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A Declaração Universal dos Direitos do Homem frente à problemática das pessoas em situação de rua

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Agenda 17/05/2017 às 18:23

Reflexões sobre a dicotomia entre as garantias preconizadas pela Declaração dos Direitos do Homem e sua (ainda) ineficácia frente à situação fática das pessoas em situações de penúria pelas ruas brasileiras. O que fazer? Saiba um pouco mais sobre isso.

RESUMO:O presente artigo objetiva analisar a real aplicação deste diploma internacional, fundamento dos tratados de Direitos Humanos. Levando-se em consideração que o Brasil ratificou, e, portanto, se vinculou ao Pacto Internacional dos Direitos civis e Políticos e ao Pacto Internacional Sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, corolários da Declaração Universal dos Direitos do Homem, iremos perscrutar se, como reza tais cartilhas, todo ser humano nasce livre e igual em dignidade e direitos e lhes é garantido o acesso igualitário à Justiça e à participação política, ou se os ditos “moradores de rua” são alijados de tais garantias básicas, implementos da cidadania.

Em um primeiro momento, trarei uma abordagem doutrinária dos diplomas internacionais que tratam dos direitos e garantias da pessoa humana, com enfoque nos ratificados pelo Brasil. Em seguida buscarei através da pesquisa de campo, colhendo a opinião de profissionais da área da assistência social e outros profissionais que lidam diretamente com o público alvo da pesquisa, bem como, a opinião das próprias pessoas em situação de rua, averiguar se as garantias previstas no Direito, nacional e internacional alcançam essa gente, ou se são excluídos da garantia basilar, exposta no artigo 1º da Declaração Internacional dos Direitos do Homem.

Palavras-chave: Direitos Humanos, pessoas em situação de rua, igualdade social.


1 – INTRODUÇÃO

Ao longo dos séculos, convivemos com a triste realidade das pessoas em situação de rua. Desde que o homem resolveu se reunir e assim criar a sociedade, nesse pacto social, se aglomerando em locais específicos e detendo bens móveis e imóveis, há também aqueles que por inúmeras razões acabam por não lograr, sequer, o mínimo necessário para viver com dignidade nessa organização social não inclusiva. Com o aprimoramento das relações sociais e os avanços das garantias de Direito, deveríamos viver em um mundo onde seres humanos não mais vivessem em condições subumanas, segregados das oportunidades e vivendo à margem da sociedade. Contudo, basta passear pelos grandes centros urbanos brasileiros, para constatar uma verdade que salta aos olhos, os grandes centros urbanos estão abarrotados de pessoas vivendo em situação subumana.

Diante dessa problemática, levamos em consideração a vinculação do Estado brasileiro ao Direito Internacional, ao passo que a própria Constituição Federal reconhece no parágrafo 2º do artigo 5º a natureza constitucional dos Pactos e Tratados Internacionais dos quais o Brasil seja signatário, bem como os princípios sustentados expressamente na Carta Magna, dentre eles o da dignidade da pessoa humana e os desse decorrentes, como as garantias de moradia, assistência social, saúde, etc. O presente trabalho buscará entender o porquê dessas pessoas viverem nessas condições, à margem das garantias constitucionalmente garantidas; buscando entender se tal fato se deve à omissão do poder público, a questões de dependência química, mas aí também entra o descaso do poder público, ou se a outros fatores pesquisados e de que forma poderia agir o Estado para assegurar as garantias necessárias a essa gente e ainda quais garantias estão sendo ignoradas nestes casos.

Os dados serão colhidos através da entrevista de 10 (dez) profissionais que lidam na área da assistência social, e trabalham com pessoas em situação de rua na cidade de João Pessoa, 10 (dez) colaboradores de ONGs e/ou grupos religiosos ou simplesmente filantrópicos, que lidam com o público alvo da pesquisa, 10 (dez) populares sem uma vivência direta com pessoas em situação de rua e, por fim, 10 (dez) pessoas em situação de rua.

A importância de ouvir quem conhece tal situação através de sua vivência é clara e nos ajudará a colher o conhecimento necessário, a fim de entendermos a real situação dos “seres invisíveis”, que vivem aparentemente à margem de qualquer amparo estatal, pelos quais passamos diariamente sem nos apercebermos e, assim, podermos entender o que fazer para corrigir possíveis injustiças sociais perpetradas em desfavor dos cidadãos, homens, mulheres e crianças, que vivem pelas ruas de nossas cidades.

O artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem traz em sua redação, ipis literis, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” O texto é lindo, mas, mais linda seria sua aplicação e vivência. Na primeira parte vemos que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos; buscaremos verificar se a pessoa que vive em situação de rua, vem sendo agraciada pela luz deste texto, ou se a escuridão da indiferença social e estatal a tem alijado de tão bela garantia.

