CAPÍTULO II
A GUERRA "JUSTA" CONTRA O TERRORISMO
"Quando os tambores soam, as leis silenciam."
Provérbio anônimo. [26]
1) A reação norte-americana: investida contra os direitos fundamentais
Os ataques terroristas causaram rápida e dramática mudança na ação política americana. Quando assumiu a Presidência, a preocupação do Governo BUSH centrava-se em problemas domésticos, tais como a reforma educacional e a reforma tributária.
Com a agressão, a guerra contra o terrorismo dominou a agenda do Presidente americano. Os Estados Unidos rapidamente planejaram ataques a "Al-Qaeda" – a rede de fundamentalistas islâmicos, liderada pelo saudita Osama bin Laden – cujos líderes estavam operando no Afeganistão desde 1996.
Em um primeiro momento, o Governo americano exige a entrega de bin Laden. O mulá Omar, líder do Talibã, reúne a Shura, o conselho de sábios islâmicos, que decide não expulsá-lo por considerar que não há provas de seu envolvimento. Bin Laden se refugia em local ignorado nas montanhas e Omar convoca os muçulmanos para uma guerra santa contra os "infiéis". A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos cortam relações com o Afeganistão e o Paquistão alia-se aos EUA. O Talibã perde assim o apoio dos únicos países que reconheciam seu governo e fica completamente isolado. [27] A ofensiva militar dos Estados Unidos (EUA) contra o Afeganistão, a partir de 7 de outubro de 2001, dá início a novo capítulo na conturbada história desse país árido e montanhoso da Ásia Central.
Em um segundo momento, a recusa das autoridades afegãs teria justificado os bombardeios anglo-americanos contra o país. Os ataques ampliam a catástrofe humanitária e começam a alterar a relação das forças em guerra, com a perspectiva de avanço da oposicionista Aliança do Norte, que conta com apoio americano e acaba assumindo o controle político do País com a derrubada do regime Talibã.
Poder-se-ia indagar se a recusa das autoridades afegãs de entregar o líder do atentado e o ataque terrorista justificariam esta intervenção militar.
2) A reação americana: hipótese de guerra justa?
KOFI ANNAN, secretário-geral da ONU e ganhador do Prêmio Nobel da Paz, afirmou, em 24 de Março de 1999, quando da intervenção humanitária americana na Sérvia que: "É trágico quando a democracia falha, mas há momentos em que o uso da força pode ser legitimado para a busca da paz". [28]
Na ocasião, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em resposta à ação sérvia, na Iugoslávia, de extermínio dos Albaneses, com o amparo da ONU liderou ação militar, conhecida como "Operação Força Aliada" contra esse País dos Balcãs para forçar o Governo a obedecer às resoluções da ONU.
A ação, liderada pelos EUA, realizou intensos bombardeios aéreos na região, não garantindo, entretanto, a vitória rápida, como se esperava. A ofensiva durou até junho, quando MILOSEVIC aceita o plano de paz.
Observe-se que, nessa oportunidade, a ação militar foi considerada justa pela própria ONU que corroborou a necessidade e justiça da ação nas palavras de KOFI ANNAN, que expressam, sempre de forma pesarosa, a possibilidade de uso da força na busca da paz e do respeito aos direitos humanos.
A filosofia que ampara a posição da ONU e a afirmação de KOFI ANNAN da existência de situações em que há guerra justa provêm, na sua vertente secular, do holandês HUGO GROTIUS na obra "The Law of War and Peace" (De Jure Belli ac Pacis (1625)). [29]
Há, outrossim, vertente teórica de guerra justa de cunho religioso mais antiga presente, notadamente, na filosofia de Santo Agostinho [30] e de São Tomás de Aquino, [31] respectivamente, nas obras "Escritos Políticos" e "Summa Teológica". Esta vertente influenciou, também, GROTIUS.
Sob a ótica do direito natural racional(visão secular), GROTIUS defende que há determinadas e específicas circunstâncias em que o uso da força é permitido: para restaurar a paz ou para manter a tranqüilidade da vida social. [32]
Estabelece, pois, duas categorias genéricas de guerra justa: a primeira vinculada à defesa dos seres e da propriedade e a segunda para punir as condutas injustas. Estas categorias, aparentemente amplas, são detalhadas minuciosamente por GROTIUS para que sejam encaradas como exceções às situações de "just war".
