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Direitos humanos e a relativização da soberania estatal

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Agenda 06/04/2017 às 20:21

4          DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 – A INSTITUCIONALIZAÇÃO E A TRANSNACIONALIDADE DA NORMA

Flávia Piovesan (2015) cita que “a Carta de 1988 é a primeira Constituição brasileira a elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos, como princípio fundamental a reger o Estado nas relações internacionais”. Trata-se de uma “iniciativa sem paralelo nas experiências constitucionais anteriores”, cuja inovação “compõe a tônica do constitucionalismo contemporâneo”.

4.1      A Carta de 1988 e o processo de democratização do Estado Brasileiro

Ao avocar a proteção dos direitos humanos como princípio fundamental, a Constituição de 1988 conduz ao “engajamento do País no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos”. Também intenta a “plena integração de tais regras na ordem jurídica interna brasileira”, além de acarretar, consequentemente, “o compromisso de adotar uma posição política contrária aos Estados em que os direitos humanos sejam gravemente desrespeitados”. Em outros termos:

A partir do momento em que o Brasil se propõe a fundamentar suas relações com base na prevalência dos direitos humanos, está ao mesmo tempo reconhecendo a existência de limites e condicionamentos à noção de soberania estatal. Isto é, a soberania do Estado brasileiro fica submetida a regras jurídicas, tendo como parâmetro obrigatório a prevalência dos direitos humanos. Rompe-se com a concepção tradicional de soberania estatal absoluta, reforçando o processo de sua flexibilização e relativização, em prol da proteção dos direitos humanos. Esse processo é condizente com as exigências do Estado Democrático de Direito constitucionalmente pretendido. (FLÁVIA PIOVESAN, 2015).

Notório destacar que a promulgação da Constituição Brasileira de 1988, além de lançar o Brasil no cenário de proteção internacional dos direitos humanos, também significou a consolidação da “ruptura com o regime autoritário militar, instalado em 1964[21]”.

Com a convergência dos direitos fundamentais agora sedimentados, “a Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil”. Conforme atenta José Afonso da Silva apud Flávia Piovesan (2015): “É a Constituição cidadã, na expressão de Ulysses Guimarães, Presidente da Assembleia Nacional Constituinte (...), porque teve ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania”.

4.2      A inserção dos Tratados de Direitos Humanos no texto da Constituição Brasileira de 1988

Ainda segundo o texto de Flávia Piovesan (2015), para subsidiar o constitucionalismo para o qual se propõe, muitos dos textos contidos nas normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, não só serviram de inspiração para “a reinvenção do marco jurídico dos direitos humanos”, mas também fomentaram “extraordinários avanços nos âmbitos da normatividade interna”, servindo inclusive de base textual, quase literal, para os construtos da Carta de 1988.

Nesse sentido, dentre outras normativas, Bretas & Ferreira (2011) destacam que a “Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988 foi motivada pelos dispositivos contidos na Declaração Universal dos direitos Humanos”, com destaque para o Artigo 5º da Carta de 1988, que “em seu ’caput’ transmite múltiplos direitos, que devem ser observados para a configuração de uma República, e para a própria mantença do Estado brasileiro”. Tal conceito identifica “a ‘inviolabilidade’ dos direitos descritos nesse suporte”. Corroborando com o entendimento, Flávia Piovesan (2015) escreve que “os direitos e garantias fundamentais são, assim, dotados de especial força expansiva, projetando-se por todo o universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico”. Bretas & Ferreira (2011) acrescem que “os Direitos preceituados na cabeça do artigo 5º incidem sobre cidadãos em seu sentido genérico. Isto é, incidem sobre brasileiros e estrangeiros. Cidadãos pertencentes ao povo e a população brasileira”[22].

De forma ilustrativa, os mesmos autores destacam alguns dos dispositivos correspondentes contidos na declaração (DUDH)[23], consubstanciados com o texto do caput do Art. 5º da Constituição Brasileira de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”:

Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:

(...)

Artigo II: Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição;

Artigo III: Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal;

(...)

Artigo VII: Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei.

(...)

Artigo XII: Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação.

(...)

Artigo XXII: Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

(...)

