III. O Modelo Mecanicista e o Modelo Normativo de Constituição (Troper)
1. Intróito
Geralmente para classificar uma constituição é necessário identificar quais órgãos e como estes exercem as funções jurídicas do Estado, dentre estas funções são tidas como as mais importantes a executiva e a legislativa (a jurisdicional seria uma eventualidade).
Subentende-se deste modo, que estas autoridades se comportariam de acordo com os preceitos constitucionais, os quais são tidos como obrigatórios. A idéia não agrada, considerada pelo autor como uma "proposição analítica", pois, no entendimento deste, a constituição não passaria de um gênero de norma, e uma norma não obrigaria. Seria uma "contradicto in adjecto". Concluído que se há uma constituição, esta sim seria obrigatória de acordo com as intenções de seus autores, e corretamente aplicada devido à repartição dos poderes.
Há, no entanto, concepção diferente de constituição onde a preocupação primordial não é que os governantes se submetam apenas as obrigações imposta pela constituição, mas sim que a organização do sistema dite os comportamentos que os governantes devam tomar.
São modos e maneiras de escrever, interpretar e analisar a constituição. Ciente que estas apesar de diferentes concepções podem conviver simultaneamente, evoluir uma sob a lógica da outra, preparar a chegada da outra. Pois as concepções objetivam primordialmente a interpretação dos comportamentos dos constituintes e dos poderes públicos constitucionais.
Segue-se assim, a descrição de cada uma destas concepções e em seguida tentar-se-á questionar se é possível realmente uma concepção transformar-se em outra.
III. I Modelo Mecanicista de Constituição
1. A busca de garantias internas
O Modelo Mecanicista como modelo de eficácia (Engenharia Constitucional).
Esta concepção (Séc. XVIII) tinha como ideal que a constituição fosse entendida como um mecanismo, o principal representante desta foi Montesquieu. O autor de "L’ espirit des lois" distingue as três formas de governo: a monarquia, o despotismo e a república, esta podendo ser aristocrática ou democrática. Com isso, Montesquieu de início procurava distinguir em cada forma de governo a natureza (o que faz ser tal) e o princípio ou motor (o que faz agir).
Assim o princípio para a monarquia era o horror, para a república a virtude e para o despotismo o temor. Porém, Montesquieu considerava também o elemento objeto. Ou seja, cada forma de governo em sua particularidade tinha seus objetos em razão de suas próprias naturezas. Logo, para Montesquieu existia sempre em cada forma de governo uma relação fixa entre a natureza e princípio, por uma parte e o objeto por outra. O que inversamente também era possível, questionar ao objeto sua natureza e princípios, concluindo como se tratava a liberdade política de cada forma.
Como exemplo então é citado a Constituição da Inglaterra a qual tem como objeto a ‘liberdade’, concluindo Montesquieu o caráter misto desta por encontrar-se o elemento monárquico, aristocrático e democrático. Convivendo estes cada um com seus interesses sob o sistema de "freios e contrapesos", os quais submetidos pela lei, a qual possui a definição de legislação moderada.
A relação entre a liberdade política e a constituição não porque esta prescreve, ou seja, esta moderação não esta prescrita na lei, este são resultados de uma distribuição de poderes, que fazem as autoridades constitucionais respeitarem cada interesse destes entes, não produzindo mais que leis moderadas.
Estas idéias não são próprias de Montesquieu, esta vem como uma definição de constituição introduzida no artigo 16 da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, que afirma: "Toda sociedade que a garantia dos direitos não está assegurada nem a separação dos poderes determinada, não há em absoluto constituição".
No entendimento de Montesquieu, não adianta apenas uma constituição para se ter uma liberdade política, é necessária a separação de poderes, ou melhor, uma repartição dos poderes, onde cada um atuaria dentro de suas competências, sem invadirem as do outro. Seria uma incoerência, nos dizeres de Montesquieu, uma tirania, aquele que elabora determinada norma também aplicá-la.
Além da repartição dos poderes a concepção mecanicista defende ainda dois quesitos, os quais seria uma legislação moderada e uma constituição inviolável:
a)Legislação Moderada - esta preserva a liberdade civil, a autonomia dos indivíduos dentro dos limites da lei. Esta é conferida ao Legislativo, que com autoridade mais complexa procurará equilibrar-se com os grupos sociais, os quais estão representados.
b)Constituição Inviolável - esta é inviolável não pelos seus controles e sanções, mas sim pela divisão de competências. Torna-se necessário repetir que um poder não pode invadir a esfera do outro. Esta possui um controle interno de constituição.
