3 A JURIDICIDADE E OS PARÂMETROS PARA A APLICAÇÃO DO CRAM DOWN NO BRASIL
No capítulo anterior, chegou-se à conclusão de que o sistema de recuperação brasileiro padece de falta de coerência lógica, uma vez que, a despeito da previsão expressa dos princípios da preservação da empresa e da função social, atribui aos credores – atores que perseguem interesses individuais – o papel de deliberar pela aprovação ou reprovação do plano de recuperação judicial.
Verificou-se ainda que os Tribunais têm emprestado uma interpretação de natureza teleológica à LREF de maneira a corrigir as claudicações legislativas. No entanto, percebeu-se que a construção jurisprudencial vem empregando interpretação afastada da necessária base empírica, ensejando insegurança jurídica para os agentes econômicos.
Desse modo, sugeriu-se a abertura democrática do processo de recuperação judicial para todos os atores envolvidos, com a ampliação da legitimidade para propositura da demanda, bem como para apresentação e alteração do plano de recuperação judicial. Esboçaram-se, outrossim, idéias referentes a um estudo econômico elaborado por peritos do juízo, que ofereceriam ao magistrado soluções afinadas com o interesse social.
De maneira mais específica, vislumbrou-se no instituto norte-americano do cram down um dos mais relevantes mecanismos de ajuste do sistema, tendo em vista que atribui ao magistrado poderes para desconsiderar o veto dos credores, quando ele se apresenta em descompasso com o interesse social. Neste momento, portanto, se torna imprescindível aprofundar as noções acerca da juridicidade e dos parâmetros para aplicação do cram down no Brasil.
Com efeito, chegando-se à conclusão de que o instituto do cram down pode ser útil para o sistema de recuperação de empresas no Brasil, faz-se mister a construção de critérios aptos a conferir segurança jurídica aos operadores do direito. A falta de parâmetros retira qualquer segurança jurídica nessa temática, o que prejudica seriamente o ambiente de negócios no Brasil. Assim, tão importante quanto definir se deve ou não ser aplicado esse instituto é a busca por balizas que uniformizem o tratamento da matéria.
Nesse sentido, primeiro serão examinados os critérios consagrados no direito norte-americano, levando-se em consideração a legislação, a doutrina e a jurisprudência. Em seguida, passar-se-á à análise da viabilidade jurídica e das adaptações necessárias para a sua utilização no sistema jurídico brasileiro, trazendo-se à baila os debates existentes na doutrina e na jurisprudência nacionais. Por fim, será objeto de estudo o novo equilíbrio entre os atores do processo de recuperação de empresas no Brasil.
3.1 OS REQUISITOS NORTE-AMERICANOS COMO BALIZAS INICIAIS
O legislador brasileiro se inspirou no Bankruptcy Code de 1978 dos Estados Unidos para elaborar a Lei nº 11.101/2005. Com efeito, no referido diploma norte-americano, o Chapter 7 cuida dos processos de liquidação (falência) ao passo que o Chapter 11 regula o processo de reorganização (ou recuperação). Todavia, o sistema norte-americano atribui maiores poderes para o juiz decidir acerca da aprovação do plano de recuperação. Deveras, naquele sistema, com base no Chapter 11, § 1.129(b)(1), o juiz, desde que preenchidos determinados requisitos, pode derrubar o veto dos credores[33].
A rigor, há uma série de requisitos para a aprovação do plano. Á guisa de ilustração, caso seja indicativa do melhor interesse dos credores, o tribunal pode convolar um processo de reorganização em uma liquidação. Nesse sentido, o § 1.1129(b)(4) aponta uma série de razões capazes de evidenciar a conveniência de submissão do caso à liquidação, tais como continuação de perdas substanciais no patrimônio do empresário e ausência de probabilidade de recuperação, má gestão, inobservância dos devedores impostos no processo de recuperação etc.
No § 1.1129(a), há a descrição do rol de requisitos que devem ser cumpridos para a aprovação do plano de recuperação judicial. Entre esses pressupostos, figura o melhor interesse dos credores, consubstanciado na exigência de que eles recebam mais no processo de reorganização do que obteriam na liquidação. Evita-se com isso que algum credor dissidente seja prejudicado.
