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Causalidade e Relação no Direito:

Anotações sobre a Doutrina de Lourival Vilanova

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Agenda 14/07/2017 às 13:38

Lourival Vilanova foi um dos maiores juristas do Brasil. Natural do Estado de Pernambuco, este jurista foi um expert na teoria sobre a necessidade de aplicação da lógica como ferramenta indispensável à composição correta e eficiente de normas jurídicas.

Introdução.

Lourival Vilanova é dos principais juristas do Brasil. Infelizmente, grande parte dos juristas brasileiros desconhece a obra deste grande pernambucano. Seu principal objeto de estudo ao longo sua vida foi a teoria do direito e a lógica jurídica.

As suas obras influenciam, sobremaneira, a teoria do direito brasileiro, e em especial, o direito tributário. O tributarista Paulo de Barros Carvalho é um dos principais estudiosos de seus escritos, tendo incorporado muitos de seus conceitos, em obras conceituadas e basilares para o direito tributário, como 'teoria da norma tributária'.

Neste breve ensaio, trazemos ao estudiosos do direito, que transitam na rede mundial de computadores, uma resenha sobre aspectos da obra de Lourival Vilanova, na obra 'Causalidade e Relação no Direito, em especial, as temáticas: a) a relação jurídica no direito público; b) confluência de pontos de vistas acerca da relações jurídicas e, c) licitude e antijuridicidade, tratados nos capítulos IX, X e XI da referida obra.

Este estudo foi elaborado, para efeito de seminário, apresentado no Curso de Mestrado em Direito da Univeridade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Boa leitura!


1. RELAÇÃO NO DIREITO PÚBLICO

1.1. Problema insolúvel empiricamente

Vilanova ressalta que não é possível, sob o ponto de vista dogmático-normativo, próprio do conhecimento da Ciência do Direito, demarcar o limite histórico em que a comunidade nacional provê-se de órgãos, converte-se em Estado. Sem a norma, como esquema de interpretação, não importando qual fonte material venha a valer como fonte formal, nem a totalidade nacional, nem a minoria dirigente são sujeitos-de-direito para estabelecer, entre si, relação jurídica.

Para que se possa ter a nação-Estado, é indispensável que haja, pelo menos, um órgão naturalmente fazendo circunvegir, para ele só, todas as funções, em sentido técnico-jurídico. A institucionalização do Poder é sua qualificação normativa em órgão. Sem normas de organização, o Poder é difuso, desconcentrado, inespecífico ou, então, individualizado: é Poder não-jurídico, ou mera normalidade fática de dominação, ou Poder revestido por outras normas, pois onde se chega a interação social chega a normatividade.

1.2. Relação jurídica fundacional

Para Vilanova, a teria do contrato social não é uma reconstrução histórica de como se tenha formado o Estado. Já pressupõe, todavia, o direito. Sem direito vigente, desconcentrado em várias fontes materiais, em consonância com o pluralismo dos grupos em fase pré-estatal, descabe falar em contrato, pacto, acordo, como ato jurídico. Sem direito vigente, ainda que sem especificação de órgão para aplicá-lo, na sanção e na coação, inexistem sujeitos-de-direitos, ato jurídicos e relações jurídicas.

Para contratar, o povo, a nação, a maioria votante, o estrato dirigente, a chefatura minoritária, a soma dos grupos precisam da qualificação do ser sujeito-de-direito.

Vilanova destaca que a nação não é sujeito-de-direito. É um corpus histórico, projetando-se no futuro, com raízes no pretérito. É um processo que flui, interligando grupos, gerações, capas sociais, idéias e crenças. Não é o povo, ou massa de indivíduos, cuja comparência total num comício é fisicamente impossível: falta-lhe a boca, o órgão para pronunciar a decisão una e superior, que se imponha como maioria, ou como minoria (forma autoritária), já que o consenso unânime é inviável, ou pela forma de uma chefatura unipessoal.