A idéia da Constituição Inviolável contraria totalmente a idéia da de Sieyes em 1795, que propunha impedir uma violação da constituição através de um controle por um Jurado Constitucional. A idéia foi totalmente repelida sob o argumento que a divisão do poder legislativo por si já era suficiente.
A idéia dos constituintes do século XVIII de construir uma constituição inviolável e de liberdade política e legislação moderada, em tese era louvável, porém, nada prática e eficaz como uma máquina de um engenheiro.
2. Método de análise.
A análise a ser realizada diante de uma concepção mecanicista consiste numa maior complexidade, como:
- O ponto de vista da redação da constituição;
- A organização geral do poder;
- A divisão de competências;
- Condutas prováveis;
- O que motivou tal conduta?
Troper afirmar que a Concepção Mecanicista conduz a investigar quais são as "constricciones [12]" – e especialmente as "constricciones" jurídicas – que pesam sobre os atores. Exemplifica o mesmo, através da Monarquia Parlamentar Francesa de 1814, a qual submetia os ministros a responsabilidade penal e não conferia as câmaras o direito a derrubar o governo:
"Sem dúvida, ameaçando os ministros com recusa o voto do pressuposto, a câmara de representantes consegue rapidamente a obter em sua dimensão, bem sua destituição pelo rei. É claro, em efeito, que um governo privado de meios financeiros não pode manter-se no poder. Quando a câmara provocar pela primeira vez a anulação/revogação de ministros desta forma, certos atores, cuja orientação procedia da concepção normativa, afirmaram que esta prática era contrária ao espírito da ‘carta’, posto que o poder de votar o pressuposto não havia sido concedido as câmaras para permitir pressionar o governo. A câmara de representantes havia cometido, pois um verdadeiro desvio de procedimento" [13].
Assim, a responsabilidade ministerial era tida não como uma questão de fato e sim como resultado de uma relação de forças. Isto ocorre não voluntariamente haja vista a ‘carta’ não dar a câmara o direito de derrubar os ministros, ocorrendo assim um desvirtuamento da concepção mecanicista que foi conduzida a substituir uma análise em fins de competências jurídicas por uma análise em fim de poderes.
III. II. Modelo Normativo de Constituição
1. Como modelo de eficácia.
Esta Concepção tem como princípio básico a obrigatoriedade do texto constitucional, nesta há possibilidade de controles destinados a verificar as violações e sancioná-las.
Há pontos que convergem com a concepção mecanicista, como as disposições dirigidas a conferir competências, no entanto diferente do funcionamento do resultado das "constricciones" a concepção normativa tem seu funcionamento através da sujeição a uma obrigação.
Algumas dificuldades se fazem notar neste tipo de concepção, a qual no papel é perfeita, porém seu funcionamento apresenta certas dificuldades. Um exemplo a citar é a ampla discricionariedade dada pela constituição aos poderes constituídos, ou seja, sem violar a constituição estes recebem no exercício de suas competências um grau considerável de poder de decisão.
Apesar de neste tipo de concepção existir controle jurisdicional, o qual também é constituído, por mais que as obrigações constitucionais sejam claras, sempre haverá margens para diferentes interpretações. Relevando-se que há situações que não dão liberdade para interpretações diversas, como por exemplo, a declaração de guerra e do Estado de Exceção.
Diante destas colocações, torna-se impraticável que a concepção normativa tenha sua eficácia baseada apenas no caráter obrigatório e da existência de sanções, mas também a necessidade da boa-fé e da obrigação moral das autoridades constituídas e dos controladores.
Porém, a principal dificuldade desta concepção é a ausência de uma norma que seja superior à constituição para dirimir eventuais dissonâncias entre esta e a conduta dos poderes públicos constituídos. Concluindo, mesmo que óbvio em primeiro momento, que se tal conduta contraria a constituição, deve ser anulada. Logo não é a supremacia da constituição que conduz o controle, mas o controle é quem cria a supremacia da constituição.
2. Método de análise e de interpretação.
Como se trata de uma norma pode ser utilizado o método da dogmática jurídica com intuito de saber como o modelo funciona. Surge então o questionamento de qual é a conduta que, segundo a constituição, foi motivada? Esta conduta é lícita? Estas questões não podem ser respondidas sob o ponto de vista descritivo. Porém existindo uma jurisdição competente para julgar/questionar tais condutas, o resultado destas poderá utilizar-se do ponto de vista descritivo.