Outrossim, deve haver a convicção de que o plano não resultará em falência ou em nova recuperação. Cite-se ainda a necessidade de aprovação por todas as classes de credores. Este requisito, entrementes, pode ser excepcionado com a aplicação do cram down, instituto que exige o cumprimento de todos os demais pressupostos. Ademais, imprescindível a aprovação de, pelo menos, uma classe de credores, bem como que o plano não apresente injusta discriminação (does not discriminate unfairly) e seja justo e equitativo (is fair and equitable)[34].
O critério da injusta discriminação não encontra detalhamento na legislação, razão pela qual ficou a cargo da jurisprudência e da doutrina a fixação dos seus contornos. A corrente dominante considerou que essa exigência diz respeito às relações horizontais, ou seja, impede o tratamento desigual entre credores de classes com a mesma prioridade. De outro lado, o Bankruptcy Code explicita o conteúdo da análise do que seria um plano “justo e equitativo”, fazendo referência às relações verticais e, obstaculizando, portanto, que uma classe menos privilegiada receba antes de uma de hierarquia superior.
Esse sistema não é imune à críticas. Deveras, o princípio do melhor interesse dos credores padece de alto grau de subjetividade, dependendo de conjecturas que podem não se confirmar, da mesma forma como a projeção de cenários no mundo corporativo nem sempre logra êxito. De outra banda, o “unfair discrimation”, à míngua de definição legal, desperta distintas interpretações no plano doutrinário e jurisprudencial. Ressalte-se que a distinção de tratamento não é vedada, o que se impede é distinção injusta. Compete, então, ao magistrado, à luz das peculiaridades do caso concreto formar a sua convicção.
De qualquer modo, os Estados Unidos possuem uma experiência muito mais consolidada que a brasileira em matéria de recuperação de empresas. Não seria despiciendo observar que se noticia que o percentual efetivo de recuperação de empresas no Brasil é de 1%, enquanto que no direito norte-americano aproxima-se de 30%[35]. Assim, a despeito de eventuais críticas e da necessidade permanente de aperfeiçoamento, o processo de reorganização nos Estados Unidos funciona bem outorgando mais poderes para o magistrado aprovar um plano rejeitado pelos credores.
Sustenta-se, dessarte, a adoção inicial dos parâmetros construídos no modelo de enfrentamento das insolvências dos Estados Unidos. Com base no aproveitamento das discussões da doutrina e da jurisprudência norte-americanas, esforços são poupados para evitar eventuais erros já cometidos no início da aplicação do cram down. Desse modo, partir-se-ia dos critérios já consagrados naquele ordenamento como medida de otimização. Não obstante, levando-se em consideração a realidade brasileira, o debate sobre a forma de adaptação daqueles critérios para as recuperações ocorridas em solo nacional precisa ser amadurecido.
3.2 A NECESSÁRIA ADAPTAÇÃO DOS PARÂMETROS AO SISTEMA JURÍDICO NACIONAL
O art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 impôs uma série de requisitos cumulativos para permitir a aprovação alternativa do plano de recuperação judicial. Nos termos da dicção do referido dispositivo legal, inicialmente, percebe-se a referência à possibilidade e não obrigatoriedade de o juiz aprovar o plano de recuperação judicial. Em seguida, o referido dispositivo observa que o quórum alternativo deve ser alcançado na mesma assembléia, não abrindo margem para a designação de AGC com esse propósito. O artigo, então, exige que, de forma cumulativa, sejam atendidos os seguintes pressupostos: aprovação por credores que titularizem a maior parte dos créditos presentes, sem levar em consideração a divisão por classes; aprovação de duas classes das quatro (trabalhistas, com garantia real, credores ME ou EPP e demais credores), ou por uma, na hipótese de haver apenas duas; e voto favorável de mais de um terço de credores na classe que rejeitou o plano. Por fim, o § 2º do mesmo art. 58 dispõe que a recuperação judicial alternativa apenas poderá ser concedida caso não preveja tratamento diferenciado para os credores da classe que rejeitou o plano. Esses requisitos merecem alguma atenção, se não, vejamos.
