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O constitucionalismo norte-americano e sua contribuição para a compreensão contemporânea da Constituição

Agenda 02/10/2004 às 00:00

De forma diferente do constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte originário que produziu em 1787 um texto codificado, rígido e sintético com aspecto essencialmente principiológico e inicialmente político, incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.

O constitucionalismo estadunidense criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de constitucionalidade, mecanismo sofisticados de freios e contrapesos e uma Suprema Corte que protege a Constituição, sendo sua composição uma expressão do sistema controle entre os poderes separados.

Sobre a constituição norte-americana muito tem sido dito, e por isto, muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser a compreensão de seus interpretes e estudiosos. Alguns autores afirmam encontrar-se nos EUA ao menos três constituições, outros falam em sete constituições diferentes. Isto significa que, embora desde 1787 o texto com sete artigos permaneça em vigor com 27 emendas, ocorreram modificações interpretativas que atribuíram sentidos diversos aos significantes do seu texto, e estas mudanças de compreensão geraram novos direitos.

Para compreender o que foi dito é importante que lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Neste sentido toda leitura de um texto, significa atribuição de sentidos e atribuição de sentidos significa atribuir valores, valores estes que mudam com a mudança da sociedade. A sociedade muda através das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores, logo mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais portanto passamos atribuir novos significados.

O processo evolutivo da Constituição dos EUA ocorre principalmente através das suas mutações interpretativas, decorrentes da evolução de valores de uma sociedade em permanente conflito.

Jorge Miranda (1) afirma que a constituição norte-americana é simultaneamente rígida e elástica. Rígida porque a alteração formal de seu texto é complexa e diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para alterar o texto ou promover emendar aditivas ou supressivas é necessária a participação dos Estados membros da federação em um processo lento e complexo. Isto explica em parte o número reduzido de emendas. Entretanto o principal motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, através de emendas, e o fato de que, este texto sintético e principiológico permite mutações interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de seus princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto, pois muda-se a Constituição mudando o seu sentido, a sua compreensão, sem ter que mudar o texto.

Importante ressaltar que a mudança interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto sintético, que contenha mais princípios do que regras (2) permite maiores mudanças interpretativas, do que um texto analítico, com excesso de regras, que travem a mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto mais regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos chega a especificar modelos, conceitos e traduzir valores, menor o espaço para as mudanças interpretativas. Entretanto podemos dizer que mesmo um texto detalhado, minucioso também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja menor. Podemos concluir neste aspecto, que, ao contrário do que se diz, de que a Constituição dos EUA é uma pequena, o seu texto sintético permite construções interpretativas muito amplas, fazendo que a constituição dos EUA, juntamente com a Inglesa, seja uma das maiores Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto. Integram a Constituição as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso concreto.

Este é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre nos EUA ocorre em todo o mundo, com intensidade diferente. A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto pos si só não existe, ele só passa a existir quando alguém lê, e quando isto ocorre, necessariamente quem lê e atribui sentido, o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.

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Pode-se imaginar a partir daí que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isto também é fato. O que cabe ao jurista buscar, é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com esta descoberta. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo é uma ilusão, que não gera segurança mas gera sim injustiça e imobilismo autoritário.

Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece uma maior segurança que o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica. Este assunto vamos enfrentar mais adiante, e vamos nos valer das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo.

Votemos pois a história constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução constitucional daquele país e a importante contribuição de sua prática histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional em todo o mundo. (3)

Vamos tomar uma frase (em português) mas originária da declaração de independência dos Estados Unidos:

"TODOS OS HOMENS NASCEM LIVRES E IGUAIS EM DIREITO"

Como o leitor compreende estas palavras hoje, no século XXI (interrogação). Provavelmente da maneira como a grande maioria da pessoas: todas a pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de credo religiosos, etnia, cor, sexo, origem econômica ou nacional nascem livres e iguais em Direito.

