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Aspectos jurídicos acerca do tratamento compulsório de dependentes químicos e o problema da cracolândia

O poder público tem que acolher e dá condições de tratamento e consequente ressocialização aos que estão em situação de vulnerabilidade por causa da dependência química. O uso deliberado de substâncias psicoativas é caso de saúde pública.

Introdução

Quando estudamos a dependência química e suas consequências somos direcionados para investigar o impacto que esse problema gera na esfera da segurança pública, meio social e na saúde, esta tanto dos indivíduos dependentes quanto pública. Para tanto, cabe-nos fazer uma análise sobre os aspectos jurídicos que o problema envolve, por se tratar de dilemas sempre mencionados, porém não tão enfrentados nos debates e nas políticas públicas.

É certo que é necessário fazer uma análise considerando que cada indivíduo tem que ter seus direitos fundamentais de liberdade e dignidade garantidos, como também o Estado tem que garantir vida digna e saúde. Em outras palavras, o poder público tem que acolher e dá condições de tratamento e consequente ressocialização a cada um que passa, ou passou por problemas de dependência química. Portanto, faz-se aqui uma explanação das intervenções do poder público na denominada “cracolândia”, na cidade de São Paulo e os aspectos jurídicos relevantes ao tema.

1.            A Lei nº 11.343/2006 e o conceito de “drogas”.

É preciso enfrentar o tema partindo da premissa de que o dependente químico que aqui apresentamos é o que faz uso de drogas, como comumente se referem os meios de informação, por isso se faz necessário, para adentrarmos ao assunto, investigar o conceito de drogas.

A Lei de Drogas – Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006 – tem por objetivo desfazer confusão do legislador, pois nosso ordenamento convivia com duas leis sobre o assunto que embaraçavam os aplicadores do direito sobre o conceito trazido, a Lei nº 6.368 de 1976 e 10.409 de 2002, ambas revogadas por aquela.

Assim, a Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006, conceitua:

Art. 1o  (...)

Parágrafo único.  Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.

Para fim desta lei, consideram-se como drogas as substâncias capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União. A Lei nº 6368/76 utilizava a expressão “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”, ao passo que a Lei Lei nº 10.409/02 usava o termo “droga”.

2.            Os aspectos sociais.

O consenso, porém nunca enfrentado o problema com assiduidade pelas autoridades, é que o uso deliberado de substâncias psicoativas é um problema de saúde pública, principalmente diante do aumento de usuários de drogas que se alarga diariamente. É uma situação preocupante para profissionais de segurança pública, da saúde e da sociedade como um todo, uma vez que o crescente consumo de drogas e a consequente dependência química contribuem para as crescentes taxas de violência e níveis alarmantes da criminalidade, fatores que afetam a todos, tornando-se um fenômeno complexo, dinâmico, além de ser considerado um problema de ordem legal, social e sanitário. Infelizmente não se vislumbra e nem se ensaiam mudanças que correspondam ao vigor da crescente onda de dependentes e da consequente criminalidade que se instalou, tanto nas grandes como nas pequenas cidades, frente às políticas públicas que pudessem minimamente atenuar o impacto.

Dentre as drogas ilícitas consideradas, como a maconha e a cocaína, a partir do final dos anos 90 o crack, que é a cocaína que pode ser fumada, surgiu lentamente na cidade de São Paulo como primeiros relatos, de uma forma lenta, mas estável, expandiu-se para o interior do estado e depois para todo o país, sendo responsável pelo aumento de vários tipos de crime, tem capacidade de tornar a dependência mais rápida.

É comum a primeira vítima da violência do crack ser a própria família, pois os primeiros furtos começam de objetos da própria casa onde mora o usuário dependente, para custear o vício. Depois partem para delitos fora do ambiente familiar e vem, na maioria dos casos, o abandono do lar, passando o indivíduo a morar nas ruas.

Como lidar com o usuário é um problema que gera diversos outros problemas. Para os defensores da internação compulsória, é necessário estabelecer mecanismos que garantam que essa população deixe de usar drogas, mesmo a contragosto, para outros defensores de pontos de vista deferentes, a intervenção do Estado deve ser mínima e gradual; e para outros o uso deve ser tornado lícito. Mas o que se vê é muito debate de especialistas que não fazem nenhuma ação além de tumultuar, enquanto isso o problema se alastra e destrói famílias, bairros, centros e economias.

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2.1 A “cracolândia”.