A primeira questão que se levanta remete à apreciação jurisdicional, uma vez que o dispositivo supracitado dispõe que “poderá” o juiz conceder a recuperação judicial. Esta prerrogativa, contudo, longe de outorgar um poder para valoração própria do magistrado, a rigor, quer apenas destacar o dever do magistrado de realizar um controle de legalidade. Tratar-se-ia, portanto, da necessidade de verificação do atendimento dos pressupostos estabelecidos pelo legislador para a concessão da recuperação judicial, tese corroborada nos Enunciados nº 44[36] e 46[37] da I Jornada de Direito Comercial do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Dentro desse mesmo papel, compete ao juiz desconsiderar votos emitidos com abuso de direito, conforme Enunciado nº 45 da mesma Jornada[38]. [39]
O dispositivo sob comento alude ainda à necessidade de uma assembléia única para a deliberação da recuperação judicial. Na realidade, pode haver mais uma sessão, contudo, por força dos princípios da celeridade e da economia processuais, a AGC deve ser única para essa finalidade e apenas serão considerados presentes os credores que assinaram a lista por ocasião da instalação da assembléia. Esse entendimento foi consagrado no Enunciado nº 53 da referida Jornada de Direito Comercial[40].[41]
Ademais, deve haver a aprovação por credores que titularizem a maior parte dos créditos presentes na assembleia, independentemente de classes. Esse critério afasta o modelo brasileiro do instituto do cram down norte-americano, uma vez que não há se falar nesse caso em derrubada do veto dos credores, já que o plano precisa da aprovação dos detentores da maioria dos créditos. Esse requisito, indubitavelmente, obstaculizará uma grande quantidade de concessão de recuperações, razão pela qual sua manutenção deve ser objeto de discussão dentro de um sistema pautado pelo princípio da preservação de empresas.
Outro requisito alude à aprovação por duas classes de credores, ou por uma no caso de apenas haver duas classes. Essa prerrogativa pode dar azo a situações em que apenas um credor será capaz de impedir a recuperação. Não é raro que um determinado banco titularize boa parte dos créditos com garantia real e dos quirografários.
A instituição financeira, portanto, poderá ao seu alvedrio, votar contra o plano de recuperação judicial, independentemente das condições estipuladas e essa negativa levará à rejeição da recuperação. A inflexibilidade da exigência, em determinadas situações, poderá prejudicar a manutenção da empresa, principalmente se o banco for o único credor real, o que inviabilizará o atendimento do próximo requisito.
Deveras, na classe que rejeitou o plano deve haver a aprovação por mais de 1/3 dos credores, além de não estabelecer tratamento diferenciado entre eles. Tutelam-se, desse modo, os credores que rejeitaram o plano. De todo modo, a doutrina já construiu o entendimento que impõe o tratamento igualitário para os credores com interesse homogêneo, nos termos do Enunciado nº 57 da I Jornada de Direito Comercial do CJF[42].[43]
Interessante observar que o direito brasileiro não impõe qualquer regra com relação à ordem de pagamento como o fair and equitable do direito norte-americano. Essa ausência de norma expõe classes privilegiadas na falência, como os trabalhadores, a injustiças. A proteção do direito brasileiro se restringe às relações horizontais, ou seja, entre credores da mesma classe. Outra questão digna de registro concerne à heterogeneidade da terceira classe de credores (credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral e subordinados). A rejeição por parte dessa classe trará à baila a dificuldade de se definir se haveria ou não um tratamento diferenciado.
Os requisitos inseridos pelo legislador no art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 para aplicação do que parte da doutrina chama de cram down brasileiro, entretanto, representam limites substanciais para a recuperação de muitas empresas. Assim, a doutrina e os Tribunais mantêm aberta a celeuma em torno da possibilidade de utilização de parâmetros mais flexíveis para a concessão da recuperação judicial. Importante, então, a análise acerca dos posicionamentos que dividem os especialistas do tema no país.
