se a dissertação da proposta de superação dos limites do postulado da unidade.

Preliminarmente, cabe ressaltar, como faz a doutrina abalizada26, que todo princípio tem, pelo menos, dois tipos de eficácia: a positiva e a negativa. Pela primeira, afirma-se que todo princípio tem uma determinada quantidade de hipóteses de incidência em que eles, na análise isolada de determinado princípio, possibilitarão a aplicação de algumas regras, por o concretizar. Já pelo segundo, assevera-se que há determinadas hipóteses de incidência em que, na análise isolada de determinado princípio, algumas regras sempre deverão deixar de ser aplicadas, sob pena de violá-lo.

Alguns exemplos esclarecerão o que foi dito no parágrafo anterior: se há uma regra jurídica que assegura o direito de todos os cidadãos se alimentarem pelo menos três vezes por dia, esta norma, numa análise isolado do princípio da dignidade humana, sempre deverá ser aplicada; por outro lado, se determinada regra jurídica impõe que pessoas com menos de 60 anos da raça "x" passem a ser consideradas escravas, esta norma padeceria do vício de inconstitucionalidade, por colidir com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Os dois tipos de eficácia narrados geram três tipos de situações, em relação à regra jurídica: a positiva, pela qual uma regra será válida, pois o princípio regula determinada situação jurídica da mesma forma que a regra; a neutra, que também assegura a validade da regra, uma vez que não regula a situação jurídica que é a hipótese de incidência da regra; e a negativa, pela qual uma regra deverá ser considerada inconstitucional, se infraconstitucional, ou válida, se constitucional, segundo a teoria tradicional sobre o postulado da unidade, independentemente de está amparada por outro princípio constitucional.

Talvez uma imagem esclareça melhor o que se disse aqui. Supondo que o sol é um princípio constitucional e a terra é uma regra, ter-se-á três situações: a primeira, em que uma parte da terra estará totalmente iluminada pelo sol; a segunda, em que uma outra parte da terra ficará na penumbra, ou zona cinzenta, por ter ficado entre a zona iluminada e a zona escura; e a terceira, em que a última parte da terra ficará totalmente escura. No primeiro caso, a regra será iluminada pelo princípio constitucional, sendo, portanto, constitucional; no segundo, a regra será constitucional, pois, apesar de não está iluminada por um princípio constitucional, também não estará na escuridão; e no último caso, a regra será inconstitucional, por está na escuridão, se for infraconstitucional, será constitucional, se for uma regra constitucional, por está iluminada por outro princípio constitucional (outro sol), ou, sem está ampara por outro princípio constitucional, se constitucional, por ficção jurídica, segundo a doutrina tradicional sobre o postulado da unidade, ela será considerada constitucional, pois, ainda que escura, a área deverá ser considerada iluminada.

Já no caso de possibilidade de conflito constitucional de mais de dois princípios em relação à aplicação de uma regra jurídica, o quadro luminoso será um pouco diferente do delineado acima, uma vez que, com dois sóis, a tendência é que: em relação à parte luminosa, ela diminua, pois agora, para ser considerada uma hipótese de eficácia positiva, deverá ser iluminada pelos dois princípios simultaneamente; no tocante à parte de penumbra da terra, ela aumente, visto que agora será incrementada pela zona de conflito – parte iluminada por um princípio e não iluminada pelo outro; e, por fim, no que concerne à parte de total escuridão, ela diminua, já que agora haverá a possibilidade de dois princípios iluminarem uma de suas partes.

Nesta nova imagem, houve o surgimento da zona de conflito, a qual representa os já conhecidos postulados da concordância prática e da ponderação de interesses. A concordância prática é a tentativa de se conciliar a aplicabilidade, no máximo possível, de dois princípios constitucional incidentes num mesmo substrato fático27. Uma decisão da Corte Constitucional de Portugal ilustra bem o caso, servindo de guia interpretativo, qual seja, a qual discutiu a possibilidade ou não de a mãe interromper uma gravidez. De um lado, há o direito à vida do feto. Do outro lado, há o direito de disposição do próprio corpo da mãe (princípio da liberdade). Diante deste conflito, o Tribunal Constitucional português, conciliando os dois princípios, decidiu que o direito da mãe de abortar só existir até a décima segunda semana de gravidez, pois, após esse prazo, o aborto é considerado inconstitucional, em respeito ao direito à vida do feto.

