IV. DANO MORAL, QUEM É VOCÊ?
Apesar do direito brasileiro conviver com o dano moral há mais de três décadas – se for contar a partir do início das decisões emanadas pelos Tribunais Superiores -, não se pode afirmar que o assunto encontra-se consolidado e isente de dúvidas. Numa análise científica, a identificação do dano moral se mostra vacilante, na medida em que tribunais, como por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, ainda não puseram uma pá de cal nas divergências internas quanto ao tema.
Toda a tranquilidade que permeia a matéria dos prejuízos imateriais rompe-se quando se coloca à mesa uma simples pergunta: O que é o dano moral? Qual o conceito de Dano moral? Neste momento, abre-se um abismo entre os estudiosos e três correntes se apresentam com fundamentos e argumentos que seduzem qualquer neófito no tema.
Aliás, não é de hoje que identificar o que, realmente, venha a ser um dano moral é apresentada como uma missão complexa. Apesar de toda a evolução com os inúmeros estudos sobre o tema, ainda há divergência quanto a identificação do dano moral em parâmetros bastante similares com aqueles oriundos de épocas clássicas. Ao tratar do tema, Wilson Melo da Silva já trazia conceitos que, em tese, podem transparecer díspares já que afirma que o dano moral
São lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, entendendo-se por patrimônio ideal, em contraposição a patrimônio material, o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico.
Jamais afetam o patrimônio material, como o salienta DEMOGUE. E para que facilmente os reconheçamos basta que se atente não para o bem sobre que incidiram, mas sobretudo, para a natureza do prejuízo final.
Seu elemento característico é a dor, tomado o termo em seu sentido amplo, abrangendo tanto os sofrimentos meramente físicos como os morais propriamente ditos.[13]
A doutrina que se dedicou ao estudo inicial do dano moral - quando apresentado à necessidade de conceituá-lo – buscou identificá-lo a partir de um comparativo com o dano material. A este era resguardada a necessidade de indenização do ofendido com o seu retorno ao status quo ante à ofensa. Por sua vez, quando a ofensa não apresentava reflexos no âmbito patrimonial, estaria de frente a um dano moral.
A simplicidade da identificação do dano moral a partir daquela indenização imputável a ato que, simplesmente, resulta em ofensa a direito sem percepção econômica do ofendido não é adequada diante da complexidade que as relações sociais se revestem nos dias atuais. Isso porque haveria situações em que a prática de um ato só resultaria em ofensa aos dois patrimônios: o material e o extrapatrimonial.
O dano moral ainda continuava preso e subordinado ao dano material. Existindo este, não haveria razão para se falar em indenização por conta daquele, afinal, o foco central da norma jurídica já estava devidamente assegurada. Nesta época, como mencionado alhures, o menoscabo imaterial ainda era visto de maneira disforme, sem os contornos apresentados nos dias atuais.
Silvio Rodrigues[14], em edições mais antigas, também apontava no sentido de que o dano moral seria apenas aquele que ofendesse exclusivamente a esfera extrapatrimonial da vítima. Havendo resquícios de danos que resultasse em diminuição de valores, estaria diante do dano material. Diante destas dificuldades, este autor afirmava que a matéria em estudo era identificada a partir da dor, do sofrimento, da mágoa, da tristeza imposta pelo ofensor ao ofendido.