Com relação aos doutrinadores que defendem a aplicação do cram down no Brasil, cada um apresenta suas próprias sugestões. Há autores que defendem a aplicação do Ótimo de Pareto, em que, tomando-se um grupo de pessoas, todos melhoram sua posição, não havendo perda na situação individual, e do princípio de Kaldor-Hicks, que admite que alguns credores sofram prejuízo, desde que haja um saldo positivo, ponderando-se os benefícios e malefícios[44]. Outros que criticam a opção do estabelecimento de quóruns fechados pela lei brasileira, de forma a limitar a atuação jurisdicional, sustentando a interpretação teleológica baseada nos princípios da função social e da preservação da empresas[45].
Nessa mesma linha, alguns advogam a tese de superação da dicotomia entre a soberania do juiz e a soberania dos credores, por meio de uma solução capaz de equilibrar todos esses interesses e viabilizando a manutenção das empresas viáveis. Outrossim, defendem que, a despeito de a Lei nº 11.101/2005 haver traçado objetivos claros nos arts. 47 e 75, deixou uma lacuna no que tange aos procedimentos necessários para persegui-los.
Por fim, observam que, da forma como se encontra a Lei de Recuperação e Falências, poderá haver o privilégio de um interesse puramente individualista em detrimento do interesse público da manutenção de empresas viáveis. Assim, propõem a construção doutrinária de princípios balizadores da atuação do Estado-juiz na recuperação de empresas. Nesse sentido, trazem à baila o debate acerca da utilização criteriosa dos princípios do direito norte-americano do best-interest-of-creditors (caracterizado pela impossibilidade de que um credor receba menos do que receberia no processo falimentar), unfair discrimation (consubstanciado no tratamento semelhante e proporcional a ser concedido a credores da mesma classe) e fair and equitable (uma das hipóteses de aplicação é o pagamento de uma classe com créditos com prioridade inferior apenas ser autorizado após o pagamento de uma privilegiada), tudo no intuito de conciliar os interesses do devedor, dos trabalhadores e dos credores. Além disso, apontam para a necessidade urgente de um aperfeiçoamento da legislação recuperacional com o desiderato de permitir que atinja satisfatoriamente seus objetivos, enunciados no art. 47[46].
De outro lado, criticando a adoção do cram down no Brasil, há doutrinadores que sustentam enfaticamente que, na sistemática da Lei nº 11.101/2005, o magistrado não possui poderes para aprovar um plano reprovado pelos credores, sob pena de subverter o texto legal. Defendem a tese de que a assembleia geral de credores é soberana, não restando ao juiz qualquer margem de discricionaridade para conceder a recuperação caso aquela delibere em sentido negativo.
Argumentam, outrossim, que não há qualquer possibilidade de aplicação do cram down em virtude da disciplina imposta pela atual Lei de Falências e Recuperação de Empresas no Brasil. Enfatizam a natureza contratualista da recuperação no Brasil e criticam a interpretação que vislumbra a possibilidade daquele instituto, já que contrária ao espírito da lei[47]. Outros ainda, na mesma linha, sustentam que a lei brasileira não confere qualquer poder para o magistrado derrubar o veto dos credores. Defendem que o cram down brasileiro é fechado e legalista, cabendo ao juiz tão somente o papel de verificar o preenchimento dos pressupostos do art. 58 da Lei nº 11.101/2005[48].
No que tange à perspectiva jurisprudencial brasileira, constata-se que dois Tribunais já aplicaram expressamente o instituto do cram down: o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Inclusive, da análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, percebe-se a criação de alguns critérios para autorizar a concessão judicial da recuperação independentemente do atendimento de todos os requisitos impostos pelo art. 58, § 1º, da LREF. Ressalte-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo já vem consolidando alguns parâmetros relevantes para a aplicação do cram down no Brasil.
O primeiro critério se refere ao plano reprovado por uma classe com credor único, em que sua rejeição inviabiliza o cumprimento do inciso III do § 1º do art. 58 da Lei nº 11.101/2005, ou seja votação favorável de pelo menos um terço na classe dissidente (AI 2017379-32.2014.8.26.0000, Rel. Enio Zuliani, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 11/09/2014; AI 0235995-76.2012.8.26.0000, Rel. Enio Zuliani, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 26/03/2013; AI 649.192-4/2-00, Rel. Romeu Ricupero, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, j. 18/08/2009).
