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Usucapião especial de imóvel urbano:

instrumento da política urbana

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Agenda 17/09/2004 às 00:00

4. DISPOSIÇÕES COMUNS ÀS DUAS MODALIDADES

São comuns ao usucapião individual e ao coletivo:

a) Impossibilidade de usucapião de imóveis públicos: a Constituição Federal impõe a restrição, sem ressalvas [18]; o Código Civil de 2002 reproduziu a proibição no art. 102. Dessa forma, o usucapião especial urbano, coletivo ou individual, é instrumento inócuo, no que diz respeito a áreas públicas, preferidas de muitas favelas ou aglomerados irregulares, restando ao Poder Público atuar de forma preventiva e enérgica, ciente da perenidade da irregularidade.

b) A intervenção do Ministério Público é obrigatória: o interesse público que fundamenta a intervenção é flagrante no usucapião coletivo.

c) Ações possessórias e petitórias relativas ao imóvel usucapiendo ficam sobrestadas, até o deslinde da ação de usucapião: o art. 11 do Estatuto da Cidade inverte o comando do art. 923 do Código de Processo Civil, que impede "ação de reconhecimento de domínio na pendência de processo possessório". O caráter social que impulsiona o usucapião especial urbano prevalece sobre a questão possessória, abstraindo-se a natureza da disputa da posse. Evidentemente, as possessórias previamente ajuizadas podem se prestar como prova de oposição à posse ad usucapionem. Também nos parece que o usucapião invocado em defesa tem o mesmo efeito, em relação a outras demandas petitórias ou possessórias eventualmente ajuizadas, que tenham em mira o imóvel usucapiendo.

d) O rito processual é sumário (art. 14 do Estatuto da Cidade c. c. art. 275 do Código de Processo Civil): parece-nos provável, porém, que as citações e intimações, pessoais e editalícias, possam prejudicar a realização da audiência inicial no prazo do art. 277 do Código de Processo Civil, mesmo computado em dobro, em função da intimação da Fazenda. É recomendável a conversão de rito, nos termos do § 4.º do art. 277, sendo notório que, em determinadas circunstâncias, o procedimento ordinário se mostra mais célere e menos oneroso.

e) Alegação do usucapião especial em contestação: é pacífica a possibilidade de invocação de usucapião como defesa do prescribente (Súmula n. 237 do STF). A sentença de improcedência, embora reconheça a consumação da prescrição aquisitiva, não é hábil para ensejar o registro da aquisição [19]. Os motivos impeditivos do efeito declaratório da propriedade e conseqüente registro da sentença são os mesmos que justificam a impossibilidade de dedução de usucapião em reconvenção, segundo clito fornaciari júnior: "... a necessidade da participação de outros sujeitos que não se fazem presentes na possessória (confrontantes, terceiros interessados, Fazenda Pública); por outro lado, seria inviável a inserção de um procedimento especial dentro de outro, o que levaria à desistência do rito especial" [20]. Tais conclusões dizem respeito ao usucapião ordinário e extraordinário; o Estatuto da Cidade confere ao usucapião especial urbano, tanto individual quanto coletivo, o mesmo tratamento que a Lei n. 6.969/81, no seu art. 7.º, outorgava ao usucapião pro labore por ela tratado: "o usucapião poderá ser invocado como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no registro de imóveis". O art. 13 reproduz a regra: a sentença que reconhecer o usucapião afirmado em defesa é título hábil para registro no oficial de imóveis. Referindo-se ao usucapião da Lei n. 6.969/81, nelson luiz pinto realça o caráter dúplice da ação e transcreve lição de Kazuo Watanabe, extraída do artigo "Ação dúplice" (Revista de Processo 31/140): "Quando isto se permite, diz que a ação tem caráter dúplice. A contestação nessa modalidade de ação não somente formula defesa do réu, como também poderá conter autênticos pedidos em seu favor, sem necessidade de reconvenção" [21]. Exemplo que deve conduzir o julgador, notadamente nas hipóteses de usucapião especial urbano, diante do imanente interesse público, é acórdão proferido com aguçada sensibilidade jurídica pela 3.ª Turma do STJ, que julgou dispensável a dedução de pedido de reconhecimento de usucapião, na defesa que o afirma: "Alegada, pelo contestante de ação, posse velha, ainda que sem expressa referência ao termo ‘usucapião’, a alegação há de ser apreciada. Caso em que corretamente se entendeu que ‘Os fundamentos jurídicos da resposta é que têm relevância jurídico-legal. Não a falta de utilização da locução técnico-legal adequada.’ Inocorrência de ofensa a texto de lei federal" [22].

