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O sigilo da correspondência e a fiscalização tributária

Agenda 04/10/2004 às 00:00

Sumário:1. Introdução. 2. Conteúdo e extensão da proteção constitucional ao sigilo da correspondência. 3. Distinção entre Correspondência e Mercadoria. 4. A entrega postal de mercadorias como simples prestação de serviço de transporte. 5. Possibilidade legal de ação do fisco sobre mercadorias postadas.


1. Introdução.

A proteção constitucional ao sigilo da correspondência apresenta-se como um mecanismo essencial de proteção da intimidade e da liberdade de expressão no Estado Democrático de Direito. Tal garantia constitucional não é entretanto absoluta ou ilimitada, devendo ser entendida em harmonia com as normas reguladoras do funcionamento do Estado.

No presente trabalho é tratada a aparente contradição entre o sigilo postal que, entendido de uma maneira radical, impediria a abertura de qualquer "pacote" enviado pelos correios e o poder-dever da fiscalização do trânsito de mercadorias, exercido sobretudo pelos Estados-membros e pelo Distrito Federal em função do ICMS.

Com a opção pelo funcionamento em moldes empresariais que os Correios fizeram nos últimos anos, tem aumentado sua participação na entrega de encomendas, e, com isso, vêm se multiplicando os conflitos entre os seus agentes e a fiscalização tributária de diversos Estados. Costumam os correios interpretar a legislação específica como dando ao sigilo postal uma extensão tal que exclui todos os seus serviços da fiscalização tributária.

É exatamente tal argumentação, bem como os reais limites do sigilo que se pretende examinar aqui.


2. Conteúdo e extensão da proteção constitucional ao sigilo da correspondência.

A argumentação usada pelos Correios para resistir à fiscalização tem como base a norma constitucional que protege o sigilo da correspondência. O direito do Estado de fiscalizar as mercadorias em trânsito se harmoniza com esta e as demais garantias constitucionais, residindo a divergência na tentativa equivocada de aplicar uma norma concebida para proteger o sigilo das comunicações entre pessoas da ingerência de terceiros, a simples operações de compra e venda de mercadorias.

O sigilo da correspondência visa, em última análise, proteger a intimidade das pessoas, bem jurídico tutelado pelo ordenamento, de que faz parte a liberdade de se comunicar sem que seja revelado a terceiros o conteúdo das mensagens.

É nesse sentido que dispõe a Constituição Federal:

Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei - estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal; (...).

O sigilo da correspondência, pode-se notar, objetiva proteger o direito das pessoas de se comunicar livremente, sem que possa ser exposto à curiosidade pública ou de estranhos a intimidade das mensagens transmitidas.

Analisando a proteção constitucional ao sigilo de correspondência, José Afonso da Silva vislumbra-lhe dupla face: por um lado tal proteção aparece como manifestação do direito à intimidade, por outro, significa também uma garantia da liberdade de expressão:

O sigilo da correspondência alberga também o direito de expressão, o direito de comunicação, que é, outrossim, forma da liberdade de expressão do pensamento, como examinaremos a seu tempo. Mas, nele, é que se encontra a proteção dos segredos pessoais, que se dizem apenas aos correspondentes. Aí é que, não raro, as pessoas expandem suas confissões íntimas na confiança de que se deu pura confidência. [1]

Não se encontra, pois, albergada pelo sigilo de correspondência a simples remessa de mercadoria, mesmo por via postal, pois não expressa pensamentos ou mensagens que possam estar sob a alegada proteção constitucional. Criado para proteger a comunicação entre pessoas, o sigilo de correspondência não alcança o simples envio de bens materiais, cujo conteúdo nada traduz da intimidade do remetente ou do destinatário.

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3. Distinção entre Correspondência e Mercadoria.

A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, presta diferentes tipos de serviço, genericamente tratados na lei que a disciplina sob o nome de serviço postal. Para fundamentar o impedimento à fiscalização tributária, busca-se, às vezes, identificar, ou, mais exatamente, confundir os conceitos de correspondência e de serviço postal, com o objetivo de agasalhar sob o manto do sigilo toda e qualquer operação que se pratique por via postal.

