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O direito fundamental à informação pública como condição de efetividade da democracia no Estado Democrático de Direito e o segredo como restrição

Agenda 12/06/2017 às 21:03

O presente artigo visa analisar a democracia como um direito fundamental, necessário para a legitimidade do Estado e a promoção dos direitos fundamentais, sendo o acesso à informação pública um dos pilares para a formação do cidadão.

1. Introdução.

Um direito fundamental, é, em sua essência, uma garantia, prescrita na Lei Maior, tida como uma condição necessária para a própria essência daquele ordenamento jurídico. Tal posição, explicada por Sarlet (2015, p. 62), que coloca os direitos fundamentais, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais, como a substância da ordem normativa. Neste ponto, em sua natureza objetiva, eles se configuram como verdadeiros mandamentos de direção do funcionamento estatal (p. 152), assim como existem na noção subjetiva, de uma prestação ou proteção daquele direito (p. 158).

Assim, nesta dupla natureza dos direitos fundamentais, temos a democracia, como pressuposto de existência do Estado Democrático de Direito, que, apesar de não estar elencada como garantia na Constituição Brasileira, se coloca como Princípio Fundamental da República. Brito (2013) desenvolve a ideia da democracia ser tanto a esfera institucional de existência dos direitos fundamentais como ela própria um direito fundamental.

Não obstante, entre os direitos fundamentais, encontra-se o Acesso à Informação Pública, que tem como principal objetivo a obtenção de informações pelo cidadão, de interesse público. Tal direito fundamental é, como abordado por Bento (2015 p. 62), parte indissolúvel do processo democrático, já que é necessário ter acesso às informações públicas para compreender o processo decisório e fazer parte dele. Neste prisma, convém lembrar da crítica de O’Donnel (2008), sobre o estágio das democracias atuais, principalmente na América Latina, que, apesar de terem passado por um período de transição pós ditaduras, ainda conservam problemas estruturais no núcleo democrático, sendo assim definidas como democracias delegativas, porque a participação popular no processo decisório é deficitária.

Assim, neste prisma, o presente artigo analisa a democracia como um princípio fundamental dos Estados Modernos, necessária para a legitimação dos processos institucionais, e o acesso à informação como ferramenta de efetividade, garantida a informação necessária para a capacitação do cidadão no processo democrático, sendo o segredo de Estado a exceção, uma restrição deste direito.


2. A Democracia como Princípio Fundamental.

Bobbio (2015 p. 35) coloca a democracia como um conjunto de regras sobre quem decide e qual é o procedimento usado. Este conjunto de regras exige fundamentos prévios. Como já visto, a própria democracia é um fundamento do Estado Democrático, junto aos outros princípios contidos nos primeiros quatro artigos da constituição pátria.

De fato, uma das primeiras preocupações encontradas nas ciências políticas, tendo como expoente Aristóteles (2015), é a degeneração da democracia em uma oclocracia, a tirania da maioria. Coloca o autor que, no governo das leis, os bons ocupam os cargos e a demagogia não vinga. Com a degeneração das leis, a maioria passa a decidir, como coletividade, criando um problema que persiste até hoje: a tirania da maioria em relação às minorias.

Então, as leis e fundamentos prévios, tanto em Aristóteles quanto Bobbio, colocam-se como pressupostos de validade do governo justo. Este peso, entre a democracia, como governo da maioria, e o governo constitucional das leis, tem o seu equilíbrio da promoção de uma sociedade livre, justa e solidária, tendo como fundamento a dignidade da pessoa humana.

A democracia então passa a ser não uma ferramenta direta de construção social, mas a fonte de legitimidade dos poderes constituídos. Mais do que apenas legitimidade, a sociedade, fonte da democracia, entra em consonância com a constituição por intermédio da Vontade Constitucional, proposta por Hesse (2009). Assim, toda a ordem constitucional não é apenas fruto da democracia mas se legitima por ela. A constituição passa a ser não apenas um espelho da sociedade, mas sim um projeto. E este projeto é construído com o aval da sociedade, que promove este processo tanto pelo voto como pela fiscalização do Estado.