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Por sua vez, o postulado da ponderação de interesses tem operacionalidade quando dois princípios constitucionais, um princípio e uma regra constitucionais, ou duas regras constitucionais, colidem por aparentemente incidirem num mesmo substrato fático28. Neste caso, a partir de uma ponderação, por não haver como se conciliar os dois, um deles prevalecerá em determinado caso concreto. Por exemplo: o artigo 5°, inciso LVI, da CF, diz que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos. Entretanto, o mesmo artigo 5°, inciso LV, assegura o direito à ampla defesa. Então, quando um acusado, num processo penal, pretender se utilizar duma prova ilícita, pergunta-se: qual das duas regras deve preponderar? Atualmente, prevalece na doutrina o entendimento de que o direito à ampla defesa deve preponderar, já que pode evitar a prisão de milhares de inocentes.

Deste modo, retomando a maior parte das premissas até aqui fincadas – o caráter inicial dos princípios, o fato do postulado da unidade ser, em alguns casos, uma ficção, os casos paradigmáticos que o postulado da unidade não pode resolver e as conclusões atingidas nesta seção – ver-se que, devido ao caráter inicial dos princípios e às limitações do postulado da unidade, haverá hipóteses – como nos quatro casos paradigmáticos enumerados – em que a declaração de inconstitucionalidade originária de uma regra jurídica constitucional tornar-se imperativa.

Para que essa medida excepcionalíssima possa ser adotada, duas circunstâncias devem ser combinadas: não deve haver um único princípio constitucional expresso iluminando-a; e ela – a regra jurídica – deverá está em desacordo com o núcleo essencial de algum princípio constitucional. Satisfeito estes dois pressupostos, a exclusão constitucional original torna-se obrigatória. Exemplificando: A regra jurídica insculpida no art. 7°, § único, da CF, cujo texto limita os direitos dos trabalhadores domésticos, os novos escravos, a alguns dos direitos dos trabalhadores stricto sensu, não tem um único princípio constitucional expresso que lhe seja axiologicamente sobrejacente. Além disso, atinge o núcleo essencial do princípio da dignidade humana. Portanto, esta é uma norma passível de exclusão constitucional original29.

Uma crítica que certamente vai ser levantada contra a tese aqui defendida, baseada no principal referencial teórica deste trabalho, o prof. Humberto Ávila, é a da dissociação em alternativas inclusivas30. Por esta designação, o prof. Ávila refere-se à possibilidade de um mesmo dispositivo – isto é, texto normativo – abarcar duas ou mais espécies de normas. Exemplificando: quando o artigo 5°, caput, da CF, diz que todos são iguais perante a lei, poder-se-á distinguir, neste trecho normativo, três espécies de normas, quais sejam: o princípio da igualdade, pela simples análise literal da lei; a regra da igualdade, a partir de uma re-criação teórica do dispositivo da igualdade31, ou seja, inferindo do texto, por re-ligação semântica-axiológica, esta outra norma; e, ainda, o postulado normativo aplicativo da unidade, pela mesma forma da inferência da regra da igualdade.

Apesar do prof. Humberto Ávila, ao comentar esta técnica interpretativa, dizer que se pode enxergar e/ou vislumbrar alternativas inclusivas em determinado dispositivo, o que quer dizer que nem sempre poder-se-á fazê-lo, se se admitisse que as regras defendidas aqui como passíveis de exclusão – a partir do postulado normativo aplicativo da exclusão constitucional original – abarcam um princípio axiologicamente sobrejacente, um dos pressupostos tidos como essenciais na aplicação do postulado da exclusão constitucional original deixaria de existir, tornando inócua a proposição teórica aqui defendida.

Exemplo: no segundo caso paradigmático, duas normas se contrapuseram: o princípio republicano e a regra que possibilita que cada Presidente da República italiano escolha até cinco cidadãos italianos para serem senadores vitalícios. Neste caso, se se considerasse que a regra retro mencionada, de acordo com a proposta de dissociação alternativa inclusiva do prof. Humberto Ávila, também alberga um princípio, digamos, o da vitaliciedade, poder-se-ia questionar a tese aqui defendida do postulado da exclusão constitucional original, uma vez que, o pressuposto de não ter nenhum princípio axiologicamente sobrejacente, estaria afastado.