Tal tentativa não encontra justificativa constitucional ou legal diante da extensão, já demonstrada, do sigilo da correspondência. Este, como dito, aplica-se apenas às mensagens, não ao transporte de mercadorias.

A própria lei que regula atualmente os serviços postais, Lei nº 6.538/78, define claramente o serviço postal, como uma ampla gama de serviços prestados pelos Correios, reservando, contudo, a noção de correspondência às comunicações interpessoais. Estabelece a referida lei:

Art. 7º. Constitui serviço postal o recebimento, expedição, transporte e entrega de objetos de correspondência, valores e encomendas, conforme definido no regulamento.

§ 1º - São objetos de correspondência:

a) carta;

b) cartão-postal;

c) impresso;

d) cecograma;

e) pequena - encomenda.

§ 2º - Constitui serviço postal relativo a valores:

a) remessa de dinheiro através de carta com valor declarado;

b) remessa de ordem de pagamento por meio de vale-postal;

c) recebimento de tributos, prestações, contribuições e obrigações pagáveis à vista, por via postal.

§ 3º - Constitui serviço postal relativo a encomendas a remessa e entrega de objetos, com ou sem valor mercantil, por via postal.

Já aí fica clara a distinção entre correspondência e encomenda, evidenciando que estas, embora façam parte do serviço postal, não se incluem no conceito de correspondência.

É o texto da mesma lei, no artigo dedicado às definições, que nos fornece os conceitos de correspondência e encomenda:

Art. 47. Para os efeitos desta lei, são adotadas as seguintes definições:

Correspondência - toda comunicação de pessoa a pessoa, por meio de carta, através da via postal, ou por telegrama.

Encomenda - objeto com ou sem valor mercantil, para encaminhamento por via postal.

É mais que evidente tratar-se de coisas diversas. A distinção entre objeto com valor mercantil (mercadoria) e comunicação, necessita apenas do uso do senso comum. O sigilo da correspondência, como fica claro, abrange apenas o que for classificado como correspondência.

Mercadoria pode ser definida como todo bem móvel passível de circulação econômica, quando da operação tributável.


4. A entrega postal de mercadorias como simples prestação de serviço de transporte.

Ao contrário do serviço de entrega de correspondência, a entrega de encomendas pelos Correios não se inclui no monopólio estatal estabelecido pelo art. 9º da citada lei 6.538/78:

Art. 9º - São exploradas pela União, em regime de monopólio, as seguintes atividades postais:

I - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de carta e cartão-postal;

II - recebimento, transporte e entrega, no território nacional, e a expedição, para o exterior, de correspondência agrupada:

III - fabricação, emissão de selos e de outras fórmulas de franqueamento postal.

§ 1º - Dependem de prévia e expressa autorização da empresa exploradora do serviço postal;

a) venda de selos e outras fórmulas de franqueamento postal;

b) fabricação, importação e utilização de máquinas de franquear correspondência, bem como de matrizes para estampagem de selo ou carimbo postal.

§ 2º - Não se incluem no regime de monopólio:

a) transporte de carta ou cartão-postal, efetuado entre dependências da mesma pessoa jurídica, em negócios de sua economia, por meios próprios, sem intermediação comercial;

b) transporte e entrega de carta e cartão-postal; executados eventualmente e sem fins lucrativos, na forma definida em regulamento.

Desse modo, trata-se de mero serviço de transporte de mercadorias, como tantos outros, devendo, nos termos do art. 173, § 2º e 4º da Constituição Federal submeter-se ao mesmo tratamento tributário dos seus concorrentes privados:

§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

§ 4º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

Ora, o fisco, por seus poderes já mencionados, pode livremente examinar as mercadorias transportadas por qualquer serviço privado, autuando e exigindo o tributo devido, quando for o caso.

A extensão inconstitucional e ilegal do sigilo da correspondência ao serviço postal de transporte de mercadorias, faria com que qualquer um pudesse remeter mercadorias ao comprador através dos correios, sem o pagamento de tributos, representando uma vantagem indevida e que não poderia ser oferecida pela concorrência.

Assim, além do evidente incentivo à sonegação, estaria caracterizado o privilégio fiscal, em evidente violação aos dispositivos constitucionais mencionados. Quem quisesse enviar uma mercadoria, sem que fossem pagos os tributos devidos, especialmente o ICMS, poderia se valer do serviço postal, sem o risco de ser fiscalizado e autuado.