Desse modo, para explicitar a primeira categoria, fixa série de conceitos sobre a origem e os tipos de propriedade. [33]
Dá-se ênfase à segunda teoria – punir as condutas injustas–, pois está presente na ação militar americana no Afeganistão, que tem como razão principal a punição de OSAMA bin LADEN – haja vista que a recusa do Governo Talibã de entregá-lo ensejou a ação militar. Devemos, nesse aspecto, analisar mais detalhadamente a obra de GROTIUS.
Para GROTIUS a punição deve consistir em sofrimento físico imposto àquele que teve ação nociva. Entretanto, a punição deve ser realizada com respeito ao princípio da proporcionalidade em que a punição não pode ser maior do que o dano causado. GROTIUS destaca a existência de dois aspectos fundamentais da guerra: o de um jus ad bellum (direito de uma ação bélica justa) e de um jus in belo (limitações ao que fazer durante uma guerra). [34]
KANT, da mesma maneira, tratando das limitações do procedimento bélico com vistas à construção da paz futura entre as nações beligerantes, afirma:
" ´6. Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hostilidades que tornem impossível a confiança mútua na paz futura, como, por exemplo, o emprego no outro Estado de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), rotura da capitulação, a instigação à traição (perduelio) etc´.
São estratagemas desonrosos, pois mesmo em plena guerra deve ainda existir alguma confiança no modo de pensar do inimigo já que, caso contrário, não se poderia negociar paz alguma e as hostilidades resultariam numa guerra de extermínio (bellum internecinum); a guerra é certamente apenas o meio necessário e lamentável no estado da natureza (em que não existe nenhum tribunal que possa julgar, com a força do direito), para afirmar pela força o seu direito". [35] (grifo nosso)
Nesse aspecto, destacado da doutrina de GROTIUS e KANT, dentre muitos outros limitativos da guerra justa, observa-se que a ação militar americana não atendeu ao pressuposto da proporcionalidade por ser dirigida a toda a população do Afeganistão, que nada tinha haver com o ataque realizado em Nova Iorque. A justa causa defendida por GROTIUS e AQUINO refere-se à legítima defesa, não podendo ser interpretada da maneira como foi pela Nação Americana. A autodefesa deve ser dirigida só contra o responsável e não contra inocentes.
Também, poder-se-ia questionar quanto à primeira das três condições de TOMÁS DE AQUINO para a guerra justa ("autoridade para declarar a guerra justa"), se o Presidente BUSH teria autoridade para decretar guerra, ou se este ato deveria ser tomado pelo ONU, como foi na intervenção militar humanitária de KOSOVO na Iugoslávia. Em outras palavras, ações militares justas podem existir sem o apoio da Comunidade Internacional?
Pode a hegemonia americana econômica e militar dar carta branca ao Governo Americano para declarar guerra onde, como e quando desejar? Em outras palavras, os E.U.A têm legitimidade para decretar revides (vingar uma ofensa com outra maior) contra determinado país?
CAPÍTULO III
ILEGITIMIDADE DA REAÇÃO ESTATAL NORTE-AMERICANA E A DESTRUIÇÃO DA TERCEIRA TORRE (OS DIREITOS FUNDAMENTAIS)
"No centro das considerações morais da conduta humana encontra-se a consciência; no centro das considerações das condutas políticas situa-se o mundo."
HANNAH ARENDT [36]
1.Importância da discussão sobre a legitimidade de ações estatais internacionais
Como ensina JOÃO MAURÍCIO ADEODATO, discutir a legitimidade significa, em certa medida, examinar as próprias bases sobre as quais se assentam o direito e a política, enfrentando questões que, devidamente ampliadas, coincidem com a própria história da civilização ocidental. [37]
Assim surge a questão basilar de saber em que sentido se pode falar, ou não, em ação estatal ilegítima. Qual o papel do ordenamento jurídico internacional neste questionamento?
As vertiginosas transformações, verificadas em nossa época, provocaram rompimento brutal com a tradição e com o passado comuns, trazendo enorme defasagem entre o arsenal teórico jurídico e a realidade dos fatos, sem oferecer qualquer substitutivo seguro para nortear a ação política e a elaboração de normas jurídicas destinadas a protegê-la. Este rompimento se manifesta a olhos vistos na tão falada crise de poder, que nada mais é do que crise de legitimidade do poder, uma vez que o constante aperfeiçoamento tecnológico dos instrumentos de violência torna cada vez mais crítica a normatização das condutas bélicas. [38]
Existe crise quando não se sabe se as decisões tomadas pelo centro formal do poder – aquele anteriormente instituído no grupo – serão suficientes para dirimir os conflitos, sem comprometer o equilíbrio entre o ordenamento jurídico e a realidade político-social a que se refere.