Como vemos, a expressão "todos os homens nascem livres e iguais em Direito" conquistou hoje o senso comum de milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição de um Estado nacional relativamente democrático, com um significado que se universalizou. Entretanto para lermos e compreendermos esta frase como a compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta conquista de direitos. A atribuição deste sentido aos significantes da frase, embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades representa um busca comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral deste principio é hoje bastante generalizada, embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade não seja tão uniforme, e nem deva ser, dentro de um universo cultural diversificado, plural e democrático.

Se buscarmos no entanto, a compreensão desta frase no século XVIII, pouco depois da independência dos EUA, vamos perceber que as palavras ganham um outro sentido, e logo as normas decorrentes deste princípio serão outras. O olhar de um juiz norte-americano sobre estas palavras, expressando os valores daquela época, vai permitir que ele extraia desta frase a seguinte compreensão: todos os homens (sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais em direito. A mesma frase, com os mesmos significantes ganha sentido completamente diverso, pois o olhar do interprete é condicionado pelos valores sociais e as pré-compreensões destes valores decorrentes em um determinado momento da história. As compreensões são historicamente e geograficamente localizadas. Com outro sentido, as normas decorrentes deste principio estabelecem uma ordem jurídica fundada sobre valores completamente diferentes, e um sistema normativo também completamente diferente.

A situação de exclusão, e um desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um sul escravagista e conservador, gerou conflitos que levaram a guerra civil norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo símbolos, para os mesmo significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói na linguagem que é reconstruída pela marcha econômica e social do capitalismo do século XIX. Estas mudanças ocorrem nas cabeças das pessoas. Novas demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam estas novas compreensões constroem soluções, novas normas diante do caso concreto que refletem estes valores. No final do século XIX as mesmas palavras que traduzem o princípio das igualdade ganham novo significado e normas diferentes são criadas, regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma diferente.

A frase "todos os homens nascem livres e iguais em direito" passa a ter um novo sentido, podendo ser traduzida da seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver separados. A existência de escolas só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos só para brancos e só para negros assim como outras separações, são permitidas, desde a qualidade dos serviços sejam iguais para brancos e negros. (4) Esta criada a doutrina do separados mas iguais. Este processo de mutação interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar enquanto paradigma de compreensão durante algum tempo.

A compreensão do separados mas iguais permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o movimento pelos direitos civis na década de 1950 (5) e 60 com a liderança de Malcon X, o pastor Martin Luther King, a eleição de John Kennedy em 1960 e a ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux Klan, empurram a sociedade norte americana para uma nova ruptura, com a construção de uma nova idéia de igualdade. Lentamente a doutrina do separados mais iguais vai cedendo espaço a uma nova leitura do principio da igualdade jurídica. A frase "todos os homens nascem livres e iguais em direito" passa a ser compreendida de outra maneira. Agora podemos dizer que todos os homens, brancos, negros, vermelhos, amarelos, independente de cor, etnia ou qualquer outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos, e não podem ser obrigados a viver separados em um sistema de segregação, de qualquer espécie.

A igualdade direitos entre homens e mulheres entretanto ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos EUA, foi proposta a 27 emenda, reconhecendo direitos iguais para homens e mulheres. Na sua proposição reconheceu-se que, caso a Suprema Corte mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a aprovação da emenda. E emenda não foi aprovada, encontrando forte resistência nos Estados do sul, mais conservadores. Entretanto a Suprema Corte passa a compreender a igualdade perante a lei de uma nova forma. Podemos dizer que a frase "todos os homens nascem livres e iguais em direitos" passa a ser compreendida da seguinte forma: todos os homens leia-se todos os seres humanos, sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social ou econômica, ou sexo.

A igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição de 1988, no seu artigo 5 inciso I. Em muitos países, hoje respeitados como modelos de Estado de bem estar democráticos, os direitos das mulheres foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi admitido em nível federal, a partir de 1972.

