INTRODUÇÃO
O artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro prevê o crime consistente na fuga do local do acidente, com a seguinte conduta típica:
Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe pode ser atribuída.
Pena: detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
Desta forma, a legislação de trânsito visa punir a fuga do condutor de veículo automotor do local em que ocorreu o acidente, pois este fato dificulta sua identificação e, consequentemente, sua eventual punição.
Ocorre que segundo o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conforme julgamento do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4, este crime previsto no artigo 305 do CTB é inconstitucional, ou seja, fere os princípios da nossa Constituição Federal e, portanto, não deve ser aplicado.
O fundamento para a declaração da inconstitucionalidade desse crime está no artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal, que contém o princípio segundo o qual ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si mesmo.
A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 305 DO CTB
A Constituição Federal brasileira estabelece diversos princípios que deverão ser respeitados para que tenhamos um processo legítimo e justo, dentre eles destacamos o princípio da ampla defesa e do contraditório, cujo conteúdo reflete o ensinamento que todos os indivíduos processados possuem o direito de defenderem-se utilizando todos os meios de provas em direito admitidas e a todos os atos processuais praticados pela parte adversa (ampla defesa), deverá ser oportunizado o direito da parte se manifestar (contraditório).
Além disso, no bojo do direito à ampla defesa, o artigo 5º, LXIII da CF expressamente prevê que:
Art. 5º ....
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;
Ao prever que o preso poderá permanecer calado, conferindo-lhe direito ao silêncio, nossa Magna Carta consagra o princípio do nemo tenetur se detegere, que consiste em que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
Criminalizar a conduta do motorista que se afasta do local do acidente visando não ser responsabilizado de forma criminal e civil pela causa do acidente, é o mesmo que retirar toda a eficácia e validade do princípio esculpido no artigo 5º, LXIII da CF, posto que o legislador ordinário está imputando ao agente a produção de prova contra ele mesmo, ou seja, o agente causador do acidente deverá permanecer no local do acidente, mesmo que este fato contribua para comprovação de sua responsabilidade penal e civil.
Sobre o tema, Damásio E. de Jesus, questiona:
[...] a lei pode exigir que, no campo penal, o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente? Como diz Ariosvaldo de Campos Pires, ‘a proposição incriminadora é constitucionalmente duvidosa’ (Parecer sobre o Projeto de Lei n. 73/94, que instituiu o CT, oferecido ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Brasília, 23-7-1996). Cometido um homicídio doloso, o sujeito não tem obrigação de permanecer no local. Como exigir essa conduta num crime de trânsito? De observar que o art. 8º, II, g, do Pacto de São José: ninguém tem o dever de auto incriminar-se. [2]
Devemos observar que em que pese o julgamento proferido nos autos do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4 existem posicionamentos contrários, defendendo a constitucionalidade do artigo 305 do CTB.
Nesse sentido, os professores Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves sustentam a constitucionalidade do dispositivo legal, sob fundamento que “a conduta incriminada é o afastamento, a fuga do local do acidente, com a intenção de não ser identificado e, assim, não responder penal ou civilmente pelo ato",[3] desta forma, a criminalização não estaria atrelada à produção da prova contra si mesmo, que somente ocorria em momento posterior, com a interposição de processo penal ou civil pela conduta.
Neste trabalho defendemos a correção da fundamentação do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4 determinou que:
Incidente de inconstitucionalidade (CF, art. 97; CPC, arts. 480 a 482). Código de Trânsito Brasileiro, art. 305 - fuga à responsabilidade penal e civil. Tipo penal que viola o princípio do art. 50, LXIII garantia de não autoincriminação. Extensão da garantia a qualquer pessoa, e não exclusivamente ao preso ou acusado, segundo orientação do STF. Imposição do tipo penal que acarreta a autoincriminação, prevendo sanção restritiva da liberdade, inclusive para a responsabilidade civil. Inconstitucionalidade reconhecida. Incidente acolhido.
É Inconstitucional, por violar o art. 5°, LXIII, da Constituição Federal, o tipo penal previsto no art. 305 do Código de Trânsito Brasileiro. [4]
Conforme consta nos argumentos do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4, o legislador ordinário não poderá suprimir direitos conferidos pela Constituição Federal, dentre eles a vedação da auto incriminação prevista no artigo 5º, LXII.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Constituição Federal de 1.988 traz em seu bojo diversos princípios que visam efetivar direitos e garantias fundamentais, dentre eles se enquadra o artigo 5º, LXII que garante o direito ao silêncio como expressão da vedação da auto incriminação.
Qualquer disposição infraconstitucional que determine o contrário, criminalizando condutas que ensejam a produção de provas contra si mesmo deverá ser considerado inconstitucional, tal como o artigo 305 do CTB.
Pelo exposto, consideramos acertada a decisão exarada nos autos do Incidente de Inconstitucionalidade nº 990.10.159020.4, que julgou inconstitucional o artigo 305 do CTB.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, São Paulo, 1998.
JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. São Paulo: Ed. Saraiva, 7a edição revista e atualizada, 2008.
Notas
[2] JESUS, Damásio E. de. Crimes de Trânsito. São Paulo: Ed. Saraiva, 7a edição revista e atualizada, 2008, pág. 147.
[3] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. São Paulo: Ed. Saraiva, São Paulo, 1998, pág.40.
[4] Disponível em: https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=25246. Acesso em 26 mai. 2017.