f) O § 2.º do art. 12 confere ao autor da ação os benefícios da assistência judiciária e a gratuidade do registro da sentença: pese imperativo, o dispositivo deve ser aplicado cum granu salis. No usucapião especial coletivo, a hipossuficiência econômica da população é pressuposto do próprio Direito, o que implica a concessão da assistência judiciária gratuita, presumindo-se sua necessidade, que está in re ipsa, dispensado o atendimento ao disposto no art. 4.º da Lei n. 1.060/50. No caso do usucapião individual, a interpretação é diversa, uma vez que há hipóteses em que o usucapiente não é destinatário da assistência. Não nos parece que o possuidor de apartamento de 250m² em área nobre de São Paulo possa, de forma legítima, se beneficiar da assistência gratuita; certamente, o Estatuto da Cidade não o contemplou, embora tenha esquecido de deduzir a ressalva. Dessa forma, no usucapião especial, a assistência deverá ser concedida caso o autor da ação afirme a impossibilidade de arcar com as custas e honorários processuais, por intermédio da declaração de que trata o art. 4.º da Lei n. 1.060/50.


5. USUCAPIÃO ESPECIAL E MEIO AMBIENTE

Não é sem razão que celso fiorillo [23] denomina de usucapião ambiental a modalidade prevista no Estatuto da Cidade.

Como instrumento da política urbana, deve observar as diretrizes gerais que a imprimem. Entre elas: 1.ª) a garantia do direito a cidades sustentáveis (art. 2.º, I); 2.ª) o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente (art. 2.º, IV); 3.ª) ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a poluição e a degradação ambiental (art. 2.º, VI, "g"); 4.ª) adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência (art. 2.º, VIII); proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (art. 2.º, XII); audiência prévia nos empreendimentos potencialmente nocivos ao meio ambiente natural ou construído (art. 2.º, XIII).

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É manifesta a preocupação ambiental; a denominação usucapião ambiental é oportuna, até porque se presta como lembrete dos princípios que devem imprimir a aplicação da lei aos casos concretos.

O excesso populacional nas camadas de baixa renda, quer decorra de elevados índices de natalidade, quer decorra da migração desenfreada e inconseqüente, enaltece a crise habitacional. Sem capital para se fixar, tais camadas populacionais são levadas a escolhas evidentes e perniciosas: ocupação de bens de uso comum do povo, encostas, mananciais e outras, que não permitem habitação ou não são para tanto adequadas.

A ocupação das áreas de manancial é ostensiva, ao menos no Estado de São Paulo. Governos municipais, principalmente, revelam inabilidade para lidar com o assunto, e, motivados por interesses eleitorais ou não, costumam optar pela condescendência, não importunando os invasores. A abulia estatal é estímulo para o incremento da ocupação e fixação da população, em zona atraente, com acesso gratuito a inesgotáveis recursos hídricos.

A passividade culposa ainda estimula o constante deslocamento habitacional do campo para as cidades, criando urbes pantagruélicas e avessas ao controle estatal.

A poluição provocada pela ocupação é alarmante, tendo ganhado relevo, em função da notória escassez de recursos hídricos, que aflige o mundo e também atinge o Brasil.

O Estado se depara com inegável conflito, entre dois interesses legítimos: o direito à habitação e moradia, de um lado, e a preservação do meio ambiente, de outro. Tal conflitualidade interna é, aliás, característica dos direitos difusos, que já trazem, de per si, o choque de interesses.

A visão imediatista acaba por gerar o prevalecimento da habitação, o que é equivocado, em função dos meios – em geral, mera complacência com a ocupação, que se desenvolve de forma desordenada – e das nefastas conseqüências para o futuro da população, inclusive os próprios invasores, que enfrentarão a acentuada escassez de recursos hídricos utilizáveis. Por esse motivo, a ocupação de tais áreas deve ser coibida; o fato implica violação a todas as diretrizes da política urbana, de índole ambiental, acima elencados.