Outrossim, a jurisprudência do TJSP caminha no sentido de que pode ser flexibilizada a exigência referente à aprovação por credores representativos da maioria dos créditos presentes à assembléia, quando houver anuência da maioria dos credores por cabeça e indícios de que houve abuso de direito por parte dos credores que reprovaram o plano (AI 0106661-86.2012.8.26.0000, Rel. Francisco Loureiro, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 03/07/2014; AI 0155523-54.2013.8.26.0000, Rel. Teixeira Leite, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 06/02/2014). Em muitos casos, há a aplicação da teoria do abuso de direito, tomando-se como base a previsão do art. 115 da Lei nº 6.404/76, uma vez que ausente previsão expressa na Lei nº 11.101/2005. Essa interpretação, inclusive, foi consagrada no Enunciado nº 45 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal[49].
O Tribunal de Justiça de São Paulo, contudo, também possui decisões que negaram a aplicação do cram down, demonstrando a busca de um rigor nas hipóteses ensejadoras do instituto. Com efeito, no Agravo de Instrumento nº 2068570-19.2014.8.26.0000 (Rel. Cláudio Godoy, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 09/12/2014), apesar de fazer referência a todos os casos acima citados, houve decisão no sentido de rejeitar a aplicação do cram down, uma vez que não ficou caracterizado abuso no direito de voto. Nessa mesma decisão, ressaltou-se ainda o descumprimento do requisito norte-americano do best interest of creditors.
Deveras, um dos critérios construídos nos Estados Unidos aponta para a necessidade de que a situação dos credores seja melhor na recuperação do que na falência. Assim, imprescindível a avaliação do ativo para viabilizar o cotejo. Outrossim, observou-se a uniformidade de tratamento entre credores com garantia real e quirografários, quando, na verdade, aqueles gozam de privilégio no caso de falência, o que lhes permite negociar em uma condição mais favorável.
A seu turno, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem aplicando de maneira ampla o instituto do cram down. Deveras, aquela Corte já admitiu a concessão da recuperação mesmo sem a aprovação por 1/3 dos credores da classe que rejeitou o plano e sem a aprovação pela maioria dos credores, independentemente de classe[50]. Assim, a partir da análise de algumas decisões que aplicaram o cram down, é possível a extração de alguns critérios amiúde utilizados. Em primeiro lugar, percebe-se que o voto do credor único em determinada classe vem sendo desconsiderado, mormente se levando em consideração a teoria do abuso de direito.
Não obstante, a teoria do conflito de interesses não parece comportar interpretação tão ampla. Com efeito, não se pode considerar abusivo o comportamento do credor que age no intuito de receber os créditos que lhe são devidos. O fato de ser o credor único de determinada classe não lhe retira a prerrogativa de verificar se as condições propostas no plano atendem a seus interesses. Dessarte, malgrado seja extremamente importante, a teoria do abuso de direito não deve ser ampliada para além de situações que envolvam votação com finalidade distinta do recebimento de créditos, tais como benefício de concorrentes, vingança, entre outros[51].
A esse respeito, faz-se mister salientar que não há uniformidade jurisprudencial sobre o tema, o que gera flagrante insegurança jurídica. À guisa de ilustração, pode-se citar julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que negou o pleito de recuperação judicial da Montana Soluções Corporativas Ltda., em virtude da rejeição do único credor da classe com garantia real (no caso, o Banco Industrial e Comercial S/A). A recuperação judicial foi convolada em falência[52].
De qualquer forma, já é possível vislumbrar a construção de critérios adaptados para a realidade brasileira pelos Tribunais de Justiça que aplicaram o instituto do cram down. Não obstante, percebe-se a necessidade de satisfazer esses critérios com base em estudos econômicos. O comportamento racional de um agente econômico não pode ser considerado abuso de direito, ainda que ele seja credor único de uma determinada classe. Ademais, essa utilização traz ao lume outro debate relevante na temática, qual seja, o novo equilíbrio entre os responsáveis pela aprovação do plano de recuperação.