Escolhido o problema da legitimidade como tema, e admitidas as hipóteses de uma situação crítica em diversos sentidos, e de uma inadequação dos conceitos teóricos tradicionais à realidade atual, o estudo do pensamento de HANNAH ARENDT tem, aqui, duas motivações básicas: em primeiro lugar, a insatisfação pessoal com o esvaziamento de conteúdos doutrinários mais recentes, como os direitos fundamentais, entendidos como compromisso mundial concretizado na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. Em segundo lugar, a necessidade de demonstrar que a ação estatal continua sendo fundamental para resolução de conflitos mesmo no contexto globalizado em que o econômico, muitas vezes, prevalece sobre o político.
HANNAH ARENDT atende às motivações básicas apresentadas, pois ao mesmo tempo em que se destacou em termos teóricos e práticos como defensora dos direitos fundamentais, também foi estudiosa das ações estatais que os desrespeitam.
HANNAH ARENDT teve vida conturbada, em local e época hostis à sua condição de judia; tal circunstância, que não deixou de marcar seu pensamento, incentivou-a, a buscar fundamentação teórica para a problemática da legitimidade e da violência. [39]
Lendo ARENDT, não se deve perder de vista a inevitável conexão entre direito e política, conexão que se transforma em unidade se é pensada em sua totalidade, isto é, em termos filosóficos; essa inseparabilidade faz de sua obra fonte segura para observação crítica da violência da ação terrorista da AL-QUAEDA e da reação americana. [40]
Consoante ensina CELSO LAFER:
"O presente, que para Hannah Arendt gerou a consciência e a percepção da ruptura, foi o fenômeno totalitário. O totalitarismo, como nova forma de governo e de dominação, baseado na organização burocrática de massas, no terror e na ideologia, provou, com o genocídio, não existirem limites à deformação da natureza humana". [41]
2) Legitimidade e violência na visão de Hannah Arendt
HANNAH ARENDT entende que para compreender-se a legitimidade, há que tratar-se, inicialmente, de liberdade. A liberdade, como realidade perceptível no mundo das aparências, deve estar presente em todos os sentidos, inclusive, e principalmente, na possibilidade da manifestação pública do pensamento. [42]
Em 1951, apenas há seis anos da derrota nazista, publica seu primeiro grande livro "As Origens do Totalitarismo", em que procura compreender uma das grandes questões vivenciadas por ela na condição de judia, como foi possível acontecer o fenômeno totalitário da supressão da liberdade. É a liberdade que torna a existência humana imprevisível e capaz de aproximar as duas dimensões da condição humana: ação política (vita activa) e ação contemplativa (vita contemplativa), haja vista o caráter eminentemente abstrato da última.
ARENDT descrevia os campos de concentração como "laboratórios nos quais os princípios fundamentais do totalitarismo de que tudo é possível era (...) verificado" por um processo no qual homens eram transformados em homens subjugados, criaturas sem capacidade de ação ou escolha. A retirada dos direitos dos indivíduos e da oportunidade de terem escolhas eram só os primeiros passos, após os quais a própria noção de indivíduo era destruída. No fim os "homens" do campo de concentração eram reduzidos a "marionetes com rostos humanos". [43]
A autora entende que a liberdade propriamente dita se encontra no "eu posso" e não no "eu quero", de forma que o livre arbítrio tem função preponderante em uma sociedade. A destruição da liberdade (livre arbítrio), em qualquer nível, resume-se em violência contra o ser humano.
Em que pese a larga aceitação da máxima de que os homens nascem iguais e a sociedade e o poder público os pervertem e criam as distinções, [44] HANNAH ARENDT refuta tal simplificação da realidade.
Para ARENDT, ao contrário, os homens nascem diferentes e é a faculdade de agir politicamente que os torna iguais. Assim, a expressão poder legítimo é redundante, haja vista que o poder ilegítimo não é poder, mas violência. [45]
"A prática da violência (...)muda o mundo, mas a maior probabilidade é a de que o mude para um mundo violento". [46] De forma repetida, HANNAH ARENDT sempre se colocou contrária à corrente do Maquiavelismo que afirma que "os fins justificam os meios" e que se encontra presente nas práticas violentas dos ataques terroristas de 11 de Setembro e na retaliação americana.
