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A coisa julgada e a impossibilidade de cobrança de obrigação tributária inconstitucional

04/10/2004 às 00:00
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Não é desconhecida a íntima ligação entre o Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da CF) e o instituto da coisa julgada. É que como elemento formador do Estado Democrático de Direito, carrega consigo o Princípio da Segurança Jurídica, que garante as relações sociais e jurídicas, impedindo a relativização da coisa julgada e a instalação de uma ditadura, de esquerda ou de direita, em que aspectos subjetivos tivessem o condão de obstruir a prevalência da decisão judicial passada em julgado.

A doutrina e a jurisprudência dominante, defende que havendo um choque entre a justiça da sentença e a segurança das relações jurídicas e sociais, o sistema constitucional brasileiro resolve o choque optando pelo valor segurança (coisa julgada), que deve prevalecer em relação à justiça, que será sacrificada [1]. Prevaleceria a sentença injusta em detrimento da segurança jurídica. O mesmo raciocínio é aplicável, em relação a sentença ilegal ou inconstitucional, que só poderia ser relativizada nos casos expressamente taxados pela lei, dispostos numerus clausus: 1) – ação rescisória (art. 485, CPC); 2) – embargos à execução de título judicial (art. 741, CPC); 3) – coisa julgada segundo o resultado da lide (art.18, LAP e art. 103, CDC) e 4) – revisão criminal (art. 622, CPP).

Trazida a discussão para o mandado de segurança, algumas nuances próprias implementam distinções a respeito da coisa julgada. Sobre o assunto já escrevi: "A Súmula 304, do STF, consigna que decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso da ação própria. Hodiernamente, com a evolução da jurisprudência, a interpretação da Súmula, inclusive pelo próprio STF, tem entendido que se o mandado de segurança tiver denegada a segurança, com o exame do mérito, haverá coisa julgada material, impedindo ao impetrante a renovação do pedido, mesmo em outra ação. Haverá possibilidade da ação rescisória, desde que ocorrendo os pressupostos previstos no art. 485 e seguintes do Código de Processo Civil. Se a decisão não enfrentar o mérito, ou seja, com a extinção do feito sem o julgamento do mérito, haverá apenas coisa julgada formal, autorizando a renovação do pedido, em outro mandado de segurança ou em outra ação. Estipula o art. 16, da Lei 1.533/51, que o pedido do mandado de segurança poderá ser renovado se a decisão denegatória não lhe houver apreciado o mérito". [2]

Por outro lado, a aplicação da Súmula 304 com o art. 15, da lei 1.533/51 ("a decisão do mandado de segurança não impedirá que o requerente, por ação própria, pleiteie os seus direitos e os respectivos efeitos patrimoniais"), tem levado a conclusão que nas hipóteses em que a decisão conclui inexistir direito ao impetrante, apreciando o mérito da impetração, a pretensão não poderia ser renovada, nem via novo mandado de segurança, nem via ação ordinária. A renovação da impetração ou a busca do direito via ação ordinária, a que alude a Súmula, estaria reservada apenas aos casos em que não apreciado o mérito da causa.

A jurisprudência, sem discrepar da conclusão central, tem relativizado a coisa julgada, nas hipóteses em que se apresentaram mudanças das circunstâncias, impedindo a cobrança de obrigação tributária inconstitucional. Em julgamento em que a empresa tinha contra si decisão com trânsito em julgado, reconhecendo a constitucionalidade de tributo tido hodiernamente como inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu possível a impetração de novo mandado de segurança, registrando, no voto do Ministro Humberto Gomes de Barros: "O Mandado de Segurança destina-se a defender direito líquido e certo. A decisão que dele se origina configura uma Ordem auto-executável do Estado-Juiz para que cesse a violência praticada pelo próprio Estado. Se essa Ordem passa em julgado, veta-se o novo exame da lide sob as mesmas circunstâncias. No entanto, com a mudança das circunstâncias pode ocorrer violação a direito líquido e certo. Daí ser lícito pedido de nova Ordem de Segurança, a qual não se pode opor a coisa julgada." [3] Ressalvando a impossibilidade da coisa julgada, em mandado de segurança, ensejar o cumprimento de obrigação tributária reconhecidamente inconstitucional, o Eminente Ministro ainda decidiu que "no mandado de segurança, em questões de trato sucessivo, a coisa julgada traz consigo a cláusula rebus sic stantibus. Mudanças em circunstâncias fáticas ou jurídicas autorizam novo pedido de Segurança, sem oponibilidade da coisa julgada".

O Recurso Especial n. 381.911/PR, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, porta a seguinte ementa:

PROCESSUAL CIVIL – MANDADO DE SEGURANÇA – COISA JULGADA SOBRE QUESTÃO SABIDAMENTE INCONSTITUCIONAL – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA SOBRE REMUNERAÇÃO DE ADMINISTRADORES, AVULSOS E AUTÔNOMOS – RELAÇÃO TRIBUTÁRIA DE TRATO SUCESSIVO – INOPONIBILIDADE.

1.O Mandado de Segurança destina-se a defender direito líquido e certo. Ele se traduz em Ordem auto-executável do Estado-Juiz para que cesse a violência praticada pelo próprio Estado. Se essa Ordem passa em julgado, veta-se o novo exame da lide sob as mesmas circunstâncias.

2.Em questões de trato sucessivo, a coisa julgada traz consigo a cláusula rebus sic stantibus. Mudanças em circunstâncias fáticas ou jurídicas autorizam novo pedido de Segurança, sem oponibilidade da coisa julgada.

3.A coisa julgada, em Mandado de Segurança, não justifica a cobrança de obrigação tributária inconstitucional.

4.Recurso provido.

Em síntese conclusiva: mesmo havendo decisão passada em julgado contra o impetrante, em questões de trato sucessivo, quando alteradas as circunstâncias fáticas ou jurídicas, apresenta-se viável a renovação da impetração ou a busca do direito em ação ordinária, sem oponibilidade da coisa julgada.

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Notas

1 NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª. ed., RT, 2004, p. 511.

2 JANCZESKI, Célio Armando. Processo Tributário – Administrativo e Judicial na Teoria e na Prática. OAB/SC Editora, 2004, p. 318/319.

3 STJ, Recurso Especial n. 381.911/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, 1ª. T, un., DJ 19/12/2003.

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Sobre o autor
Célio Armando Janczeski

advogado e consultor empresarial em São Lourenço do Oeste (SC), professor de Direito Tributário da Faculdade Mater Dei, professor convidado permanente da Escola Superior da Advocacia da OAB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JANCZESKI, Célio Armando. A coisa julgada e a impossibilidade de cobrança de obrigação tributária inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 454, 4 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5775. Acesso em: 10 mai. 2024.

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