3.3 O NOVO EQUILÍBRIO DECISÓRIO DA APROVAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO
A história da legislação falimentar brasileira intercala períodos com soberania do magistrado e outros com prevalência da vontade dos credores (a título de ilustração, no Decreto-lei nº 7.661/1945 o poder de aprovação da concordata era atribuído ao magistrado, enquanto que na Lei nº 11.101/2005, cabe aos credores). A abordagem institucionalista do novo sistema de recuperação de empresas, contudo, pode apresentar resposta mais completa, evitando a unilateralidade preponderante das soluções consagradas na legislação. Indubitavelmente, não se cuida de uma solução pronta e acabada para toda a complexidade que envolve uma situação de insolvência.
Não obstante, trata-se de procedimento mais transparente e democrático com vistas à construção de soluções capazes de conciliar os diversos interesses envolvidos. Com isso, valoriza-se o mercado de crédito, ao tempo em que evita que decisões relevantes para toda a sociedade sejam deixadas ao alvedrio dos credores. Não seria despiciendo observar que nos Estados Unidos a Securities and Exchange Comission (SEC) oferece apoio técnico nos processos de reorganização empresarial[53].
Com efeito, após a avaliação dos dados socioeconômicos da forma proposta, o magistrado poderia decidir de forma fundamentada e transparente de maneira a compatibilizar os interesses em litígio. O reconhecimento de que determinada falência seria danosa à sociedade implicaria na construção de um complexo de medidas que viabilizassem a retomada da atividade. Podem ser pensados em diversos mecanismos nesse sentido: estímulo para os Fundos de Investimento em Participações (instrumento do mercado de capitais para a recuperação judicial – art. 2º, § 1º, Instrução CVM 391/2003)[54]; criação de uma linha de crédito especial, bem como a constituição de um fundo específico, com subvenção pública e privada[55]; incentivos fiscais[56]; treinamento profissional, inclusive de gestão empresarial, melhoria da infraestrutura, entre outros.
Nos últimos anos, o Judiciário tem sido acionado amiúde para o cumprimento das políticas públicas previstas na Constituição Federal de 1988. Essas demandas desafiaram os juristas a buscar soluções aptas a atender às demandas sociais. Modalidades diversas de respostas foram apresentadas sem que nenhuma delas lograsse efeitos satisfatórios, inclusive no âmbito do sistema de recuperação de empresas. Deveras, ao longo deste trabalho, foram analisadas diversas decisões que se valeram dos princípios da função social e da preservação da empresa para afastar a aplicação de regras constantes na mesma Lei nº 11.101/2005.
Contudo, essas interpretações foram realizadas de maneira abstrata, sem a base empírica que fornecesse subsídios robustos para verificar se a decisão foi adotada de forma compatível com a política pública. Como ressaltado, não há mecanismo seguro para preencher o conteúdo dos princípios sem levar em conta a realidade social, razão pela qual a interpretação aduzida fica carente de fundamentação nos termos aqui defendidos. Propõe-se, portanto, uma interpretação teleológico-empírica como apropriada a capturar os fins da política pública, consagrados no plano legislativo, com base em dados econômicos.
Ressalte-se que o ordenamento jurídico brasileiro ampara de forma ampla a interpretação teleológica quando no art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42) impõe que o juiz aplique a lei atendendo aos seus fins sociais e às exigências do bem comum. Esta modalidade interpretativa atribui ao magistrado genuína missão política. Não seria despiciendo observar que a previsão da função social (da empresa, dos contratos, da propriedade) apenas reforça esse caráter finalístico, tendo em vista que a legitimidade do direito repousa no cumprimento de seu desiderato.
Em um Estado Democrático promotor de políticas públicas, imprescindível que a decisão judicial leve em consideração o seu impacto social e econômico, mesmo porque o Judiciário possui participação, juntamente com outros vários atores sociais, na construção das políticas. Aliás, esse tipo de análise permite uma avaliação da relação daqueles sujeitos dentro da ordem macroeconômica.
Um critério dessa natureza, desde que utilizado de maneira transparente, permitiria uma maior articulação dos órgãos estatais na implementação de políticas públicas. Diversos institutos no direito brasileiro consagram as formas de interpretação teleológica e empírica, admitindo argumentos consequencialistas, como por exemplo: a suspensão de segurança na Lei do Mandado de Segurança, a Modulação de Efeitos na declaração de inconstitucionalidade etc.
