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A fixação do dano moral e a pena

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7.

DA EXCLUSÃO DO CARÁTER PENAL DOS DANOS MORAIS PELA ESPECIAL DESTINAÇÃO DA REPARAÇÃO AO LESADO.

Podemos, aqui, novamente mencionar a posição de Américo Luiz Martins da Silva para quem há uma sutil diferença entre multa pecuniária (pena) e reparação do dano moral. A primeira é devida ao Estado, enquanto a segunda é devida ao lesado [7].

Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, sustenta a mesma opinião:

"Neste caso existe uma certa semelhança entre pena patrimonial e execução. Ambas são execução forçada de um patrimônio. Distinguem-se uma da outra pelo fato de o valor patrimonial compulsoriamente subtraído ir, no caso da pena patrimonial, que normalmente consiste em dinheiro, para um fundo público (caixa estadual ou municipal), enquanto que, no caso da execução, tal valor é atribuído ao lesado para indenização do prejuízo material ou moral, no que se revela um fim determinando pela ordem jurídica que, no caso da pena, não existe" (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 122).

Tais autores realmente realçam um ponto importante da questão. Todavia, a especial destinação da reparação por danos morais não retira o caráter de pena que a ela tem sido atribuído. Na busca da natureza de um instituto, no caso a pena, não se pode partir das conseqüências dele advindas, mas somente de seus pressupostos e características imanentes. Falta, assim, a tal diferenciação método científico.

Como se isto não bastasse, a história do direito é pródiga em exemplos de penas privadas. Efetivamente, o caráter público da pena é nota característica do Estado Moderno. Esta asserção é endossada por Pasquale Voci [8] que afirma: "nell’ambito della pena, intesa nel più largo senso, comprendente la pena pubblica e la privata. Che, nell’ambito della pena privata, la condanna sia – almeno nel diritto storico – necessariamente pecuniaria e venga pronunciata a favore dell’offenso, non ha grande importanza, e lo mostrerò tra poco".

E ainda:

"In effetti, nel periodo primitivo lo Stato è ancor troppo debole per assumersi il compito della repressione di tutti i reati, e lascia che, per alcuni, organo della repressione sia la gente offesa: ciò importa che ad essa sia fovuta la pena, così com’era essa che si soddisfaceva sul corpo del reo. Ne periodo storico, lo Stato – divenuto il dominatrore e il distruttore delle gentes – non assume sempre com suo l’interesse alla punizione del reo: e allora si limita, per mezzo del processo, a sorvegliare la via per cui si giunge all’irrogazione della pena, mentre, nell’ambito del diritto sostanziale, recepisce la consuetudine fissante il tasso di composizione. Ne segue che la pena, conforme a questa sua struttura privatistica, ha comune con il risarcimento l’atribuzione di una somma al danneggiato attore.


8. COMPARAÇÕES COM O SISTEMA NORTE-AMERICANO.

Outra reflexão que se faz necessária é, venia concessa, de que o caráter de desestímulo da indenização por danos morais do sistema normativo brasileiro não seria similar aos punitive damages do sistema norte-americano.

De lege ferenda, mesmo entendendo que sua aplicação no Brasil não seria possível, pelo menos com o atual sistema normativo, mas que por ser algo já há muito tempo utilizado lá, e ainda incipiente cá, entendemos que uma comparação é merecida, a fim de que lições possam ser tiradas e aprimoramentos sejam feitos em nosso sistema, para tanto vejamos como entendem os norte-americanos.

O instituto do punitive damages (ou exemplary damages) existente no sistema legal norte-americano, consiste em impor uma indenização alta para punir e dissuadir o transgressor da lei, conforme as palavras do Juiz Stevens da Suprema Corte dos Estados Unidos, na fundamentação de sua decisão por ocasião do julgamento do caso BMW x Gore [7], em que decidiu que o referido instituto viola o princípio do due process of law (presente na 14ª Emenda da Constituição americana e em nossa Constituição, no inciso LIV, do art. 5º):

"Punitive damages may properly be imposed to further a State''s legitimate interests in punishing unlawful conduct and deterring its repetition." (Indenização punitiva pode ser corretamente aplicada para promover o legítimo interesse do Estado em punir condutas ilegais e em prevenir sua repetição – versão livre dos autores).

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Ora, qual é a diferença entre a indenização com caráter de desestímulo, como querem alguns aplicar no Brasil, e o instituto dos punitive damages dos EUA?