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Este trabalho, portanto, almeja perscrutar as entranhas deste submundo, que são as ruas de nossas grandes cidades, através da análise empírica, saindo da zona de conforto em que nos colocamos muitas vezes, negando ou ignorando problemas, de modo, que, a pesquisa nos possibilite, enfim, ponderar sobre ser a pessoa em condição de rua alcançada ou não pelas garantias constitucionais asseguradas a todos, pelo Estado democrático de direito.


2 - BREVE INTRODUÇÃO HISTÓRICA

Até bem pouco tempo atrás, a prática da mendicância era criminalizada pelo Decreto Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) em seu artigo 60, que previa pena de prisão simples para a então contravenção penal. Para ser mais preciso, tal tipo penal, só veio a ser revogado em 2009 pela Lei 11.983/2009.

Mas, o que é mendicância? Termo desaconselhado por ser carregado de pré-conceitos e estigmas, substituído por expressões como: pessoas em situação de rua ou sem teto. Mendigo vem do latim, mendum, defeito físico, deve-se a expressão a deficientes físicos que, na antiguidade, não podendo trabalhar e não amparados por qualquer tipo de seguridade social, viam-se obrigados a pedir para poder sobreviver; depois se generalizou o termo, para definir todo aquele que pede esmolas para sobreviver.

Cabe ressaltar que nem toda pessoa em situação de rua, “mendiga” para sobreviver. Vários são os que se submetem a subempregos, como: guardar carros, catar recicláveis, lavar para-brisas em semáforos ou apresentar números artísticos. No entanto, não conseguem se livrar do estigma “mendigo”.


3 – O NEOCONSTITUCIONALISMO E OS DIPLOMAS RATIFICADOS PELO BRASIL, SOBRE DIREITOS HUMANOS

Tratados, nas palavras da professora Flávia Piovesan, são: “acordos internacionais juridicamente obrigatórios e vinculantes”. (PIOVESAN:2016, p. 113).

Uma vez definido seu conceito, vejamos agora sua natureza. Ratificado por um país, o tratado internacional passa a vincular o Estado Nacional perante o Direito interno e o Direito internacional (Pacta Sunt Servanda). Estabelece a Convenção de Viena que, “ todo tratado em vigor é obrigatório entre as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”. Em outras palavras, podemos dizer que o Brasil ao ratificar um tratado, assim como qualquer outro País, obriga-se a cumprir o que foi nele estabelecido. A própria CF/88, em seu artigo 5º, § 2º, garante o caráter constitucional aos tratados internacionais ratificados pelo brasil.

Dito isto, passemos a analisar, brevemente, os tratados ratificados pelo Brasil:

Ratificado pelo Brasil, promulgado através do Decreto 592/1992, o Pacto internacional Sobre Direitos Civis e Políticos traz em seu bojo garantias como:

Artigo 26

Todas as pessoa são iguais perante a Lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da Lei. A esse respeito, a Lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz, contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 

Na mesma linha garantista, promulgado no Brasil através do Decreto 591/1992, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais:

Artigo 10

[...]

3. Devem-se adotar medidas especiais de proteção e de assistência de todas as crianças e adolescentes, sem distinção alguma por motivo de filiação ou qualquer outra condição. Devem-se proteger crianças e adolescentes contra exploração econômica e social. O emprego de crianças e adolescentes em trabalhos que lhes sejam nocivos à moral e a saúde ou que lhes faça correr perigo de vida, ou ainda que lhes venham a prejudicar o desenvolvimento normal, será punido por lei.

  Destarte, encontram-se nos aludidos institutos, inseridos no ordenamento pátrio através dos Decretos supramencionados, a garantia da igualdade entre as pessoas. Abraçando a corrente neoconstitucionalista, o Brasil acolhe no seio de sua Carta Magna tais preceitos garantistas com a devida força normativa; no entanto, sabemos que não basta a previsão normativa para fazer valer certas diretrizes constitucionais, é necessário a implementação de políticas públicas e também que a sociedade como um todo, acompanhe os avanços jurídicos com o correspondente avanço cultural.       

  Sabemos que sem um contexto social, a lei é natimorta. Nas palavras de Bobbio, “a inversão característica na formação do Estado moderno, ocorrida na relação entre Estado e cidadãos: Passou-se das prioridades dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos do cidadão, emergindo um modo diferente de encarar a relação política. (Bobbio: 1990, p. 9)

  Para Bobbio, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, tem como consequência a afirmação dos direitos individuais, que “são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez, nem de uma vez por todas”. (Bobbio: 1990, p. 9)                                                             

            No entanto, podemos entender o Direito, com seus institutos e normas, também como um indutor de condutas, ou seja, como um instrumento de mudanças. A lei pode apenas representar uma realidade social, um contexto cultural, ou pode também representar verdadeiros avanços, na medida em que cria paradigmas a serem seguidos, levando, no mínimo, a uma ponderação, a uma reflexão social, sobre determinadas condutas ou realidades sociais.