Desta forma, percebe-se que a análise consequencialista com base empírica, desde que naturalmente respeitando os objetivos expressos da política econômica da Constituição, pode trazer grandes benefícios para a interpretação jurídica. Deveras, o núcleo axiológico da Lei nº 11.101/2005 (arts. 47 e 75) estabelece uma série de princípios e objetivos inseridos na política pública de recuperação de empresas.
Para a densificação do conteúdo e compatibilização de todos esses valores com as demais regras e princípios, inclusive com eventuais políticas conflitantes (tributária, de crédito, industrial etc), mister a utilização de dados empíricos. Para tanto, imprescindível o desenvolvimento de um instrumental analítico que ofereça coerência e consistência na interpretação, bem como transparência na fundamentação das decisões.
Ao cabo deste capítulo, algumas questões merecem consideração especial. Com efeito, longe de se conseguir chegar a alguma conclusão peremptória, a principal convicção que pode ser extraída alude à necessidade de um permanente exame das recuperações de empresas no Brasil. Em especial, o debate acerca da possibilidade de utilização do cram down no Brasil ainda demanda grande aprofundamento. Todavia, algumas peculiaridades demonstradas ao longo deste trabalho já chamam a atenção para a necessidade de aperfeiçoamentos. Os próprios critérios inseridos na legislação recuperacional brasileira para a aprovação alternativa (cram down brasileiro) precisam da correção de alguns detalhes.
Não obstante, no atual cenário de recuperação de empresas no Brasil, entende-se ser conveniente e juridicamente aceitável a aplicação do cram down nas recuperações nacionais. Nesse sentido, levando-se em consideração o núcleo axiológico da Lei nº 11.101/2005, mormente os postulados da preservação da empresa e da função social, o juiz deve aprovar o plano de recuperação judicial, mesmo que haja rejeição por parte da maioria dos credores (ou seja, poderá aplicar o instituto do cram down), desde que observe determinados critérios. Esses parâmetros devem ser adequadamente desenvolvidos de forma a evitar um ambiente de insegurança jurídica.
Com esse desiderato, inicialmente, poderão ser utilizados princípios consagrados no direito norte-americano como, por exemplo, best-interest-of-creditors (caracterizado pela impossibilidade de que um credor receba menos do que receberia no processo falimentar), unfair discrimation (consubstanciado no tratamento semelhante e proporcional a ser concedido a credores da mesma classe) e fair and equitable (uma das hipóteses de aplicação é o pagamento de uma classe com créditos com prioridade inferior apenas ser autorizado após o pagamento de uma privilegiada).
Ademais, ao lado de uma sólida construção doutrinária, faz-se mister a alteração da Lei nº 11.101/2005, conferindo maiores poderes para o juiz deliberar acerca da recuperação judicial, valendo-se, especialmente, de conceitos jurídicos indeterminados. Isso porque referido tipo de cláusula permite uma atualização da norma em face do momento econômico vivenciado, autorizando ao magistrado se valer de casos anteriores para mensurar a viabilidade ou não de determinada empresa.
Essas medidas se apresentam como de grande relevância para a construção de um ambiente sadio de negócios no Brasil, com redução de custos de transação. O sistema de recuperação de empresas e de falência é fundamental na ampliação do mercado de crédito, imprescindível para o desenvolvimento nacional. Incumbe à comunidade jurídica a extração de todo o potencial normativo da nova legislação recuperacional com o escopo de garantir a preservação de todos os interesses e valores que gravitam em torno da empresa (empresário, trabalhadores, instituições financeiras, Fisco, consumidores, cadeia produtiva, concorrência, produção, comunidade, entre outros).
Assim, pode-se mencionar um novo equilíbrio na participação de todos os atores públicos e privados nos processos de recuperação de empresas. Não se trata, evidentemente, de solução pronta e acabada para sanar as deficiências do sistema de reorganização empresarial, mas de construção de caminhos para uma racionalidade jurídica capaz de conciliar a interpretação, a política pública e os estudos econômicos. Com esse desiderato, o instituto do cram down se apresenta como instrumento da mais alta relevância.