E o Juiz Stevens continua sua fundamentação, demonstrando as razões de seu posicionamento:

Em nosso sistema federal, os Estados necessariamente têm a considerável flexibilidade em determinar o nível dos punitive damages que será permitido em diferentes classes de casos e em todo o caso particular. A maioria dos Estados que autorizam os exemplary damages fornecem ao júri latitude similar, requerendo somente que a indenização concedida seja razoavelmente necessária para vingar os interesses legítimos do Estado em punir e dissuadir. Somente quando uma concessão puder razoavelmente ser categorizada como excessiva em relação a estes interesses, entrará na zona da arbitrariedade que viola a cláusula do devido processo legal da décima quarta emenda. Por essa razão, a investigação federal de excessividade começa adequadamente, com a identificação se a concessão de uma indenização servirá aos propósitos dos interesses estatais. Nós focalizamos consequentemente nossa atenção primeiro no alcance dos legítimos interesses do Alabama em punir a BMW e em deter uma futura má conduta. (– versão livre dos autores (9) )

O Juiz Stevens pondera alguns indícios de razoabilidade ou não da concessão de uma indenização por danos morais:

a) Grau de censurabilidade da conduta:

Talvez o indício mais importante da razoabilidade da indenização por punitive damages seja o grau de censurabilidade da conduta do réu. Como a corte indicou quase 150 anos atrás, os exemplary damages impostos a um réu devem refletir "a enormidade de sua ofensa." Este princípio reflete o ponto de vista aceito de que alguns erros são mais censuráveis do que outros. Assim, nós dissemos que "os crimes não violentos são menos sérios do que os crimes marcados pela violência ou pela ameaça de violência." Similarmente, a "trapaça e o engano", são mais repreensíveis do que a negligência. A Suprema Corte de West Virgínia e os juízes desta Corte colocaram a ênfase especial no princípio que os punitive damages não podem ser "brutalmente desproporcionais à severidade da ofensa." Certamente, para Juiz Kennedy, a malícia intencional do réu foi o elemento decisivo em um "caso parecido e difícil". Certamente, a evidência de que um réu tivera repetidamente a conduta proibida ao saber ou ao suspeitar que era ilegal, forneceria a sustentação relevante para o argumento que seria preciso um remédio forte para curar o réu do desrespeito à lei – versão livre dos autores [10].

b) Proporção entre a indenização por danos materiais e a por danos morais

O segundo e, talvez o mais geralmente citado, indício de uma indenização desarrazoada ou excessiva por punitive damages seja sua proporção ao dano material causado ao autor. Veja TXO, 509 E.U., em 459; Haslip, 499 E.U., em 23. O princípio de que os exemplary damages devem manter "um relacionamento razoável " com os danos materiais tem um longo pedigree. Estudiosos identificaram um número de antigos statutes ingleses que autorizavam a concessão de indenizações múltiplas para males particulares. Uns 65 enactments diferentes durante o período entre 1275 e 1753 calculando em dobro, triplo, ou quadruplo a indenização - por punitive damages. Nossas decisões em Haslip e em TXO endossaram o proposição que uma comparação entre a indenização por danos materiais e a punitiva é significativa. Naturalmente, nós rejeitamos consistentemente a noção que a linha constitucional seja marcada por uma fórmula matemática simples, mesmo uma que compare os danos materiais e potenciais à indenização punitiva. Certamente, indenizações baixas por danos materiais podem corretamente suportar uma relação mais elevada do que indenizações altas por danos materiais, se, por exemplo, um ato particularmente intolerável resultar somente em um pequeno dano econômico.

Uma proporção mais elevada pode também ser justificada nos casos em que a lesão seja difícil de detectar ou o valor monetário do dano não econômico seja difícil de determinar. É apropriado, consequentemente, reiterar nossa rejeição a uma aproximação categórica. Mais uma vez, nós retornamos ao que dissemos em Haslip: `Nós não necessitamos, e certamente não podemos, traçar uma linha matemática perfeita entre o constitucionalmente aceitável e o constitucionalmente inaceitável que coubesse a cada caso. Nós podemos dizer, entretanto, que uma preocupação geral com a razoabilidade entre corretamente no cálculo constitucional.’ Na maioria dos casos, a proporção será entre um espectro constitucionalmente aceitável, e a remittitur (faculdade que cabe ao juiz de diminuir o valor de uma indenização excessivamente concedida pelo júri) não será justificada nesta proporção. Quando a proporção for a impressiva 500 para 1, entretanto, a indenização deverá certamente "levantar uma sobrancelha de suspeita judicial" – versão livre dos autores [11].

c) Sanções para ilícitos semelhantes

A comparação da indenização por punitive damages e as penalidades civis ou criminais que poderiam ser impostas para o ilícito compatível, fornece um terceiro indício de excessividade. Como Juiz O''Connor corretamente observou, uma corte de revisão determinada a verificar se uma indenização por punitive damages é excessiva, deveria "conceder acatamento ‘substancial’ aos julgamentos legislativos a respeito das sanções apropriados para a conduta em questão.