Esta construção democrática, como evidenciada por O’Donnel (2008), é gradual, mas tem como objetivo abrir o processo decisório para os diversos atores, que se agrupam em interesses, e evitar erros grosseiros que uma delegação, pelo voto, não poderia prever ou conter. Assim, a abertura do processo democrático, fechando a ideia proposta por Alves, promove a esfera de existência dos direitos fundamentais, pois permite que a população possa participar do processo decisório, discutindo as propostas, fiscalizando as políticas públicas e fomentando a Vontade de Constituição, contribuindo, assim, para uma sociedade em consonância com os direitos fundamentais.

Outrossim, a democracia constitucional, pautada pelos direitos fundamentais, é um mecanismo protetivo das minorias. Ao pautar direções para o funcionamento estatal, os direitos fundamentais prezam por um mínimo, irredutível, que permite a própria realização da sociedade. Nesta seara, convém lembrar de uma frase, historicamente utilizada diversas vezes, atribuída a diversos autores, mas que encontra em um texto de Simkin (1992) uma expressão consonante com a exposição presente: democracia não é liberdade. Democracia é dois lobos e um cordeiro votando para ver quem será o almoço. A liberdade vem do reconhecimento que certos direitos são inalienáveis, mesmo com uma votação de 99%.


3. O Acesso à Informação e a efetividade da democracia.

Como já evidenciado, o Acesso à Informação é uma condição necessária para fornecer os subsídios de capacitação do cidadão no exercício tanto do controle como da legitimação dos atos estatais. É por intermédio desta informação qualificada que as partes, na discussão democrática, podem operar em um nível discursivo possível, visando obter a melhor opção, dentre as possíveis, como colocado por Bento (2015) ao analisar a esfera democrática tendo como pano de fundo o princípio do discurso de Habermas.

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O acesso à informação teve como marco inicial os movimentos populares indianos do grupo Mazdoor Kisan Shakti Sangathan, indiano para ‘‘União pelo fortalecimento de Camponeses e Trabalhadores‘‘, que lutou pela transparência do governo da província de Rajasthan, nos descontos em folha dos trabalhadores contratados para as obras públicas. O governo negou o acesso à informação, declarando segredo de estado. Assim, a luta do movimento não se restringiu à percepção do salário, mas sim pelo direito à informação, necessária para controlar o estado e impedir a arbitrariedade, como Bento (pgs 51-52) bem coloca.

Malik (2013) vai além e enuncia o direito à informação como um verdadeiro direito contra o Estado, indo na esteira já apresentada neste artigo. Neste ponto, vale a constatação kantiana (2008 p. 76) de que deve o Estado zelar pela publicidade de suas ações, pois uma máxima deve ser pública. Declarar o segredo de uma ação estatal alegando que a publicidade ensejaria oposição é uma injustiça e não condiz com um regime democrático, no qual o Estado deve prestar contas perante a população como ferramenta de legitimação.

Bobbio (2015 pgs. 137 – 138), dissertando sobre o Catecismo Republicano de Michele Natale, reconhece o caráter público dos atos Estatais como a regra em um Estado constitucional. Assim, é razoável dizer que, se o Estado constitucional é pautado pela publicidade, e a Constituição vigente garante esta premissa, a regra é a devida prestação estatal dos mecanismos de informação.

Assim, tendo em vista que a democracia é um direito fundamental, pois permite a construção de um ambiente estrutural para a promoção dos outros direitos fundamentais, sendo ela própria um, como pilar do Estado, e o acesso à informação é condição necessária para a promoção de uma democracia não apenas delegativa, mas participativa, existe o problema do segredo a ser vencido, e o seu impacto na ideia do acesso à informação como prestação.