5. Possibilidade legal de ação do fisco sobre mercadorias postadas.

As ações do fisco buscando verificar a regularidade tributária das mercadorias enviadas através dos correios não se revestem de ilegalidade, desde que obedecidos os limites que serão expostos adiante.

A abertura de embalagens das mercadorias se impõe, às vezes, como dever legal dos agentes fazendários, pois tais objetos, como se viu, não se encontram sob a proteção do sigilo da correspondência. Assim, não podem os Correios impedir a fiscalização, como igualmente não podem os fiscais deixar de cumprir seu poder-dever de agir segundo suas prerrogativas.

É indiscutível o direito dos agentes públicos encarregados da fiscalização de realizar diligências e inclusive apreender documentos no interesse de evitar a sonegação de tributos. Neste sentido, a norma do art. 195 do CTN:

Para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos fiscais dos comerciantes, industriais ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los.

No atual ordenamento, este mandamento foi elevado ao nível constitucional pela norma do art. 145 §1º da Constituição:

Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Sobre o citado dispositivo do CTN, comenta o professor Paulo de Barros Carvalho:

O comando não encerra conteúdo de autoritarismo: é uma imposição inafastável do exercício do dever-poder que a lei atribui aos agentes da Administração Tributária, e se reflete num desdobramento da supremacia do interesse público ao particular. Não pode, portanto, sofrer embaraços ou enfrentar obstáculos que não os próprios limites cravados na constituição, no catálogo dos direitos e garantias individuais. [2]

Por não estar o envio de mercadorias através dos serviços postais abrangido pelo sigilo da correspondência, fica evidente a possibilidade de ação fiscal dentro dos limites da lei.

A própria lei 6.580/78, em seu art. 10, II, reconhece a possibilidade de que sejam abertas até mesmo cartas, sem quebra do sigilo da correspondência, quando houver indícios de sonegação:

Art. 10º - Não constitui violação de sigilo da correspondência postal a abertura de carta:

II - que apresente indícios de conter objeto sujeito a pagamento de tributos;

Alegar inconstitucionalidade deste dispositivo, ou sua não recepção pela atual ordem constitucional, carece de fundamento jurídico, pois, tal dispositivo nunca foi declarado inconstitucional, além do que, também a Constituição anterior protegia o sigilo da correspondência.

Desse modo, se até mesmo a carta, objeto evidente da proteção constitucional ao sigilo, pode ser examinada, quando haja indícios de desvirtuamento do seu uso, isto é, de utilização para remessa indevida de bens sujeitos à tributação, com muito mais razão, as embalagens de mercadorias, remetidas sem a proteção do sigilo, poderão ser abertas para o exame da sua regularidade tributária.

Tal direito da Administração Pública encontra seus limites, primeiramente, no próprio instituto constitucional do sigilo de correspondência. Assim, como anotado, só excepcionalmente se poderá abrir objeto protegido pelo sigilo. Mesmo nesse caso, apenas para a verificação da existência ou não de remessa ilegal de mercadoria, não sendo autorizado o exame, muito menos a divulgação da mensagem interceptada.

Por outro lado, também limita o poder-dever de fiscalizar a própria finalidade do ato de fiscalização. Estando a fiscalização, em especial a do ICMS, presa ao objetivo de verificar a existência de operações de circulação de mercadorias sem o devido acobertamento fiscal, sua ação, tanto no caso das encomendas, quanto na eventual hipótese de suspeitas sobre a correspondência, deverá se limitar à apuração da ocorrência do ilícito fiscal. Desse modo é vedada a utilização do aludido poder para qualquer atividade desvinculada do seu fim legalmente estabelecido.


Notas

1Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª Ed.; S. Paulo, Revista dos Tribunais, 1989; p. 185.

2Curso de direito tributário, 5ª edição, S. Paulo, Saraiva, 1991.

Sobre o autor
Bruno Rodrigues de Faria

Procurador do Estado de Minas Gerais e Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARIA, Bruno Rodrigues. O sigilo da correspondência e a fiscalização tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 454, 4 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5776. Acesso em: 22 dez. 2024.

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