Artigo XVII: Toda pessoa tem direito à propriedade. (Grifos nossos)

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Vale ressaltar que a Constituição de 1988 adotou “a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais”, e assim “institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do Art. 5º, §1º”, conforme explica Flávia Piovesan (2015). Em outros termos, “esse princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a tais direitos”, cujo propósito é inferir eficácia os Poderes Públicos, no sentido de “assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”.

Nesse contexto, a essência do princípio da aplicabilidade consiste em dar eficácia aos direitos fundamentais diretamente através da Constituição, não necessitando da interposição do legislador[24]. Embora haja divergências entre os doutrinadores sobre essa perspectiva, “trata-se de interpretação que está em harmonia com os valores prestigiados pelo sistema jurídico de 1988, em especial com o valor da dignidade humana — que é valor fundante do sistema constitucional”.

4.3      O Brasil como signatário do Tribunal Penal Internacional[25] e o instituto da “entrega” – uma possibilidade que demonstra a transnacionalidade do direito

Após a promulgação da Carta de 1988, “importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil”[26]. Dentre eles se destaca o Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional[27], em 20 de junho de 2002. Sancionado sobre “o princípio da universalidade”, “o Tribunal Penal Internacional constitui extraordinário avanço para a realização da justiça e o fim da impunidade relativamente aos mais graves crimes contra a ordem internacional” e consolidou a “postura renovada” do Brasil “em relação à jurisdição internacional de proteção dos direitos humanos”. Foi consagrado através da Emenda Constitucional nº 45, de 30 de Dezembro de 2004[28], que “acrescentou o § 4º ao art. 5º da Carta Magna (“O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão"), conforme explica Fernando Capez (2005).

Sobre a organização, o Tribunal Penal Internacional “trata-se de instituição permanente, com jurisdição para julgar genocídio, crimes de guerra, contra a humanidade e de agressão, e cuja sede se encontra em Haia, na Holanda”. E em que pese os crimes contra a humanidade serem “imprescritíveis”, “o Tribunal Penal Internacional somente exerce sua jurisdição sobre os Estados que tomaram parte de sua criação, ficando excluídos os países que não aderiram ao mesmo”. Sua “jurisdição internacional é residual e somente se instaura depois de esgotada a via procedimental interna do país vinculado”. Observados os “princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal”, “a decisão do Tribunal Internacional faz coisa julgada, não podendo ser revista pela jurisdição interna do Estado participante”.  

Por outra via, destaca-se a criação do instituto da “entrega” trazido junto a consignação do Brasil ao referido Tribunal Internacional, que dentre outros, cita-se os termos do Art. 58, inciso 5: “Com base no mandado de detenção, o Tribunal poderá solicitar a prisão preventiva ou a detenção e entrega da pessoa (...)”,  ou ainda o Art. 59, inciso I: “O Estado Parte que receber um pedido de prisão preventiva ou de detenção e entrega, adotará imediatamente as medidas necessárias para proceder à detenção (...)”.

Nesse contexto, Fernando Capez (2005) é categórico ao afirmar que “o Brasil poderá promover a entrega de cidadão brasileiro para ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional”, pois não há que se falar em violação do “disposto no art. 5º, LI, de nossa CF, que proíbe a extradição de brasileiro nato ou naturalizado (salvo se este último estiver envolvido em tráfico ilícito de entorpecentes ou tiver praticado crime comum antes da naturalização)”. Referido entendimento se justifica, pois “não se pode confundir extradição com entrega”, conforme se vê no próprio Art. 102 do Estatuto de Roma:

Para os fins do presente Estatuto: a) Por "entrega", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto.  b) Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno. (Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, 2002).

De outra forma: “na extradição, há dois Estados em situação de igualdade cooperando reciprocamente um com o outro”, enquanto que, “na entrega, um Estado se submete à jurisdição transnacional e soberana, estando obrigado a fazê-lo ante sua adesão ao tratado de sua criação”, logo, conclui-se que “não há relação bilateral de cooperação, mas submissão a uma jurisdição que se sobrepõe aos países subscritores”. Assim, depois de superado o requisito da consignação, resta demonstrado o caráter transnacional instituído por uma norma internacional no plano interno de um Estado – expressão notória da “relativização da soberania” contemporânea tão densamente debatida até aqui.

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