Em Haslip, 499 E.U., 23, a Corte considerou que embora a indenização exemplar – exemplary damages – fosse " muito mais excessiva que a multa que poderia ser aplicada" a prisão também era autorizada no contexto criminal. Neste caso a sanção econômica de U$2 milhões imposta à BMW é substancialmente maior do que a multa estatutária prevista para similar ofensa no Alabama e em outras partes.

A sanção imposta neste caso não pode ser baseada na fundamentação de que era necessário deter o ilícito futuro, sem considerar se com remédios menos drásticos poder-se-ia esperar conseguir esse objetivo.

O fato que uma penalidade multimilionária iniciou uma mudança na atitude, não esclarece a pergunta se uma medida menos drástica protegeria adequadamente os interesses dos consumidores do Alabama. Na ausência de antecedentes de desrespeito às exigências estatutárias conhecidas, não há nenhuma base para supor que, um sanção mais modesta não seria suficiente para motivar o pleno respeito à exigência de divulgação, imposta neste caso pela corte suprema do Alabama. – versão livre dos autores [12].

Do que se conclui que, se o intuito fosse punir o ofensor, ainda que sem previsão legal, qualquer condenação excessiva (como caráter de desestímulo) só poderia ser devida ao Estado, e não ao particular ofendido, pois só o Estado é legitimado para aplicar pena, portanto qualquer condenação pecuniária que pretendesse desestimular a reincidência da prática de danos morais só poderia ser devida ao próprio Estado.

E conclui o magistrado norte-americano:

Além disso, nós naturalmente aceitamos o ponto de vista da corte do Alabama de que o interesse do Estado em proteger seus cidadãos das práticas intoleráveis de comércio, justifica uma sanção adicional além à reparação dos danos materiais. Nós não podemos, entretanto, aceitar a conclusão da Corte Suprema do Alabama de que a conduta da BMW era suficientemente intolerável para justificar um sanção que fosse equivalente a uma penalidade criminal severa. (...)

O julgamento é invertido, e o caso adiado para procedimentos adicionais não incompatíveis com esta decisão. – versão livre dos autores [13].

Em vista disso, diante das várias razões acima, entendemos que o modo como se quer aplicar aqui o instituto dos punitive damages, presente no sistema norte-americano, é desregrado e incompatível com as atuais normas brasileiras, podendo levar a consequências desastrosas para o sistema jurídico.

O perigoso caminho do caráter punitivo do dano moral poderá levar a duas consequências de plano verificáveis, (i) a banalização do instituto do dano moral e; (ii) com o aumento da freqüência de indenizações altas, as empresas começarão a tomar providências para o caso de uma possível condenação, seja através da contratação de seguros como ocorre nos EUA ou, seja através de provisionamento no faturamento; cujos custos com toda convicção serão repassados aos consumidores.

A título de exemplo do que ocorre no EUA, em que o instituto dos punitive damages já vem sendo criticado em virtude de casos absurdos, vale citar dois casos famosos ocorridos por lá:

1) Stella Liebeck v. McDonalds

Neste caso, que ficou nacionalmente famoso, Stella Liebeck, uma mulher idosa, derramou café após ter colocado o copo entre suas pernas e tentar retirar a tampa plástica enquanto dirigia. Sofreu queimaduras de terceiro-grau em seus pés, virilha e nádegas. Sustentou que seus ferimentos deram-se por falha do McDonalds, porque serviram o café mais quente do que outros lugares. Um júri concedeu à Stella Liebeck U$2,9 milhões.

2) Diana Du Bois v. Edifício 53 East 75th Street

A autora residia em um apartamento alugado no quarto andar de um edifício em que sete unidades estavam sendo reformadas. A autora alegou que o réu (proprietário) fez com que tivesse a aflição emocional por ser incapaz de viver normalmente em sua própria casa. O réu argumentou que os problemas, tais como o ruído e a poeira, eram conseqüências inevitáveis da construção em outros apartamentos no edifício, que estavam sendo reformados. O réu ofereceu U$50.000 e a devolução do apartamento. A autora pediu ao júri U$930.000. O júri concedeu U$700.000, dos quais U$200.000 eram compensatórios e U$500.000 como punição ao réu.

Sobre os autores
Fernando Mil Homens Moreira

Advogado em Ribeirão Preto/SP, Pós-Graduado com Especialização em Processo Civil pela Università degli Studi di Milano, em Milão/Itália, tendo como orientador o Titular (Catedrático) da Cadeira de Processo Civil, o Prof. Dr. Giuseppe Tarzia

Atalá Correia

Advogado em São Paulo (SP). Mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco - Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Fernando Mil Homens; CORREIA, Atalá. A fixação do dano moral e a pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 484, 3 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5891. Acesso em: 23 dez. 2024.

Mais informações

Publicado anteriormente na Revista Forense, volume 365, pág. 367, jan/fev 2003.

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