O constituinte agiu de forma mui sábia quando determinou aos gestores públicos, que gerissem aquilo que é do público, mediante um orçamento prévio, que deveria ser elaborado pelo gestor, porém que necessitaria da autorização dos representantes do povo para sua validação (art. 165, III da CF).
Ora, já imaginou como seria a situação se o gestor público pudesse gerir o erário público apenas ao sabor da sua vontade. O orçamento, em linhas bastantes gerais, nada mais é do que a lei que diz como o dinheiro público deve ser gasto.
Sendo assim, posto que a coisa pública é gerida mediante um orçamento, aprovado em um ano para ser gerido no ano seguinte, então nada poderá “pegar de surpresa” esse orçamento. Ou seja, se o gasto da riqueza pública será realizada mediante diretrizes estabelecidas mediante lei, que dirá onde, quando e como a riqueza será alocada (salvo margem para atuação discricionária, que também é prevista em lei, como uma liberdade vigiada), então o administrador dessa riqueza não poderá ser pego de surpresa. Pois, do contrário, faltará riqueza em alguma área.
Daí surge a necessidade de uma previsão, nesse mesmo orçamento, para o pagamento inclusive de despesas que poderão surgir, a exemplo das condenações judiciais. Ora, se fosse possível ao Poder Judiciário proceder com a expropriação de verbas públicas a qualquer momento, e em qualquer valor, então a gestão pública poderia ser totalmente inviabilizada. Para que isso não aconteça, é necessário que, no orçamento, haja previsão de valores para o pagamento das condenações judiciais.
Sendo assim, a Constituição Federal determina que:
Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009). (Vide Emenda Constitucional nº 62, de 2009)
Tais valores, previstos em orçamento público para pagamento dos precatórios, serão consignados diretamente ao Poder Judiciário (§6º), de forma que, havendo a condenação judicial da Fazenda Pública, mediante sentença transitada em julgado, e não sendo o caso de requisição de pequeno valor (§3º), o Presidente do respectivo tribunal determinará o pagamento integral daquela condenação, ou autorizará, a requerimento do credor, e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência, ou para os casos de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito, o sequestro da quantia respectiva (§6º).
Esse é o resumo constitucional da forma de pagamento dos débitos judiciais, quando o devedor trata-se da Fazenda Pública.
No entanto, o problema é muito maior.
Acontece que na prática, os casos que chegam ao Poder Judiciário muitas vezes requerem uma medida mais enérgica por parte do órgão julgador. Imaginemos, a título de exemplo, o caso de alguém que necessite de uma intervenção cirúrgica, ou de um determinado medicamento, e o poder público insista em negá-lo. Ora, esperar, por tanto, que tal obrigação seja realizada mediante o pagamento dos precatórios, seria medida quase que inútil, posto que, quando enfim chegasse o momento de se pagar o precatório daquela pessoa doente, então muito provavelmente, a mesma já teria falecido.
Nesses casos de saúde, fica evidente que a expropriação liminar do erário é a medida mais correta a ser realizada. No entanto, há, como em tudo no Direito, uma zona cinzenta, um halo de incertezas, onde as decisões judiciais se confrontam, cada uma apontando para um caminho diferente.
Se, por um lado, os débitos judiciais da Fazenda Pública devem ser pagos por precatório, ou requisição de pequeno valor, por outro lado, seria medida draconiana permitir que alguém morra por falta de tratamento, quando o Estado tem a obrigação de arcar com o mesmo, e ainda, tendo o Estado também recursos para tanto.
Vemos então, no dia a dia forense, uma gama de decisão de magistrados e tribunais, que ora bloqueiam liminarmente parcela do erário público, ou que ora negam o pedido de bloqueio do erário público.
Bom, não podemos esquecer que o legislador ordinário editou a Lei 9.494/97, que tem a seguinte ementa: “Disciplina a aplicação da tutela antecipada contra a Fazenda Pública, altera a Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, e dá outras providências”.