            Nesse sentido, podemos trazer à baila o voto do Ministro da Suprema Corte, Luís Roberto Barroso, que na relatoria do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 845779, sobre o direito de transexuais serem tratados socialmente de forma condizente com sua identidade de gênero, demonstra como o Direito pode ser usado para induzir mudanças necessárias em nossa estrutura social. Vejamos trechos do Douto voto de Sua Excelência:

[...]os transexuais são uma das minorias mais marginalizadas e estigmatizadas da sociedade, o Brasil é o líder mundial de violência contra transgêneros. [...]

“O remédio contra a discriminação das minorias em geral, particularmente dos transgêneros, envolve uma transformação cultural capaz de criar um mundo aberto à diferença, onde a assimilação aos padrões culturais dominantes ou majoritários não seja o preço a ser pago para ser respeitado. [...] A óptica da igualdade como reconhecimento visa justamente a combater práticas culturais enraizadas que inferiorizam e estigmatizam grupos sociais e, desse modo, diminuem ou negam às pessoas que os integram o mesmo valor intrínseco reconhecido a outras pessoas”

Barroso apresentou três fundamentos jurídicos que justificam o reconhecimento do direito fundamental dos transexuais a serem tratados socialmente de acordo com a sua identidade de gênero: dignidade como valor intrínseco de todo indivíduo; dignidade como autonomia de todo individuo; dever constitucional do Estado democrático de proteger as minorias.

Decisões como essas, do Ministro Barroso, demonstram que o Direito pode ser utilizado como baliza social, que visa não só proibir condutas ou obrigá-las, mas, antes, objetivam induzir conceitos, através da prática do comportamento, introduzindo assim, paulatinamente, mudanças estruturais em nossa sociedade, em busca da paz social e do progresso humano.

Ainda na visão do professor Barroso, “vida digna, liberdade para todos, um ambiente de justiça, pluralismo e diversidade, é ainda um projeto para o milênio” (BARROSO: 2009, p. 41).


4 – A DIGNIDADE HUMANA, SEUS IMPLEMENTOS E DIFICULDADES PRÁTICAS

O princípio da Dignidade da Pessoa Humana, positivado na CF/88 em seu artigo 1º, III; tem um conceito muito mais social que jurídico. O que vem a ser dignidade humana? Dignidade, do latim, dignus, significa valioso. Ou seja, dignificar alguém é dar-lhe valor, atribuir-lhe qualidades que a valorizem. A pessoa humana é valiosa, é cara, daí vem a necessidade de promover os meios através dos quais se possa garantir a valorização do homem, ou simplesmente, reconhecendo esse valor, garantir os meios para que eles sejam desenvolvidos e gozados por todas as pessoas.

Na prática, a busca por levar dignidade às pessoas, passa por desafios como moradia, saneamento básico, assistência básica a saúde, assistência social etc. Para países em desenvolvimento como o nosso e com o histórico de desigualdade social, atrelado à nossa raiz cultural, não é simples levar à prática o princípio constitucional. Encontram-se barreiras na própria estrutura social, reticente com a promoção social, que muitos confundem com assistencialismo ou populismo político.

O Estado brasileiro não faz favor ao promover uma vida digna aos seus cidadãos, ele apenas cumpre com o seu papel constitucional, com a sua função social, pelo que se obriga perante o Direito Internacional e Nacional. O estado de bem-estar social, realidade em países europeus, com índices de desenvolvimento social elevadíssimos, como Dinamarca, Suíça, Suécia, dentre outros, deveria ser querido com anseio por todos nós, no entanto, ele é combatido por boa parte. O Estado deve assumir esse papel de promotor do bem estar social, por uma razão muito simples, não havemos de esperar que a inciativa privada, com seus interesses econômicos o faça. Confundir o estado de bem-estar social com comunismo é um erro histórico, alimentado por forças conservadoras que se beneficiam do status quo de injustiça social reinante no Brasil. Dessa forma, chamemos o feito a ordem, sociedade e poder público devem caminhar unidos a caminho do desenvolvimento social e do progresso humano.

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Pouco importa às pessoas saber que têm os direitos reconhecidos em princípio, se o exercício deles lhes é negado na prática. (Francisco Sá Carneiro, Assembleia Nacional, 1971)

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