Não é desconhecida a íntima ligação entre o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF) e o instituto da coisa julgada. É que como elemento formador do Estado Democrático de Direito, carrega consigo o Princípio da Segurança Jurídica, que garante as relações sociais e jurídicas, impedindo a relativização da coisa julgada e a instalação de uma ditadura, de esquerda ou de direita, em que aspectos subjetivos tivessem o condão de obstruir a prevalência da decisão judicial passada em julgado.
A doutrina e a jurisprudência dominante, defende que havendo um choque entre a justiça da sentença e a segurança das relações jurídicas e sociais, o sistema constitucional brasileiro resolve o choque optando pelo valor segurança (coisa julgada), que deve prevalecer em relação à justiça, que será sacrificada [1]. Prevaleceria a sentença injusta em detrimento da segurança jurídica. O mesmo raciocínio é aplicável, em relação a sentença ilegal ou inconstitucional, que só poderia ser relativizada nos casos expressamente taxados pela lei, dispostos numerus clausus: 1) – ação rescisória (art. 485, CPC); 2) – embargos à execução de título judicial (art. 741, CPC); 3) – coisa julgada segundo o resultado da lide (art.18, LAP e art. 103, CDC) e 4) – revisão criminal (art. 622, CPP).
Trazida a discussão para o mandado de segurança, algumas nuances próprias implementam distinções a respeito da coisa julgada. Sobre o assunto já escrevi: "A Súmula 304, do STF, consigna que decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso da ação própria. Hodiernamente, com a evolução da jurisprudência, a interpretação da Súmula, inclusive pelo próprio STF, tem entendido que se o mandado de segurança tiver denegada a segurança, com o exame do mérito, haverá coisa julgada material, impedindo ao impetrante a renovação do pedido, mesmo em outra ação. Haverá possibilidade da ação rescisória, desde que ocorrendo os pressupostos previstos no art. 485 e seguintes do Código de Processo Civil. Se a decisão não enfrentar o mérito, ou seja, com a extinção do feito sem o julgamento do mérito, haverá apenas coisa julgada formal, autorizando a renovação do pedido, em outro mandado de segurança ou em outra ação. Estipula o art. 16, da Lei 1.533/51, que o pedido do mandado de segurança poderá ser renovado se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito". [2]
Por outro lado, a aplicação da Súmula 304 com o art. 15, da lei 1.533/51 ("a decisão do mandado de segurança não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais"), tem levado a conclusão que nas hipóteses em que a decisão conclui inexistir direito ao impetrante, apreciando o mérito da impetração, a pretensão não poderia ser renovada, nem via novo mandado de segurança, nem via ação ordinária. A renovação da impetração ou a busca do direito via ação ordinária, a que alude a Súmula, estaria reservada apenas aos casos em que não apreciado o mérito da causa.
A jurisprudência, sem discrepar da conclusão central, tem relativizado a coisa julgada, nas hipóteses em que se apresentaram mudanças das circunstâncias, impedindo a cobrança de obrigação tributária inconstitucional. Em julgamento em que a empresa tinha contra si decisão com trânsito em julgado, reconhecendo a constitucionalidade de tributo tido hodiernamente como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu possível a impetração de novo mandado de segurança, registrando, no voto do Ministro Humberto Gomes de Barros: "O Mandado de Segurança destina-se a defender direito líquido e certo. A decisão que dele se origina configura uma Ordem auto-executável do Estado-Juiz para que cesse a violência praticada pelo próprio Estado. Se essa Ordem passa em julgado, veta-se o novo exame da lide sob as mesmas circunstâncias. No entanto, com a mudança das circunstâncias pode ocorrer violação a direito líquido e certo. Daí ser lícito pedido de nova Ordem de Segurança, a qual não se pode opor a coisa julgada." [3] Ressalvando a impossibilidade da coisa julgada, em mandado de segurança, ensejar o cumprimento de obrigação tributária reconhecidamente inconstitucional, o Eminente Ministro ainda decidiu que "no mandado de segurança, em questões de trato sucessivo, a coisa julgada traz consigo a cláusula rebus sic stantibus. Mudanças em circunstâncias fáticas ou jurídicas autorizam novo pedido de Segurança, sem oponibilidade da coisa julgada".
O Recurso Especial n. 381.911/PR, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, porta a seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – COISA JULGADA SOBRE QUESTÃO SABIDAMENTE INCONSTITUCIONAL – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE REMUNERAÇÃO DE ADMINISTRADORES, AVULSOS E AUTÔNOMOS – RELAÇÃO TRIBUTÁRIA DE TRATO SUCESSIVO – INOPONIBILIDADE.
1.O Mandado de Segurança destina-se a defender direito líquido e certo. Ele se traduz em Ordem auto-executável do Estado-Juiz para que cesse a violência praticada pelo próprio Estado. Se essa Ordem passa em julgado, veta-se o novo exame da lide sob as mesmas circunstâncias.
2.Em questões de trato sucessivo, a coisa julgada traz consigo a cláusula rebus sic stantibus. Mudanças em circunstâncias fáticas ou jurídicas autorizam novo pedido de Segurança, sem oponibilidade da coisa julgada.
3.A coisa julgada, em Mandado de Segurança, não justifica a cobrança de obrigação tributária inconstitucional.
4.Recurso provido.
Em síntese conclusiva: mesmo havendo decisão passada em julgado contra o impetrante, em questões de trato sucessivo, quando alteradas as circunstâncias fáticas ou jurídicas, apresenta-se viável a renovação da impetração ou a busca do direito em ação ordinária, sem oponibilidade da coisa julgada.
Notas
1 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª. ed., RT, 2004, p. 511.
2 JANCZESKI, Célio Armando. Processo Tributário – Administrativo e Judicial na Teoria e na Prática. OAB/SC Editora, 2004, p. 318/319.
3 STJ, Recurso Especial n. 381.911/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª. T, un., DJ 19/12/2003.