A mesma restrição deve ser estendida às ações de usucapião especial, individual e coletivo. O usucapião é instrumento que deve permitir a consecução da política urbana, segundo suas diretrizes. Não pode se prestar à violação da sustentabilidade ambiental e urbana, nem servir a imediatismos cegos ao futuro e ao direito das gerações vindouras.

O juiz, ao aplicar a lei, deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil).

Ao julgar pleitos legítimos, que denotem a observação dos pressupostos exigidos para o usucapião urbano, deverá sopesar os interesses que se embatem, de norma imanente, mesmo nas ações individuais, e evitar que sua decisão acabe por se somar aos estímulos à ocupação irregular e nociva.

Afinal, se a posse precária já induz à isenção estatal de responsabilidades (ou governamental, como sói ocorrer) a propriedade consolidada ensejará álibi invencível.

Além da aplicação da lei em atenção ao bem comum e à finalidade social, alinham-se outros argumentos que justificam a impossibilidade jurídica do usucapião especial em mananciais ou áreas merecedoras de tutela assemelhada.

A escassez tem induzido sensíveis alterações na caracterização jurídica de bens naturais renováveis.

Anota michel prieur que lei francesa de 3 de janeiro de 1992, relativa às águas, alterou o status do que antes era denominado chose commune, que no antigo Código Civil brasileiro equivaleria à coisa fora do comércio, que não admite apropriação. Afirma o ambientalista da Universidade Limoges que a modificação "(...) renforce la responsabilité collective sur ce bien commun en déclarant que ''l''eau fait partie du patrimoine commun de la nation'' et que sa protection dans le respect des équilibres naturels ets d''intérêt general" [24].

No Brasil, o Código de Águas estipula serem águas de uso comum "as nascentes quando forem de tal modo consideráveis que, por si só, constituam o caput fluminis" (art. 2.º, "e"). A Lei n. 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, define a água como bem de domínio público (art. 1.º).

É paradoxal prever a intangibilidade de um bem jurídico e permitir sua lesão por meios indiretos. Imóveis públicos, inclusive e especialmente os de uso comum, não podem ser objeto de usucapião. A restrição deve estender-se também às áreas cuja ocupação permita a lesão a outro bem público, áreas em que a moradia, fundamento do usucapião especial urbano, se esmaece, pela evidente impropriedade de objeto.

Concluindo, a posse ad usucapionem, nas hipóteses previstas no Estatuto da Cidade, deve ser qualificada pela função social, que submete a propriedade que dele deverá decorrer. As mesmas imposições ditadas pela função social da propriedade devem ser transferidas à posse capaz de ensejá-la. A ocupação nociva ao meio ambiente, evidentemente contrária ao interesse comum, deve excluir da posse, ainda que presentes os demais pressupostos legais, a aptidão para gerar a aquisição da propriedade.


Notas

1 O Estatuto da Cidade fez renascer questão de gênero, que já parecia sepultada. É difícil encontrar obra sobre esse assunto que não aborde o tema em seu intróito. JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES (Usucapião de bens imóveis e móveis. 3.ª ed. São Paulo: RT, [19-]. p. 29) antecede a recomendada adoção do brocardo Caesar non super grammaticos – quem o faz é Theotonio Negrão – com a coleta de opiniões divergentes de gramáticos, certamente consultados por diferentes Césares: "Para o insigne Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o vocábulo seria do gênero feminino, de modo que se deveria dizer a usucapião. O ilustre Laudelino Freire, entretanto, afirma ser usucapião palavra do gênero masculino, de sorte que se imporia dizer o usucapião. No mesmo sentido, a opinião de Silveira Bueno". Como resultado da diversidade opinativa, o antigo Código Civil adotava o gênero masculino; a Lei n. 6.969/81 e o Estatuto da Cidade, por seu lado, adotam o gênero feminino. Como se escreve sobre o último (e o recomenda a mais agradável sonoridade), deveríamos aceitar o gênero feminino. Ocorre que o novo Código Civil manteve o gênero adotado pelo seu antecessor. Assim, para evitar a obviamente falsa conclusão de que usucapião é fêmea numa lei e macho na outra, optamos por adotar o gênero consagrado no cotidiano forense e na lei posterior, sem chauvinismo.