Como a própria ementa afirma, essa Lei trata da aplicação de tutela antecipada contra a Fazenda Pública, norteando e limitando a atividade do julgador, diante de antecipação de tutela contra a Fazenda Pública. Tal norma limita os casos onde se poderá antecipar a tutela contra o poder público em juízo.
Diante deste quando há uma miscelânea jurisprudencial acerca do assunto. Quase todos os tribunais, inclusive os superior, têm julgados conflitantes entre si, ora permitindo, ora negando a antecipação da tutela. Não seria nada interessante juntar aqui a jurisprudência acerca do assunto, pois há entendimento para todos os gostos.
No entanto, o plenário do Eg. Supremo Tribunal Federal, por maioria, deferiu parcialmente um pedido liminar feito em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), para que fosse suspenso, até o julgamento de mérito, os efeitos de todas as decisões judiciais exaradas tanto pelo Eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, quanto pelo Eg. Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, que tenham determinado o arresto, o sequestro, o bloqueio, a penhora ou a liberação de valores das contas administradas pelo Estado do Rio de Janeiro, os quais tenham sido realizados para atender a demandas relativas ao pagamento de salários, a satisfação imediata de créditos de prestadores de serviços e tutelas provisórias que se enquadrem como definidoras de prioridades na aplicação de recursos públicos, exclusivamente nos casos em que estas determinações tenham recaído sobre recursos escriturados, com vinculação orçamentária específica ou vinculados a convênios e operações de crédito, valores de terceiros sob a administração do Poder Executivo e valores constitucionalmente destinados a municípios, devendo, ainda, ser devolvidos os recursos que ainda não tenham sido repassados aos beneficiários dessas decisões judiciais.
A decisão é marcante, em virtude da repercussão que certamente causará nas milhares de demandas iguais a estas, que correm em todo o Brasil, mormente pelo fato de que o novo CPC enfatizou a importância da jurisprudência e dos precedentes judiciais.
Certamente que todo o Município e Estado do Brasil tem algum tipo de restrição judicial semelhantes a esta. De forma que, não há margem de dúvida que os procuradores irão juntar aos autos o teor da decisão do STF, inclusive para que sejam liberados os valores que ainda não tenham sido repassados aos beneficiários.
Segundo a decisão, parece existir poucas dúvidas de que há afronta ao axioma da separação e independência dos Poderes, bem como ao princípio da igualdade ou ao princípio federativo, considerada a posição central por eles ocupada, sendo que, a decisão questionada, desfiguraria a própria natureza do regime constitucional. Ainda se asseverou a questão da continuidade do serviço público. Ou seja, o mesmo argumento pode ser dito quanto à garantia de continuidade dos serviços públicos, na medida em que estes mantém, diante do arcabouço jurídico constitucional brasileiro, posição de instrumentos particularmente relevantes de distribuição de direitos materiais subjetivos, notadamente os de natureza essencial e continuados.
A decisão é paradigmática. Como dito, é sabido por todos que há alguns magistrados, de forma até mesmo gravosa, determinam o bloqueio do erário público, para a satisfação de créditos que não se sabe se de fato existem ou não. A título de exemplo, citamos a grande quantidade de decisões judiciais exaradas pela Justiça do Trabalho, expropriando quantias dos cofres públicos municipais, para pagamento de condenações trabalhistas, oriundas, muitas delas, de contratos de trabalhos nulos, que contrataram pessoas para trabalharem sem concurso público, e ao arrepio da lei.
A decisão porém e ruim do ponto de vista de quem aguarda pelo desfecho processual. De forma que, em muitos casos, o órgão julgador está em uma berlinda: ou bloqueia a quantia liminarmente dos cofres públicos, pondo em risco os serviços estatais, ou não procede com o bloqueio liminarmente, e põe em risco o direito dos jurisdicionados.
É bem verdade que a decisão é pontual, porém já se vislumbra o surgimento de precedentes, os quais pendem em favor da Fazenda Pública.
Talvez seja o tempo de se pensar em uma alternativa aos precatórios. Em todo caso, a decisão foi apenas liminar. Esperemos pelo mérito.