A partir de então, inicia-se uma segunda vertente doutrinária que traz consigo a necessidade de identificação de algum tipo de perda para que se possa falar em dano moral. Há uma lista de grandes juristas que sustentam a tese segundo a qual somente seria possível falar neste tipo de ofensa quando houvesse reflexo no âmago da pessoa, que seriam exteriorizados a partir da dor, do sofrimento, da humilhação e outros mais que possam compor este leque de sentimentos negativos. Neste sentido, cita-se, mais uma vez, os ensinamentos de Maria Celina Bodin de Moraes, para quem:
O dano é ainda considerado moral quando os efeitos da ação, embora não repercutam na órbita de seu patrimônio material, originam angústia, dor, sofrimento, tristeza ou humilhação à vítima, trazendo-lhes sensações e emoções negativas. Neste último caso, diz-se necessário, outrossim, que o constrangimento, a tristeza, a humilhação, seja intensos a ponto de poderem facilmente distinguir dos aborrecimentos e dissabores do dia-a-dia, situações comuns a que todos se sujeitam, como aspectos normais da vida quotidiana.[15]
Estabelecer que o dano moral se configuraria a partir da ocorrência de um sentimento negativo, de alguma mágoa, não é injustificado. Durante décadas, o direito brasileiro conviveu sob a égide de uma responsabilidade civil patrimonialista onde somente seria possível se falar em indenização e, por consequência, em dano quando houvesse a identificação de algum tipo de perda. A redução patrimonial era necessária e fundamental para desenhar o dano material.
Ocorre que, quando se fala em dano moral, esta perfeita silhueta não consegue ser vestida com tamanha exatidão. Como assegurar a ideologia da perda sob um direito que refuta redução patrimonial, exatamente, por ser extrapatrimonial? Se há a indenização por algo, o valor a ser pago deve ser para repor alguma diminuição, sob pena de se chancelar a percepção de valores de forma indevida, o que desaguaria no enriquecimento sem causa do ofendido em toda e qualquer hipótese onde fosse possível incidir a matéria em análise.
Se objetivo é demonstrar uma redução, no caso dos danos extrapatrimoniais, esta diminuição se verterá para a tranquilidade espiritual, daí a necessidade de identificação dos sentimentos negativos para a sua configuração. A indenização, então, seria por conta da quebra da paz interna. Apesar de bastante sedutora, esta linha de raciocínio deve ser analisada com bastante reserva. A facilidade e a atração com que lhe oferecem a maçã pode esconder o veneno ali existente e lhe retirar do paraíso.
Sustentar apenas a existência da dor ou do sofrimento como aspecto básico para a configuração do dano moral é reduzir a importância do instituto perante a interação social moderna. Mesmo assim, apesar desta advertência, a jurisprudência pátria ainda perfilha neste sentido, resistindo às advertências quanto a deformidade do tratamento dado à identificação do dano moral, o que, sem sombra de dúvidas, resultará em insegurança jurídica, conforme será demonstrado, o tratamento conferido à situações similares pelo mesmo Tribunal não segue um pensamento uníssono, causando conflitos evidentes, de acordo com o que segue delineado.
A Jurisprudência brasileira segue reluzindo a expressão dor – e os demais sentimentos negativos – quando se trata de danos morais. É muito fácil encontrar menções que indicam que a indenização por dano moral é devida em face da tristeza ou da humilhação sofrida pela vítima. Somente a título de exemplo, cita-se jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
DANO MORAL: Hipótese que não é apta a ensejar a pretendida indenização por dano moral. Só deve ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação intensa e duradoura que, fugindo à normalidade, cause aflições, angústia e desequilíbrio ao bem-estar. Sentença mantida. RECURSO NÃO PROVIDO. (224223320098260590 SP 0022422-33.2009.8.26.0590, Relator: Renato Rangel Desinano, Data de Julgamento: 29/11/2012, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/11/2012)
Prestação de serviços. Telefonia Interrupção do serviço - Ação indenizatória - Danos morais Repetição em dobro da importância paga a título de recarga, determinada na origem Dano moral não configurado - Inexistência de ato que acarrete sofrimento intenso Sentença mantida - Recurso desprovido. Mero descumprimento de contrato, sem desdobramentos graves e sem abalo ou sofrimento, não induz dano moral. (9118494842008826 SP 9118494-84.2008.8.26.0000, Relator: Reinaldo Caldas, Data de Julgamento: 08/08/2012, 26ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/08/2012)
No patamar paralelo à esta corrente doutrinária da dor, existe aqueles que entendem ser o dano moral uma ofensa à direitos da personalidade. Não haveria, portanto a necessidade de identificação de qualquer alteração subjetiva, mas apenas a identificação da agressão ao âmbito de um complexo de direitos inerentes à pessoa pela simples condição de “ser humano”.