2 Com ressalvas de caráter subjetivo, indicadas pelas regras relativas à perda e aquisição da posse, que indicam, ainda que de forma enevoada, o elemento animus de Savigny.

3 Aqui, não há novidade alguma, uma vez que o ânimo de dono é pressuposto de todas as modalidades de usucapião.

4 Art. 6.º da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional n. 26/2000.

5Instituições de Direito Civil. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. vol. 4, p. 105.

6Tratado de usucapião. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. vol. 2, p. 881.

7Op. cit. Usucapião de bens imóveis e móveis. p. 197.

8Apud SALLES, José Carlos de Moreira. Op. cit. Tratado de usucapião. 2.ª ed. p. 198.

9 TAMG, 2.ª Câm., Ap. Civ. n. 334.490-5, j. em 26.2.2002, RT 803/399.

10Direitos reais. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 164.

11 HOUAISS, Antônio. Dicionário Inglês-Português. Rio de Janeiro: Webster’s, 1987. p. 727.

12 Título em Português, que exclui a nacionalidade das cidades do original inglês: Morte e vida de grandes cidades. Trad. Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 302.

13 HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 2.ª ed., 36.ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 487 e 762.

14A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 135.

15 Embora a importação se mostrasse razoável. Assim estabelece o intróito da Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedures: "Prerequisites to a Class Action: One or more members of a class may sue or be sued as representative parties on behalf of all only if (1) the class is so numerous that joinder of all members is impraticable. (2) there are questions of law or fact common to the class, (3) the claims or defenses of the representative parties are typical of the claims or defenses of the class, and (4) the representative parties will fairly and adequately protect the interestes of the class".

16Estatuto da Cidade comentado. São Paulo: RT, 2002. p. 55.

17Comentários ao Estatuto da Cidade. São Paulo: RT, 2002. p. 58.

18 Duas interessantes ressalvas na casuística jurisprudencial, nenhuma delas violando a proibição constitucional, mas desviando sua aplicação de fatos que não comportam a subsunção: a) Na herança jacente, antes da sentença declaratória de vacância, o imóvel não se incorpora ao patrimônio público e pode ser adquirido por usucapião (STJ, 3.ª T., REsp n. 66.637/SP, rel. Min. Nilson Naves, DJU de 1.º.8.2000, RSTJ 142/216); b) "As ilhas marítimas, dentre elas compreendidas as oceânicas e costeiras, efetivamente se encontram no rol dos bens pertencentes à União. Contudo, há que se ter presente que tal situação somente foi consolidada com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Decorre daí que se a posse tiver sido exercida no período de 20 anos anteriores à atual Carta Magna, o imóvel é indiscutivelmente passível de usucapião". (TRF 4.ª Região, 4.ª T., Ap. n. 2000.04.01.108179-0/SC, rel. Des. João Pedro Gebran Neto, DJU de 17.10.2001, RT 798/432). Para arredar a estranheza, o imóvel é área de terra "situada da Rua de Canela, Florianópolis, no interior da Ilha de Santa Catarina. Do contrário, o usucapião seria impossível em nações como a Grã-Bretanha e o Japão (...)".

19 "Dúvida não há sobre a possibilidade da argüição de usucapião como matéria de defesa. Todavia, nesse caso, o Magistrado, acolhendo a argüição da defesa, não pode emitir julgado declarando a aquisição do domínio, mas, apenas, julgar improcedente o pedido de reivindicação." (STJ, 3.ª T., REsp n. 139.126/PE, DJU de 21.9.1998, RSTJ 116/221).

20Da reconvenção no Direito Processual Civil brasileiro. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983. p. 138.

21Ação de usucapião. 2.ª ed. São Paulo: RT, 1992. p. 153.

22 REsp n. 91.983/MT, rel. Min. Nilson Naves, DJU de 8.3.1999, RSTJ 119/314.

23Estatuto da Cidade. São Paulo: RT, 2002. p. 78.

24Droit de l''environnement. 4.ª ed. Paris: Dalloz, 2001. p. 674.

Sobre o autor
Celso Augusto Coccaro Filho

advogado, procurador do Município de São Paulo (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COCCARO FILHO, Celso Augusto. Usucapião especial de imóvel urbano:: instrumento da política urbana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 437, 17 set. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5709. Acesso em: 24 dez. 2024.

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