Conforme observa MARGARET CANOVAN na obra "On Revolution", ARENDT demonstra idêntica preocupação de que a violência nunca pode ser vista como prática aceitável, dependendo do seu objetivo, ao comparar a Revolução Americana e a Francesa para provar que a passagem de governo autoritário para republicano não precisa ocorrer, necessariamente, por meios violentos. [47]
Destarte, sempre que a liberdade houver sido ferida, haverá a aplicação da força. ARENDT classifica-a em três níveis: a violência, necessariamente humana; a força, vinculada ao meio no qual o homem está inserido (a Natureza); o vigor, que pode ser humano ou natural. [48]
Na lapidar síntese de ADEODATO:
"O vigor é uma qualidade necessariamente individualizada de determinado objeto ou pessoa, podendo, neste último caso, consistir tanto em potência física como mental; é um dado objetivamente mensurável que varia muito de indivíduo para indivíduo (...) a força indica qualquer forma de energia proveniente de movimentos físicos ou de circunstâncias, como quando nos referimos às forças da natureza ou às pressões do ambiente coletivo (...) A violência, por seu termo, embora freqüentemente identificada com a coação oriunda da força, é um fenômeno especificamente humano; é necessariamente instrumental e depende de implementos, objetos característicos da produção do homo faber, servindo para multiplicar o vigor natural do homem. Para Arendt, a violência é tão inquestionadamente tida como parte essencial e até sinônimo de poder, nas ciências humanas contemporâneas, que nem se fala mais no assunto." (49) (grifo nosso)
Pode-se, então, caracterizar a legitimação como sendo o apoio que dá poder às instituições de um país, e este apoio nada mais é do que o prolongamento do consentimento que trouxe as leis à vida. O poder corresponde à capacidade humana, não apenas de agir, mas de agir em conjunto, conforme destaca JOÃO MAURÍCIO ADEODATO com base em HANNAH ARENDT. [50]
Logo, o poder mundial não pode ser visto sob o prisma da individualidade de uma Nação, por mais hegemônica que ela seja, mas sempre dependente de apoio dos demais.
Em conseqüência, assim como o poder interno de determinado Governo deve ser obtido por meio do apoio da maioria, no âmbito internacional, o poder deve ser obtido com o apoio das outras Nações às ações governamentais internacionais daquele país, sob pena de uso de violência.
As ações americanas de combate ao terrorismo de cunho internacional feitas de forma unilateral sem o consentimento expresso das outras nações exprimem, pois, pesar e queda da terceira torre ("A liberdade).
A afirmativa do Presidente BUSH, de que os que não estão com a Nação americana, estão contra ela, ressalta a arrogância americana de sequer se preocupar com a possibilidade da conduta americana ser submetida à aceitação pela comunidade internacional. [51]
Observe-se que a abrangência da ação americana e possível reação terrorista de retaliação, faz com que a Comunidade Internacional seja o fórum por excelência para o debate das ações militares contra o Terrorismo.
O caráter dinâmico da legitimidade, defendido por ARENDT, exige o seu julgamento no caso concreto. Assim, tornam-se ilegítimos, em nível interno, os atos dos Governantes que recebem mandato para cumprir determinada promessa e furtam-se do compromisso, bem como do governo que, ainda que legalmente investido no poder, perde o apoio popular durante a execução de seus atos. Mutatis mutandi, em nível externo, as ações militares americanas devem passar pelo crivo da Comunidade Internacional sob pena de serem atos de violência, o que os torna ontologicamente contrários à liberdade.
Por outro lado legítima será qualquer ação da Comunidade Internacional no sentido de promover a discussão das ações contrárias ao Terrorismo Internacional, em si também atentatórias à liberdade. Aqui se pode afirmar, parafraseando NORBERTO BOBBIO, que o problema não é justificar a ação militar americana, mas proteger os direitos humanos de qualquer forma de ataque. [52]
Assim destaca ADEODATO, que das quatro formas de induzir outros sujeitos a determinada conduta (a persuasão, a autoridade, a astúcia e a força):
"A persuasão, segundo a lição de Hannah Arendt, a atividade política por excelência na Grécia Clássica, é a única dessas nossas experiências que pressupõe a igualdade de condições entre as partes, dizendo respeito predominantemente ao conteúdo da mensagem que é comunicada". [53] (grifo nosso)
No âmbito do Direito Internacional Público, a igualdade entre as Nações é a mola-mestra, conseqüentemente, a persuasão, e não a força nem a autoridade, que pressupõem a desigualdade das partes, deve ser o mecanismo, por excelência, da resolução dos conflitos.