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As «Duas culturas» e a cultura dos juristas: a arte de ignorar conexões significativas (Parte 2)

Agenda 17/04/2017 às 08:30

O verdadeiramente lamentável é que toda argumentação referente ao que é realmente novo na teoria jurídica é algo tão insólito, que somente a prova do contrário resultaria relevante.

As «Duas culturas» e a cultura dos juristas: a arte de ignorar conexões significativas (Parte 2)

Atahualpa FernandezÓ

“Nuestra práctica es una estafa, fanfarronear, hacer pestañear a la gente, deslumbrarla con palabras rebuscadas”. Jacques Lacan

O verdadeiramente lamentável é que toda argumentação referente ao que é realmente novo na teoria jurídica é algo tão insólito, que somente a prova do contrário resultaria relevante. E tudo isso supondo, ainda assim, que há alguém aí fora que realmente queira ajudar-nos a compreender algo, pois uma apreciável parcela dos autodenominados expertos não somente se encontra atada às fronteiras do mercado das modas intelectuais e às limitações das «praxes do momento», senão que também se empenha — em particular nas chamadas «ciência» ou filosofia jurídica — em construir verdadeiras muralhas entorno a sua área de conhecimento e reagir iradamente ante a presença de intrusos ou elementos contaminantes, elaborando relatos ou tergiversações que «vendem», que são perfeitos para a narrativa e que permitem criar a ilusão de dizer coisas muito profundas, mas que não em vão resultam incompreensíveis ou são irrelevantes.

Admito que nenhuma ideia ou teoria é um completo despropósito senão que geralmente surgem com uma certa intenção de melhora e progresso. Admito também – e em certo sentido respeito a audácia dos que assim atuam - que determinados discursos jurídicos são uma forma deveras eficaz para ganhar prestígio acadêmico, vender livros “de ocasião”, receber aplausos entusiastas dos mais crédulos, e, desde logo, inúmeros convites para proferir palestras. Mas, claro, por múltiples motivos alguns discursos, ideias e/ou teorias, além de não servirem para fazer avançar discussões originais e significativas, se convertem em autênticos buracos negros de consequências não previstas, muitas delas negativas e/ou tendenciosas, pontos de vista que são fáceis de justificar, mas não necessariamente melhores.

De mais a mais, a muralha da negação levantada por uma “cultura da pureza”, mais ideológica que científica, não somente fomenta um tipo de pensamento ou ritual mágico em que a incredulidade recalcitrante resulta imune à evidência, senão que também promove a desfaçatez de negar o fato de que há umas quantas coisas que temos que entender bem acerca da evidência empírica se queremos preservar a superioridade moral de nossos argumentos.  

Em ocasiões esse cercado nem sequer alberga nada em seu interior, posto que existe uma evidente paisagem teoricamente anfibológica, hermeticamente cerrada e cognitivamente hostil à realidade por parte da cultura jurídica; uma cultura em que os juristas parecem estar sempre imunes a toda argumentação que não se ajuste ao seu intransigente e quase místico sistema de crenças. Uma classe de «arte» aprendida muito cuidadosamente, bem deliberadamente, construída durante anos de condicionamento e «domesticação» (essa constelação de todos os prejuízos e ideias preconcebidas que vamos acumulando ao longo da existência), e cujo resultado é a incapacidade de ver o que não estão acostumados a ver ou que não têm de antemão na cabeça, isto é, de recordar, insistir e atentar somente aos fatos que confirmam seus respectivos credos e olvidar aqueles que os desafiam.

Um modelo de cultura, enfim, atravessado por certezas endógenas alheias e resistentes às implicações jurídicas da natureza humana. Ali crescem, se reproduzem e morrem a diário distintas e muito heterogêneas concepções sobre o que «é», sobre o que «deve ser» e sobre «como» entender, interpretar e aplicar o Direito. Cada uma das correntes, cada um dos autores, defende seu próprio conceito do jurídico, de interpretação e aplicação do Direito, de argumentação jurídica, de racionalidade, de justiça, e um longo etcétera.

Surgem assim as «Escolas», com seus discípulos e mestres (e não poucas vezes com seus lacaios e mentores). Não sem razão já se disse – com ironia – que a disciplina jurídica é um templo com sacerdotes e Bíblias muito distintas e com credos contraditórios: um templo onde os sacerdotes elaboram e enunciam suas teorias propondo fórmulas e técnicas, conceitos e postulados, critérios e métodos para fazer do Direito uma disciplina (ou «ciência») cada vez mais limpa, pura ou descontaminada. Um templo em que a identidade e as conjecturas triunfam sobre os fatos, em que a miopia do presente se impõe aos «fantasmas» da realidade.

Embora nos últimos tempos se impôs no mundo acadêmico o desideratum da convergência e síntese de ciências (a afamada interdisciplinaridade), muito do que se afirma neste campo de cooperação entre disciplinas não passa de ser propaganda gremial disfarçada de alguma terminologia confusa ou de algum arabesco metodológico inecessário. A realidade de sua utilização demonstra que seu uso ainda é muito escasso e que quando se efetua muitas vezes se realiza baixo formas teóricas limitadas, pelo que é frequente que se restrinja a meras intenções, a logros muito por debaixo das possibilidades que suas características oferece ou a fórmulas inconsistentes para edificar as ideias mais peregrinas. Quero dizer, se trata mais bem de algo que todos falam, mas ninguém pratica; que todos elogiam, mas ninguém realiza de forma rigorosa.