1.3. Relações públicas e privadas

Termos-sujeitos das relações jurídicas podem ser pessoas individuais ou coletivas, privadas ou públicas, estas de direito interno ou de direito internacional. A publicização de uma relação não é determinada pelo titular da relação. Desta forma, a pessoa física pode ingressar em relação pubicística: no direito eleitoral ativo/passivo, no direito à tutela jurisdicional, com base em pretensão material de direito privado ou de direito público (ação popular).

O Estado e outros entes públicos não publicizam sempre a relação em que tomam parte. Nos atos jurídicos contratuais, desvestem-se de seu poder de império, de sua posição de supremacia, contraposta à relação de sujeição do particular, e colocam-se em relação horizontal, subordina-se à área privatística, como qualquer sujeito-de-direito, sem privilégios.

No Estado de Direito há relações de coordenação e de subordinação entre os órgãos do poder, e entre esses órgãos e os indivíduos, membros da comunidade jurídica e política. Órgãos de um só Estado personificam-se, compondo termos de relações jurídicas.

1.4. Estado, sujeito de relações

Aqui Vilanova assevera que histórica e sociologicamente o Estado provém de fatores diversos.  Gênese empírica não é única. Sob o ponto de vista sistemático, há Estado se uma coletividade estabiliza-se espacialmente e se provê de indivíduo-órgão para o exercício do Poder. O Estado como sujeito-de-direito é um feixe de relações. Não há o Estado, e, depois, as relações jurídicas. A hipóstase é processo linguístico: psicológica e gramaticalmente pensamos um ente e seus processos, um sujeito e seus acidentes predicamentais.

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Em algum ponto do tempo histórico, a primeira relação de dominação é fática (dominação mágica, militar, racial, econômica, religiosa). Depois, vem a norma que incide no suporte factual do mando/obediência, do imperativo/sujeição, e confere-lhe a eficácia que não tinham. É relação jurídica que implica sujeito-de-direito em face de sujeito-de-direito.

1.5. Relação jurídica inicial

Sem ao menos um órgão do poder, uma sociedade internamente polissegmentada não alcança a unidade de um poder de decisão superior, acima das particularidades grupais. A multiplicidade tende para a unidade não apenas por um fator naturalístico (raça, religião), mas enquanto tal fator sirva de substrato a uma norma de organização.

Para Vilanova, o fato fundamental tem sua contraparte na norma-origem (que se pode entender em sentido empírico, ou em sentido epistemológico, conforme a teoria kelseniana). O fato fundamental, o processo de dominação, origem da publicização estatal da sociedade, é uma relação fática de império. A relação fáctica pai/filho, dominador/dominado, grupo guerreiro vitorioso/ocupação do espaço, transforma-se em relação jurídica de parentesco, em relação titular de órgão/súdito, em relação jurídica pública de soberania territorial.

1.6. Órgão e representação

O Estado é uma personificação de uma coletividade nacional. O ser nacional importa numa certa homogeneidade cultural-histórica, para dizê-los numa síntese. Internamente, podem coexistir vários grupos nacionais, religiosos, regionais: o direito, a política, a religião mesma, são fatores de homogeneidade, ao lado de outros historicamente variáveis.

A personificação não coincide com a nação homogênea. Várias nações aglutinam-se e dão como suporte do Estado um substrato firme e pacífico, como é o caso suíço. Seja como for, a nação por si mesma, não é sujeito-de-direito. Começa a ser quando num ponto do tempo histórico um indivíduo ou uma minoria, se converte em poder de dominação.

Vale destacar que nenhum agente do poder, unipessoal ou pluripessoal, recebe de alguma norma de organização seu título, sua habilitação. Se o Estado começa a existir, emergindo de uma coletividade sem o monopólio do poder de dominação, sem, pois, um mínimo de direito público, ou de direito político, inexiste norma de habilitação. Nem com a teoria da representação, nem com a teoria dos órgãos conseguimos explicar a origem jurídica do Estado: ambas firmam-se no pressuposto do direito político, que ainda não existe.