A tão conhecida e noticiada “Cracolândia”, que passou recentemente por várias operações de segurança, fica na região da Luz, área central da cidade de São Paulo, que inclui também o centro de compras de Santa Ifigênia. É exemplo e consequência do abandono estatal e da falta de políticas públicas para conter o avanço do crack e tratar dependentes. Também é uma denúncia da falta da iniciativa da sociedade civil em aceitar a responsabilidade de enfrentar um monstruoso problema que afeta diversos setores e que os governos, em todos os níveis, e o judiciário e Ministério Público se mostram incapazes de solucionar.

As intervenções urbanas noticiadas pela grande mídia tiveram como ponto culminante janeiro de 2012, com o início da “Operação Centro Legal”, uma parceria entre governo municipal, estadual e polícia militar para coibir o consumo de drogas por parte dos dependentes químicos em nome da defesa do direito à vida e à saúde, pautada na repressão policial. Recentemente uma nova operação foi deflagrada (21 de maio de 2017) com o objetivo de acolher e tratar usuários, bem como prender traficantes e outros criminosos e devolver ao poder público a tutela sobre o local, Segundo o prefeito João Doria (PSDB), a operação envolve questões sociais, urbanísticas, de saúde e de segurança pública.

3.            Direitos fundamentais e a internação compulsória.

Fazendo uso de um olhar voltado para o aspecto constitucional, acerca dos limites que são impostos à atuação do poder público, que deve considerar os direitos fundamentais nas suas intervenções, mas também se deve considerar a previsão da função social da cidade prevista no art. 182 da Constituição Federal e da função social da propriedade urbana previsto no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), é possível compreender que o que se vê nessa situação é uma completa violação de direitos fundamentais, seja por ação ou por omissão de todas as esferas de poder, bem como da sociedade como um todo, que também se torna vítima da omissão dela própria.

3.1.        A internação compulsória.

É preciso diferenciar internação voluntária, involuntária e compulsória. Como o próprio nome já indica, a voluntária não requer aprofundamento, assim sendo, analisemos as outras duas formas, de acordo com a Lei 10.216/01.

A internação involuntária se dá quando o familiar do internando pode solicitá-la, desde que o pedido seja feito por escrito e aceito pelo médico psiquiatra. Já a internação compulsória que pode ser aplicada a dependentes químicos está prevista na Lei 10.216, de 2001, nos seguintes termos:

Art. 6º (...)

III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

(...)

Art. 9o A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.

Como está demonstrado, não é necessária a autorização familiar, uma vez que a internação compulsória deve ser sempre determinada pelo juiz competente, depois de pedido formal, feito por um médico, atestando que a pessoa não tem domínio sobre a sua condição psicológica e física. Essas precauções são para evitar a possibilidade de esse tipo de internação ser utilizado para a prática de cárcere privado.

No entanto, se discute a possível violação aos Direitos e Garantias Fundamentais nas ações que ora ocorrem e que são exaustivamente alvo de críticas e de apoiadores.

Conforme prevê o artigo 5º da CF/88, “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, mas é preciso entender que a intervenção estatal, como no caso da “cracolândia” parece ser desumano e degradante, porém esses predicados justificam mais a situação de abandono em que se encontram os usuários do que justificam falácias dos que se dizem contra as ações.

Ainda mais perceptível fica a obrigatoriedade de o poder público intervir quando se analisa princípios fundamentais do Estado de Direito contidos na dita Carta:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

O que se pode questionar é se as medidas adotadas serão capazes de surtir o efeito pretendido e se estão sendo tomados os cuidados necessários para minimizar violações de direitos e garantias fundamentais.

Conclusão

As intervenções na denominada “Cracolândia”, implementadas até hoje, parecem soluções imediatista que visam remediar um problema de imagem, quando a mídia noticia. Porém é preciso considerar a função social da propriedade dos que moram ou tem imóveis na região, frente à dignidade humana e cidadania dessas pessoas que também podem ser vistas como reféns do “crack”, deixando notório que o problema é de vulnerabilidade social completa, naquela região, havendo clara violação à dignidade humana pela falta de políticas públicas asseguradoras de saúde, educação, liberdade, moradia, renda e segurança.



Referências:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República federativa do Brasil9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

___________. Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm>. Acesso em: 08/06/2017.

___________. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.

_______, Governo do Estado de São Paulo. Entenda o que é a internação compulsória para dependentes químicos. Disponível em: <http://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/lenoticia.php?id=225660>. Acesso em 08/06/2017.

Sobre os autores
Francisco Bernardo de Araujo

Bacharel em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará - FAP; Sargento da Polícia Militar do Ceará

Antônio Iranildo Dantas

Bacharel em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará - FAP.

Francisco Rudemberg Sousa Cavalcante

Graduando em Direito pela Faculdade Paraíso do Ceará - FAP.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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