4. A Possibilidade do Segredo de Estado.

Bobbio (2015 pgs. 139-140), citando Schimitt, levanta a questão da representatividade, peça essencial da democracia moderna, como algo somente possível na esfera do público. A representação, como função delegada, só pode existir no interesse do delegatário. Para não cair na problemática apresentada por O’Donnel, de uma democracia delegada, é necessário que o cidadão possa observar e julgar os atos do representante. É importante notar que Schimitt desenvolveu tal tese no período pós-guerra, tendo ficado horrorizado com a máquina de guerra nazista, que nasceu escondida no âmago da administração pública, distanciando-se da representatividade presumida. Tão evidente é esta desassociação entre a representatividade delegada e a administração funcional, que agia fora do controle e da supervisão pública, que muitos dos horrores da guerra foram descobertos apenas com a derrota do regime, ilustrando o contexto das afirmações propostas por Schimitt.

Cadermatori e Cadermatori (2011), seguindo a análise de Schmitt, colocam a visão do autor consonante a ideia do segredo de estado sendo um mecanismo de manutenção do status quo, o que reforça a posição adotada neste artigo, da incompatibilidade do exercício de um poder delegado com o segredo, tornando o acesso à informação uma condição sem a qual não é possível o exercício da democracia.

Assim, sendo que nenhum direito é absoluto, faz-se necessário encontrar os parâmetros de possibilidade de restrição do acesso à informação.

A Lei de Acesso à Informação define que, na restrição do acesso à informação pública, os dois critérios relevantes são: o tempo de restrição e a possibilidade de ameaça, tanto para a sociedade quanto para o Estado.

A primeira crítica que se deve fazer a este modelo é também o ponto mercante. A distinção entre o interesse público e o interesse estatal, respectivamente o interesse público primário e o interesse público secundário. Poderia o estado decretar sigilo a uma informação pública considerando apenas o interesse público secundário? A resposta, aceitando a tese de que a democracia é um direito fundamental que projeta um campo de estabilidade para a promoção dos outros direitos fundamentais, tendo o acesso à informação uma condição necessária para o seu pleno fundamento, só pode ser não. O Estado, na figura do interesse público secundário, é delegado do poder que emana do povo. Não faz sentido, a priori, esconder informações do cidadão alegando defesa dos próprios interesses, já que o Estado deve prestar contas de todas as suas ações. Neste quesito é importante retomar o conceito de segredo e injustiça kantiano:

‘‘(...)uma máxima que eu não posso manifestar em voz alta sem que, ao mesmo tempo, se frustre a minha própria intenção, que deve permanecer inteiramente secreta se quiser ser bem sucedida, e que eu não posso confessar publicamente sem provocar de modo inevitável a oposição de todos contra o meu propósito, uma máxima assim só pode obter a necessária e universal reacção de todos contra mim, cognoscível a priori, pela injustiça com que a todos ameaça. – É, além disso, puramente negativa, ou seja, serve apenas para conhecer por seu intermédio o que não é justo em relação aos outros.”.

Mello (2009 p. 72), ao analisar o interesse público primário e o interesse secundário, coloca que o interesse público secundário só recebe a proteção da supremacia do interesse público quando está em consonância com o interesse privado. Nesta análise, considerando o peso do acesso à informação para a democracia, é necessário um juízo de proporcionalidade para auferir a real possibilidade de restrição deste direito, usando os parâmetros ofertados pela lei.

Assim, parece razoável dizer que o interesse coletivo é o fundamento do segredo, não o interesse público secundário estatal.


5. O Segredo de Estado como Restrição e Limites.

Sem entrar na discussão específica sobre os limites internos e externos, já que a lei especificamente coloca o segredo como a exceção da regra, cabe pensar no exame de proporcionalidade.

Alexy (2015 p. 284) coloca que os princípios podem oferecer restrições aos direitos fundamentais. Analisado até o presente momento, o interesse público primário se coloca como um princípio válido para a restrição do acesso à informação, não sendo admissível o interesse público secundário, sozinho, como critério exclusivo para decretar o sigilo das informações públicas.

Canaris (2009), ao desenvolver os imperativos de tutela, tratou sobre o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Assim, a proteção não pode ser deficiente, preservando o núcleo essencial deste direito fundamental. A própria lei referida coloca como núcleo mínimo a informação necessária para promover os direitos fundamentais na esfera judicial e administrativa, o que coloca um problema adicional aos já levantados: reconhecendo a democracia como um direito fundamental, não poderia o administrador público ou político impedir o acesso à informação necessária para que a população exerça o controle dos atos administrativos e políticos, função esta necessária para a legitimidade dos atos.