1.7. Relações interorgânicas

Um povo ou nação é Estado através de seus órgãos. A existência de uma vontade nacional, pré-estatal, ou sobreestatal, ou paraestatal, não tem cabimento no interior do sistema de conhecimento jurídico-dogmático. Tem-no sob outros pontos de vista, que um positivismo metódico nem pode rechaçar, nem fundamentar. A vontade nacional, como vontade legislativa, administrativa ou jurisdicional, forma-se por intermédio dos órgãos cujo número, composição, funções, modos de investidura de seus titulares, inter-relações, são variáveis, de acordo com a morfologia do Estado.

Suprimindo-se os órgãos, suprime-se o Estado. O órgão, não um sujeito-de-direito, per se stante, em face do Estado. Se este legisla, governa, sentencia, os atos se efetivam através dos órgãos. Com a repartição de funções, instituição de órgãos específicos para funções específicas, cada órgão é um centro parcial de imputação, como o Estado é o centro total de imputação, de criação e de aplicação do direito.

1.8. Relações jurídicas internas

Vilanova destaca que os órgãos são internamente complexos, ou externamente complexos. O Executivo estrutura essa composição em graus de competência, que se distribuem em subórgão, ou órgãos de segundo grau, para não aludirmo aos órgãos secundários, meramente de execução material, das decisões provindas dos superiores. A hierarquia é essa série de graus superpostos no interior do mesmo órgão.

Há relações jurídicas onde se ponham central de imputação ou referência como sujeito-de-direito, onde se requeiram fatos jurídicos e, pois, normas jurídicas incidentes nesses fatos. Os sujeitos-de-direito são portadores de direitos subjetivos, em sentido estrito, e de poderes, faculdades, e de deveres, obrigações, de prestações a adimplir. Os sujeitos-de-direito, manifestando a sua vontade, azem com que as normas atribuam ao fato de sua vontade a constituição, modificação, desconstituição de relações.

1.9. Subjetivação a competência

Vilanova aduz que um órgão de Estado é uma porção constitucionalmente delimitada de competência. Há as normas atributivas, autorizativas, habilitantes, as que conferem poderes; e as normas que impõem deveres, prestações, ações e omissões. Há as normas, os suportes fáticos (declarações de vontade) e os efeitos – os atos legislativos, administrativos e judiciais, imputados à personalidade total do Estado. A relação-de-imputação é uma relação de causalidade jurídica: sem as normas, os fatos não trariam estes ou aqueles efeitos.

O fato capital é que o Estado forma sua vontade mediante o órgão. Que cada órgão é um centro parcial de imputação e, por isso, nas relações jurídicas comporta-se como sujeito-de-direito, parcelamento da subjetividade total do Estado. Ser sujeito é ser um ponto de convergência de uma pluralidade de normas jurídicas. Num estado federal vemos como coexistem o sujeito-união federal, os sujeitos autônomos (Estados-membros e Municípios), sem falar no Distrito Federal e nos Territórios federais.

1.10. Personificação do órgão

As relações jurídicas decorrentes, não já entre súditos e monarca, mas as relações jurídicas internas, no interior do órgão, ainda que decorrentes de fatos jurídicos que sofrem incidência de normas internas, são relações jurídicas. Não se dá, digamos, a confusão ou convergência, no mesmo sujeito-de-direito, de posições ativas e passivas. O mesmo exerce funções diferentes, que não chegam a se sujetivizar, a ser tornar centros de imputação.

A divisão de poderes importa numa repartição de funções a órgãos diferentes. Os órgãos diferentes. Os órgãos se tornam, em centros parciais de imputação, pontos de referência de um complexo de normas. Os órgãos carecem de personalidade própria: a personalidade total do Estado sobrepõe-se-lhes.

1.11. O órgão como sujeito

Não existe o Estado como sujeito-de-direito, e ante si o órgão, ou os órgãos, como autônomos sujeitos-de-direito. Sem órgão, não sobre-resta o Estado; sem Estado, o órgão não é órgão, sim sujeito-de-direito individual ou colegiado, ou órgão de pessoa não-pública, ou órgão de pessoa pública não-estatal.