Contudo, indiretamente, o próprio prof. Humberto Ávila também rechaça esta tese, haja vista que, num dos seus artigos, afirma que os argumentos institucionaislingüísticos e sistemáticos – devem prevalecer sobre os argumentos transcendenteshistóricos (os quais tentam remontar o significado de um texto legal através de outros textos legais) e genéticos (dizem respeito à vontade do legislador, tanto no que se refere ao significado que o legislador teria ligado a determinada expressão quanto à finalidade que ele pretendia atingir)32 –, devido aos seguintes motivos arrolados pelo prof.:

"Em decorrência do princípio da separação dos poderes e do princípio democrático, e também por razões de segurança jurídica, pode-se afirmar que os argumentos imanentes ao sistema jurídico (argumentos lingüísticos e sistemáticos) devem ter prevalência sobre os argumentos a ele transcendentes (argumentos genéticios e históricos), na medida em que aquilo que foi finalmente estabelecido pelo Poder Legislativo deve prevalecer sobre aquilo que deixou de ser estabelecido. Além disso, a própria racionalidade imanente ao Estado de Direito conduz à idéia de previsibilidade. Previsibilidade essa que só é concebível se as normas puderem ser compreendidas: não é sequer praticável, para que cada norma venha a ser compreendida e seguida, fazer uma pesquisa histórica para ver se o legislador não pretendeu, talvez, dizer algo diferente do que acabou dizendo. As normas devem poder ser compreendidas e seguidas pelos seus destinatários, por isso mesmo que são discutidas, votadas e publicadas. E se assim é, aquilo que foi dito (argumentos lingüísticos e sistemáticos) deve prevalecer sobre o que deixou de ser (argumentos genéticos)." (2001b:26-27)

Assim, no caso do conflito entre o princípio republicano e a regra que possibilita que cada Presidente da República italiano escolha até cinco cidadãos italianos para serem senadores vitalícios, não se pode trazer à colação a teoria da dissociação alternativa inclusiva para afastar a incidência do postulado da exclusão constitucional original, vez que, segundo o próprio prof. Ávila, os argumentos imanentes (o princípio expresso) excluem, quando satisfatórios, os argumentos transcendentes (o princípio implícito)33. Logo, com esta exclusão dos argumentos transcendentes, a regra em comento, por exemplo, deixará de ter o princípio da vitaliciedade iluminando-o, deixando intacto um dos pressupostos de aplicabilidade do já referido postulado da exclusão constitucional original.


6. Conclusão

Em face do exposto, chega-se as seguintes conclusões:

A. Existem três espécies de normas constitucionais: os princípios, as regras e os postulados normativos aplicativos.

B. Dentre os pontos que distanciam os princípios das regras destaca-se o caráter inicial dos princípios.

C. O "princípio" da unidade da Constituição, em verdade, é um postulado normativo aplicativo.

D. O postulado da unidade, assim como a revelia, é uma ficção jurídica.

E. Os postulados da unidade têm limites, como são exemplos os quatro casos paradigmáticos delineados na seção quatro deste artigo.

F. Os princípios têm eficácias positivas e negativas.

G. Por causa dos seus dois tipos de eficácia, três situações podem ocorrer: a de iluminação, a de penumbra e a de escuridão.

H. Nos casos de conflitos entre princípios, em relação á aplicabilidade de alguma regra, as três situações se repetem, incluindo-se, porém, a zona de conflito.

I. A forma de se superar o postulado da unidade é a criação de um novo postulado, qual seja, o postulado da exclusão constitucional original, o qual, para ser aplicado, deve satisfazer dois pressupostos: primeiro, não haver um único princípio constitucional expresso iluminando-a; e, segundo, ela – a regra jurídica – deverá estar em desacordo com o núcleo essencial de algum princípio constitucional.


Referências bibliográficas

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BARROSO, Luís Roberto, e BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 7.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

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SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1.ª ed., 3.ª tiragem. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003.

SILVA, Luís Virgílio Afonso da. O Proporcional e o Razoável. RT 798/27, São Paulo, 2002.

Sobre o autor
Christian de Sá

acadêmico de Direito da UCSal, Salvador (BA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÁ, Christian. Limitando o limite. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 420, 25 ago. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5627. Acesso em: 24 dez. 2024.

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