Ao seguir a teoria segundo a qual o dano moral seria uma ofensa a direitos da personalidade, resta questionar o que seriam, na realidade, tais direitos. Para esta pergunta, observa-se que a doutrina bifurca-se em dois grandes grupos.
O primeiro deles, e mais clássico envolve a questão do direito da personalidade como sendo aqueles legalmente previstos. Conhecida como corrente atomista dos direitos da personalidade, esta linha de raciocínio limita tais direitos a apenas aqueles que foram taxativamente descritos pelo Legislador. Há, neste caso, forte influência dos preceitos civis clássicos que, sob a influência do direito francês, somente aceitaria como algo tutelável pela norma jurídica aquilo que fosse previsto nos Códigos.
É evidente que um pensamento restritivo como o desenvolvido por esta corrente passaria a perder força com a evolução dos institutos jurídicos e da necessária proteção ao indivíduo como um ser detentor de direitos. A inserção da cláusula de proteção geral do ser humano advinda pela inserção expressa pela Constituição Federal do princípio da Dignidade da Pessoa Humana foi o marco decisivo para a guinada da doutrina[16].
Atualmente, por consequência, ganha cada vez mais força a corrente de pensamento que afirma acerca da existência de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana. Segundo esta linha de raciocínio a defesa do sistema à pessoa deve ser de tal forma ampla que não haveria espaço para a manutenção da proteção apenas ao direito da personalidade expressamente previsto em lei. A sua cadeia protetiva se estenderia a situações diversas, devendo apenas haver a ofensa a interesses existenciais da pessoa humana. Neste sentido, pode-se citar Pietro Perlingieri, árduo defensor de uma linha de raciocínio mais ampliativa da tutela aos direitos da personalidade:
A tutela da personalidade não pode ser fracionada em isoladas fattispecie concretas, em autônomas hipóteses não comunicáveis entre si, mas deve ser apresentada como problema unitário, dado o seu fundamento representado pela unidade do valor da pessoa. Este não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, em isoladas ocasiões, como nas teorias atomistas.[17]
Rompendo-se a barreira do “legalmente previsto”, o leque protetivo ganha novos contornos. Amplia-se a rede de tutela inserida sobre o âmbito das ofensas ao direito da personalidade. A mutabilidade, atualmente, é característica deste “novo” sistema da responsabilidade civil. O que antes era restrito apenas ao aspecto fixo e imutável da ofensa patrimonial, ganha, hoje, novos contornos que são amorfos, já que não haveria um limite daquilo que seria considerado como juridicamente protegido. A borda do direito estaria muito mais fina.[18]
Apesar de esta ser a linha de raciocínio que, atualmente, ganha maior respaldo dentre aqueles que estudam a temática, é comum encontrar na doutrina e jurisprudência quem, ainda, mescle os estes dois parâmetros para conceituar o dano moral[19]. Seria, portanto, uma ofensa a direitos da personalidade, como, por exemplo, a honra, sendo que tal agressão deveria resultar em sentimentos negativos.
Não é difícil encontrar quem defenda este ponto de vista. Aliás, a própria jurisprudência do STJ ainda é vacilante quanto a este tema. É possível observar naquele Tribunal acórdãos que apontam no sentido de ser o dano moral ofensa a um dos direitos da personalidade[20], enquanto que outros Ministros optam por afirmar que eles seriam condutas que resultam em sentimentos negativos, simplesmente[21]. Partindo-se para uma análise mais acurada, verifica-se que a tendência é no sentido de reconhecer o dano moral como ofensa a direitos não patrimoniais, sendo ele uma defesa à tutela geral da pessoa humana.