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E não é distinta a corrente prédica interdisciplinar no âmbito da filosofia e da «ciência» do Direito: é simbólica, tacanha e precária ao mesmo tempo. Mundos que oferecem a impressão de transcorrer sempre em sendas paralelas tocando-se o terreno apenas de maneira pontual e fortuita. Uma espécie de integração restrita (prioritariamente) ao âmbito das ciências sociais normativas (ou influenciada por uma larga lista de explicações e «ciências vudus» em voga no momento) que acabou transformando-se em um mainstream do pensamento jurídico. De fato, no quadro de honra da cegueira jurídica estão aqueles juristas que, orgulhosos de suas improvisações intelectuais, escrevem e fazem  proclamas de teorias “que se pretende tan novedosas, serias y realistas, pero que en realidad se hallan también fatalmente empantanadas en las paradojas del pasado”. (M. Bunge)

Para dizê-lo de um modo brutal e sem paliativos, teorizar sobre o comportamento, as capacidades, as limitações e a cultura (esta rede de «instintos artificiais») do Homo sapiens depreciando a necessidade de levar em consideração os descobrimentos e as contribuições decorrentes das ciências adjacentes desde uma perspectiva mais híbrida de conhecimentos é um risco que já não podemos permitir-nos, para não dizer um desatino. Ou bem optamos por considerar que a «ciência» jurídica é um âmbito gnosiológico autocontido que não requer fazer explícitos os princípios nem a metodologia da investigação procedente de outras disciplinas (uma sorte de reino causal insulado), de modo que não nos resta outra saída que a via de uma exploração teórica arbitrária, abstrata e especulativa; ou bem consideramos epistemicamente irrenunciável a necessidade de encontrar explicações empiricamente contrastáveis e consideramos, ademais, que o verdadeiro conhecimento do humano consiste em decifrar a rede de conexões causais entre as dimensões do natural e do social, do biológico e do cultural, a partir de um programa significativamente construtivo, radicalmente interdisciplinar e impregnado de responsabilidade. Convém aclarar que “as alternativas se excluem”.

Em retrospectiva, é um tremendo equívoco seguir com as obsessões equivocadas, porque a insustentabilidade da incomunicação entre conhecimentos a que me referia a princípio parece evidente (ou, no pior dos casos, um desafio para o pensamento que tanto o filósofo como o agente do direito já não podem mais eludir). Assim que, se buscamos a realidade, sejamos realistas, e admitamos de uma vez por todas que todo jurista honrado, e que queira propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado também na ação), tem a obrigação intelectual e o dever moral de afrontar as grandes questões de seu tempo, reflexionar sobre essas questões com enorme e contundente distância crítica, ser mais humilde com e não fiar-se demasiado de suas próprias crenças, buscar o conhecimento antes que a ignorância deliberada, evitar o autoengano e as associações espúrias que fulminam a linha entre realidade e imaginação, entregar-se às evidências, intentar perceber que existe uma realidade alternativa, uma possibilidade de que esteja (radicalmente) equivocado, e rechaçar doutrinas, dogmas ou valores que só contam com um respaldo empírico direto anedótico.

A «torre de marfim» do conhecimento é em realidade um cárcere de ouro, uma prisão prenhe de indivíduos que contribuem a salvaguardar o desconcerto que rodeia o conhecimento jurídico, onde muitos se dedicam a cultivar uma refinada vaidade academicista, dedicados a abstrusas elucubrações amiúde superlativamente ideológicas e sempre a expensas da investigação empírico-científica e/ou da colaboração com as demais ciências (sociais e naturais).

Claro que cada um vive sua verdade de maneira diferente e pode pensar ou predicar o que quer (inclusive rechaçar a revisão de suas crenças sobre a base da evidência), mas certas posturas começam a ter diferente valor por suas consequências práticas, especialmente quando determinados juristas não sentem a necessidade de deixar de lado o peculiar desdém por outras disciplinas e a absurda pretensão de maior legitimidade apesar de não saber quase nada de quase tudo.

Nada obstante, e aqui termino, não há que ser tão crítico e/ou incomplacente com esse tipo agonizante de jurista que, invocando desde «el más allá » uma laia de inteligência pura e relutando em manter-se ao dia com os desenvolvimentos científicos pertinentes,  não deixa de recorrer a alguma artimanha argumentativa que sirva de vaselina para meter até o fundo determinadas ideias e teorias, a todo um conjunto de conjecturas elaboradas para dar as explicações mais “verossímeis” que não passam de certezas introspectivas, a barreiras ou contorcionismos linguísticos injustificados que fragmentam e dissimulam a realidade das coisas, a proposições praticamente cósmicas ou a qualquer outro ponto de vista esotérico que escraviza  todo pensamento em uma forma de conhecimento estéril. Depois de tudo, e a despeito de que o apedeutismo caprichoso não é uma inesperada virtude, «la ignorancia suele engendrar mayor confianza que el conocimiento». (Charles Darwin)


Ó Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

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