O Estado não preexiste nem sobrevive ao órgão. Em fases de desconcentração, há órgãos judicantes, administrativos, dispersos, infixos, sem um centro comum de imputação. Com a estatização da nação, confluem esses órgãos para um ponto, tornando-se partes do ente central. Essa relação da parte com a totalidade, em direito público, é relação orgânica, relação de órgão para com o todo. Vê-se, a palavra “órgão” insere-se num contexto semântico que é o do sistema de normas.

Num Estado de órgão supremo único, unipessoal, concentrador de funções, não se oferece o fato objetivo que provoca o problema da personalidade do órgão, em face da personalidade do Estado. Mas, repartidas as funções entre órgãos diferenciados, surge o problema. Tais órgãos têm uma individualidade, distinguem-se uns dos outros, entram em relações recíprocas, relações de cooperação e relações de conflito: tomam posições em relações jurídicas, ora como titulares ativos, ora como titulares passivos.

1.12. Órgão e relação processual

Sem a tese de que cada órgão imediato ou constitucional, como repartição da competência, atua como um centro parcial de imputação, e, como tal, na qualidade de sujeito-de-direito, não podemos explicar a relação do órgão em posição processual ativa ou passiva. É um dado objetivo, do direito positivo, que o órgão estatal ingressa em relações processuais, ora no exercício de direitos públicos subjetivos, ora no exercício de direitos subjetivos privados.

O órgão jurisdicional é um complexo de facultamentos, de direitos, de deveres, de obrigações: é um plexo de competência. Apresenta-se, nas relações jurídico-processuais, como um sujeito-de-direito. A ele acodem tanto os indivíduos e coletividades personificadas de direito privado quanto os entes de direito público.

Recorrendo ao Judiciário, quando obstado em sua executoriedade, em órgão administrativo leva sua pretensão substantiva, que não se confunde com sua pretensão processual: esta tem-na sempre, no uso de seu direito subjetivo público processual; daquela, pode carecer, com a sentença denegatória de seu pedido.

1.13. Relação de imputação

Distingue-se as relações jurídicas no interior dos órgãos e relações dos órgãos entre si. Num órgão complexo há relações, ainda que regidas por normas internas. Cada órgão é sujeito-de-direito, é um centro unitário de imputação, de atribuição de direitos e deveres.

Recusa-se ao órgão a personalidade. Tem-se a personalidade como exclusiva do Estado. A personificação total, sim. E soberana: o que não impede a repartição da subjetividade entre os órgãos. O que é a unidade da personalidade total do Estado, sob o ponto de vista normativo, é a soberania exclusiva, a supremacia do Estado em face de todos os grupos e em face dos seus órgãos.

1.14. Outra relação

Vilanova ensina que além das relações que se verificam no interior do um órgão complexo, e das relações de órgão para órgão, temos a destacar as relações entre titular de órgão e órgão.sempre claro e incisivo Ugo Rocco observa que entre juiz e cargo há relações administrativas (seleção, nomeação, posse, deveres e direitos funcionais da qualificação de membro do Poder Judiciário), que não se confundem com as funções do órgão judicante. Algumas normas estão, possivelmente, na Constituição; outras, em lei ordinária; outras ainda, em Regimento Interno do órgão colegial supremo (Tribunal): normas que definem relações jurídico-administrativas, que não se confundem com as normas de organização, ou normas instituintes do órgão, como porção constitucional de competência.

Por isso, sem os titulares, os órgãos, como parcelamentos abstratos de atribuições (poderes/deveres), não manifestam vontade juridicamente imputável ao Estado: é a vontade concreta do agente ou titular que vale juridicamente como vontade do Estado. O Estado não atua por meio de órgão, como seu representante é o Estado mesmo que legisla, administra e sentencia através de órgãos, cujo complexo é o Estado mesmo.

Sobre o autor
Carlos Sérgio Gurgel da Silva

Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pena Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em Direitos Fundamentais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte (FESMP/RN), Professor Adjunto IV do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Advogado especializado em Direito Ambiental, Presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/RN (2022-2024), Geógrafo, Conselheiro Seccional da OAB/RN (2022-2024), Conselheiro Titular no Conselho da Cidade de Natal (CONCIDADE).

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