Toda esta construção teórica visa colocar no conflito, como enunciado por Alexy, a legitimidade sistemática para a restrição do acesso à informação. Tal conflito não deixa de escapar da problemática levantada pelo autor sobre os limites epistemológicos da discricionariedade dos sopesamentos (p. 612 e ss.). O poder democrático legitima o administrador público e o político, que precisam esconder ações para efetivar o interesse público. Tal problemática se reveste de uma típica discricionariedade epistêmica do tipo cognitiva, já que o gestor dificilmente terá como afirmar, a priori, se o segredo é realmente necessário para a realização do interesse público, quando age na discricionariedade. Aqui, vale a regra apresentada por Alexy (p. 617), de que ‘‘quanto mais pesada for a intervenção em um direito fundamental, tanto maior terá que ser a certeza das premissas nas quais essa intervenção se baseia”. Não deve o gestor decretar o sigilo por mais tempo que o necessário, e tal necessidade deve se basilar no interesse público primário. Quanto maior a certeza do comprometimento da finalidade pública, maior a possibilidade de restrição, sem desconsiderar que é do interesse público controlar os atos do estado e ter esta informação, criando um nível extra de cuidado, já que o administrado não tem como participar do processo decisório sobre a restrição, restando apenas o controle (muito) posterior sobre os fatos.


6. Conclusão

A democracia é um direito fundamental, além de um princípio base do funcionamento do Estado Democrático de Direito, necessário para criar um ambiente propício para os outros direitos fundamentais. Se baseia na capacidade do cidadão em tomar decisões informadas. Logo, realiza-se no acesso à informação pública de qualidade, sendo a publicidade dos atos a regra, para a devida efetividade.

Porém, na realidade, temos uma problemática, já que a legislação permite, formalmente, o sigilo pelo interesse estatal, o que colocaria um problema no sopesamento das restrições ao acesso à informação pública, que deveria ser pautado no interesse público primário, da sociedade.

Assim, em que pese a existência de uma lei para proteger o acesso à informação e o reconhecimento do papel dela para a promoção dos direitos fundamentais, no campo epistêmico do processo decisório, fica a crítica sobre a possibilidade de decretar sigilo por interesses públicos secundários, de fato ou não. Vários são os casos nos últimos anos, como o BNDS em relação ao desastre de Belo Monte ou o governo Alckmin sobre o metrô.

Saindo do cenário brasileiro, temos a crescente preocupação com os acordos de comércio transatlânticos, como noticiado pelo jornal internacional DW em 2016. As negociações de um acordo comercial entre a Europa e os Estados Unidos foram mantidos em segredo, gerando diversas críticas, justamente pela natureza democrática da legitimidade das ações: como seria possível legitimar um acordo do interesse público dos dois blocos sem a devida informação? Esforços foram arquitetados para promover um mínimo de transparência para efetivar a democracia, sem comprometer as negociações.

Assim, existe uma tensão para a promoção da efetividade, principalmente entre o interesse público e o interesse estatal, que deve ser motivo de ponderação, sem esquecer a natureza inseparável entre a informação e a decisão, a democracia e o acesso à informação pública como um pilar essencial dos direitos fundamentais.


Referências

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BRITO, Fernando Alves de. Constituição e Participação Popular. A Construção histórico-discursiva do conteúdo jurídico-político da democracia como direito fundamental. Jurua Editora. Curitiba 2013

BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo. Editora Paz & Terra. São Paulo e Rio de Janeiro, 2015.

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O'Donnel, Guilhermo. Democracia Delegativa. Novos Estudos CEBRAP N° 31, outubro 1991

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Livraria do Advogado, 12ª edição. Porto Alegre, 2015.

Sobre o autor
Maiqui Cardoso Ferreira

Mestrando em Direito pela Unilasalle -Canoas. Pesquisador, com ênfase na sociologia, antropologia e filosofia da burocracia e do direito administrativo.

Informações sobre o texto

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