Como vimos o princípio da igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos até que pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Este foi o percurso de um princípio. Quando falamos em uma mutação sistêmica da compreensão do texto constitucional, esta representa a mudança de compreensão de toda a Constituição. É como se adotasse uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disto tenha sido a passagem de uma Constituição liberal para uma Constituição social, sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e sem um novo processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz respeito a admissão da possibilidade de uma forte intervenção do Estado no domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos Estados Unidos a partir do governo Roosevelt na década de 1930 e 1940, adotando um modelo econômico intervencionista de base teórica keynesiano-fordista. (6)

A história constitucional norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.


Notas

  1. MIRANDA, Jorge. Ob.cit.p.84
  2. mais adiante vamos tratar da diferença entre princípios e regras
  3. Não ignoramos a existência de uma rica hermenêutica no mundo oriental, muito anterior as reflexões ocidentais, mas para abordamos este tema é necessário maiores estudos. Quando aptos a enfrentar e trazer as contribuições históricas do oriente para a humanidade vamos fazê-lo. Agora ainda não.
  4. A pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora Carla Dumont Olliveira observa em sua pesquisa sobre a reforma da Constituição do EUA que no caso "Plessy v. Fergunson, foi questionada uma lei de Louisiana de 1890 que exigia acomodações iguais para brancos e negros, porém em partes separadas de um mesmo trem. A Suprema Corte entendeu que tal exigência era razoável e não feria a décima quarta emenda, pois o que visava a referida lei era promover o interesse público, a paz pública e a boa ordem e não oprimir uma classe específica. Consta, ainda, da decisão, cujo relator foi o Juiz Brown, que se as duas raças buscam igualdade social, isso precisa ser o resultado do consentimento voluntário dos indivíduos, sendo que a legislação é impotente para erradicar instintos raciais. (grifos nossos) Plessy v. Fergunson iniciou a denominada doutrina dos "separados, mas iguais". Os precedentes Plessy v. Fergunson e Brown v. Board of Education foram retirados do livro : The American Constitution. Cases – Comments – Questions P.939-941.
  5. Carla Dumont Oliveira observa que "felizmente, em 1954, foi alterada a interpretação da décima quarta emenda com Brown v. Board of Education, em cujo caso decidiu-se que no campo da educação pública, a doutrina dos "separados, mas iguais" não tem cabimento. Entre outras coisas, asseverou-se que o senso de inferioridade afeta a motivação da criança em aprender e que a segregação, de per si, é uma negação da igual proteção das leis. Verifica-se, pois, alteração da Carta Magna, sem nenhuma alteração na letra da lei, mas significativa alteração no que tange à concepção do princípio da igualdade."
  6. Carla Dumont Oliveira observa que o "ritmo das alterações da Constituição Federal tem variado rapidamente conforme o período histórico, apontando como fator determinante para isto relativo ativismo do governo federal. Entende Stephen Griffin que a Suprema Corte não deve servir como principal guardião da mudança constitucional. As principais mudanças constitucionais ocorridas ao longo do século vinte foram iniciadas e conduzidas pelo Presidente e pelo Congresso. Importantes modificações ocorreram por outros meios que não emendas ou interpretação judicial. (mudanças fundamentais como aquelas que se seguiram ao New Deal). Daí Griffin criticar a definição convencional da Constituição como "conteúdo do documento de 1787, ratificado e validamente emendada, acrescido dos vários precedentes interpretativos editados pelo judiciário federal" (José Ribas (Org.) Temas de direito constitucional norte-americano. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pág.65), por entender que tal definição não captura a total realidade da mudança constitucional. Para solucionar este aparente desafio, Griffin propõe entender as revisões sugeridas como tentativas para se explicar a Constituição, noticiando que normas que não estão no texto são funcionalmente equivalentes a normas do texto."
Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O constitucionalismo norte-americano e sua contribuição para a compreensão contemporânea da Constituição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 452, 2 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5769. Acesso em: 26 dez. 2024.

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