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O crime de ameaça e o tratamento complacente da lei

Agenda 12/10/2004 às 00:00

O artigo 147 do Código Penal Brasileiro define o crime em questão como a conduta de ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave, impondo a mesma a pena de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.

Nos dias atuais, cujos índices de violência e banalização da vida se mostram crescentes, o tratamento legal imposto a este tipo de conduta tem se revelado muito brando e complacente, impondo, a meu sentir, a necessidade da instituição de uma reprimenda mais severa, apta a refrear este tipo de delito.

Na verdade, trata-se de comportamento que atinge a paz de espírito da vítima e cerceia sua liberdade, na medida em que passa a não mais se conduzir conforme a sua livre vontade, efeitos maléficos estes que se estendem aos seus familiares e àqueles com os quais convive, os quais também passam a ser vítimas do ato criminoso, ampliando de forma incomensurável a amplitude dos danos que acarreta, tornando, assim, de fácil constatação o seu poder ofensivo.

A priori, conclui-se que a natureza subsidiária do delito em questão, em que a conduta, por vezes, é absorvida pelo crime mais grave, teria tornado dispensável, aos olhos do legislador, a adoção de uma repressão mais rigorosa a este tipo de prática.

No entanto, a mudança ocorrida no contexto social, notadamente no tocante ao aumento da criminalidade - denotada pelo incremento do crime organizado, da violência urbana, de uma inacreditável cultura de banalização da vida – demonstra, claramente, que o tratamento legal atualmente em vigor se mostra inócuo e ineficaz à satisfação dos anseios da sociedade, a qual, por óbvio, não considera razoável que o autor da ameaça de morte que se efetivou não tenha merecido, no momento oportuno, a reprimenda legal devida e rigorosa o suficiente a esmorecer seu intento criminoso.

De fato, entendo que o tratamento legal ora em vigor se mostra risível ao criminoso de periculosidade reconhecida, já portador de graves antecedentes criminais, o qual, certamente, não se intimidará com a possibilidade de ser processado e eventualmente condenado a uma pena máxima de 06 (seis) meses de detenção.

A bem da verdade, a experiência forense ensina o aplicador a distinguir facilmente a situação de fato em que a reprimenda prevista no artigo 147 se mostra suficiente e adequada daquela em que a mesma se apresenta totalmente ineficaz à repressão do delito.

Na primeira hipótese, estão as proferidas por ocasião de mero acirramento de ânimos, por pessoas destituídas de índole criminosa, no calor da discussão. Facilmente reconhecíveis já que praticadas por pessoas sem antecedentes criminais e onde se constata, de logo, a ocasionalidade da prática.

De outra sorte, verifica-se igualmente o delito que é cometido pelo agressor doméstico contumaz ou pelo criminoso portador de graves antecedentes criminais, cuja ameaça perpetrada se mostra idônea, não se mostrando a pena cominada hábil a reprimir a intenção delituosa previamente anunciada.

De fato, a pena imposta ao delito em questão, de 01 (um) a 06 (seis) meses de detenção, submete o delito em questão à competência jurisdicional dos Juizados Especiais Criminais, mediante ação penal pública condicionada à representação, a qual poderá ser ofertada no prazo de até 06 (seis) meses a partir da data em que vier a saber quem é o autor do crime, cabendo salientar, ainda, que nesse aspecto, tem-se adotado o posicionamento pela contagem do prazo a partir da realização da audiência preliminar, de forma a evitar prejuízo ao direito da vítima, uma vez que a lei impõe este momento como o oportuno para o oferecimento da representação.

A complacência da lei com o autor deste tipo de infração, por vezes, coloca o magistrado, bem como o promotor de justiça atuantes no feito, em situação de absoluta e insuportável impotência em face da situação de perigo iminente e real em que se encontra a vítima, uma vez que, tratando-se de delito sob a competência dos Juizados Especiais Criminais, descabida se mostra, em regra geral, a decretação de prisão temporária ou preventiva, como também não existe amparo legal para a adoção de medidas de proteção às vítimas, de forma a possibilitar uma maior resguardo da incolumidade física destas, as quais ficam inteiramente à mercê da índole criminosa do acusado.

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E mesmo quando este se encontra custodiado, em razão do cometimento de outros crimes, ainda não há razão para que a vítima respire aliviada, eis que, é publica e notória a extensão da rede criminosa que atende prontamente ao comando dos líderes encarcerados.

A sensação de impotência do aplicador novamente se apresenta, com a mesma intensidade, quando o acusado compartilha do convívio diário da vítima ou tem estreito acesso à esta, como no caso do agressor doméstico.

Geralmente dotado de valores deturpados no que se refere á afeição e sentimentos de afeto, bem como imbuído de extremo conceito machista que lhe outorga, aos seus olhos, a condição de proprietário da vítima – geralmente esposa ou ex-esposa – acredita, piamente, ser detentor do poder de vida e morte sobre aquela, não admitindo qualquer manifestação que seja de vontade própria ou independência, de logo reprimida pela ameaça de morte, a qual, infelizmente, por vezes se concretiza, sem a adoção de quaisquer providências cautelares necessárias, por inexistência de amparo legal que as autorizassem.

Que o tratamento legal em vigor se mostra ineficaz e imprestável à repressão do delito é evidente, como também a necessidade de uma inovação legal apta a imprimir um tratamento mais rigoroso a todo aquele que o comete, incentivado pela brandura da reprimenda imposta.

Mas, em vista das circunstâncias acima aludidas, qual seria a solução a ser adotada para minorar esse sentimento de impunidade e impotência reinante no tocante ao delito em questão?

A criação de uma espécie de situação agravante que majorasse a pena imposta, abrangidas as situações de fato acima aludidas, não se afigura como a solução esperada eis que estas circunstâncias majorantes da pena não podem eleva-la além do máximo penal abstrato, segundo leciona Damásio de Jesus. (Código Penal Anotado, Ed. SARAIVA, pág. 164)

Igualmente, a criação de um delito de ameaça qualificado, com a conseqüente majoração da pena, nas hipóteses mencionadas - sem prejuízo de outras que o legislador entendesse oportunas - acarretando a conseqüente exclusão da competência dos Juizados Especiais Criminais, para processo e julgamento do delito, nestes casos, poderia ser uma das soluções adotadas pelo legislador, eis que o juiz condutor do feito na Justiça Comum teria ao seu dispor a possibilidade de adotar as medidas cautelares possíveis e outras que poderiam ser adotadas pela lei de forma a tornar eficaz a proteção estatal à vítima.

A pretensão aqui defendida surge da inafastável sensação de impotência experimentadas diuturnamente por juízes e promotores de justiça, impossibilitados, pela carência de amparo legal, de adotar medidas protetivas de proteção à vitima deste tipo de crime, sendo ainda cobrados e, pior, responsabilizados, pela vulnerabilidade a que ficou exposta àquela, tornando-se alvo fácil do acusado.

O que ora se defende é a implementação de medidas efetivas de combate ao delito de ameaça, cujo tratamento atual não ostenta a eficácia necessária e desejada, iniciando-se pela devida alteração do texto legal, mediante processo legislativo ordinário, de forma a possibilitar aos aplicadores da lei a adoção de medidas repressivas mais contundentes, aptas a atender aos anseios da sociedade.

Sobre a autora
Ana Raquel Colares dos Santos Linard

juíza titular do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Juazeiro do Norte (CE)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LINARD, Ana Raquel Colares Santos. O crime de ameaça e o tratamento complacente da lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 468, 12 out. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5784. Acesso em: 5 nov. 2024.

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