Entraríamos num ciclo se questionássemos se a decisão daquele que julgou tal conduta anteriormente é lícita. Justamente por não termos uma segunda instância constitucional jurisdicional competente para examinar as decisões da primeira.
Resta esta função para os dogmáticos que através de intercâmbio de argumentos de ordem ontológica e moral qualifiquem tal conduta [14]. Os argumentos de ordem ontológica, comumente tomados consideram a natureza do regime político em questão, haja vista poder-se concluir que uma constituição em determinada época não é mais que a realização da essência de um regime [15].
Questionamentos então surgem, como por exemplo, do porque respeitar a constituição, sendo respondido que esta deve ser respeitada por suas qualidades de ter sido adaptada de forma democrática, é democrática em suas estruturas [16], a qual cria a estabilidade dos poderes ou garante os direitos fundamentais.
De qualquer modo, não há como negar a existência dos dois perfis das concepções, existindo momentos que com objetivo da eficácia, os modelos e métodos podem se confundirem não sendo improvável que uma seja interpretada pelos métodos da outra.
III. III. De Um Modelo A Outro
1. Da mecânica à norma.
É notória a inclinação de uma concepção a outra. Um exemplo a ser citado ocorre na Revolução Francesa, onde era nítida a tendência de instituições quererem efetivar um controle de constitucionalidade. O mais celebre segundo Troper o Jurado Constitucional de Sieyes.
Assim um outro exemplo de uma concepção mecanicista que iniciou a efetivar um controle de constitucionalidade, foi o Tribunal de Casación, instituído pela Constituição de 1791. O raciocínio foi de que se já ocorria um controle pelos juristas de disposições normativas hierarquicamente inferiores, e estas eram originadas da lei maior, esta então poderiam passar por um controle. No vocabulário de Searle, se podia dizer que a constituição é um conjunto de regras constitutivas, porém que são aplicadas como regras regulativas [17].
Logicamente que houve resistência à idéia de um controle externo nas concepções mecanicistas, sob o argumento de que se há necessidade de um controle externo por um jurado, este também necessitaria ser controlado por ser passível dos mesmos abusos dos outros órgãos constituídos, e como não era possível um guardião de um guardião então era melhor destituir estas instituições.
Sendo ainda salientável lembrar que ao início da Revolução Francesa, a função do executivo era praticamente decorativa, sendo totalmente subordinado ao legislativo, apenas exercendo a aplicação mecânica das leis sem emissão de vontade.
O que vem a ser mudado no final do período revolucionário, onde o executivo começa adquirir o poder de criar regras para complementar as leis. Isto é aumentado quando executivo começa ter apoio e delegações da maioria parlamentar. Passando então a relação entre o executivo e legislativo ser um troca de vontades. (interesses)
A partir então deste momento onde o executivo passa a ter maior autonomia quanto à elaboração das normas e sua subordinação a lei superior, o controle da constituição inicia ter maior justificação.
Kelsen quanto ao controle de constitucionalidade das leis, afirmava que: "o princípio de constitucionalidade é idêntico ao princípio de legalidade e, da mesma forma que o regramento é execução da lei, a lei é a execução da constituição".
Conclui-se que como a concepção mecanicista há influenciado a concepção normativa, e esta também influenciou a concepção mecanicista.
2. A volta da concepção mecanicista.
A Concepção Mecanicista mais eficaz do ponto de vista prescritivo – Como a concepção normativa havia fracassado devidas suas insuficiências no campo da eficácia, a concepção mecanicista superou-a neste aspecto, pois além de suas intenções esta era efetiva, diante disso ver-se duas situações:
i-O resultado dos fracassos da concepção normativa - os exemplos clássicos se manifestam na Constituição Francesa de 1958 e 1946, da IIIª e IVª República, pois a constituição permitia a derrubada dos ministérios, pelo parlamento em discussão de leis, entre o executivo e o legislativo, e aqueles viam seus programas de governo rechaçados, estas discussões constantes tornaram um sistema sem eficácia;
ii-Novamente o questionamento das interpretações e juízos de valor dados pelos tribunais constitucionais, o qual não era unanimente admitido. Assim se fazia necessário um argumento mais forte para manutenção dos tribunais, sendo o argumento mais considerado ainda hoje o que o Tribunal Constitucional é um Contrapoder, com encargo de impedir que a maioria desonesta despótica oprima a minoria. Troper afirmar que: ‘de garantia externa que era segundo a concepção normativa, o tribunal se transforma na garantia interna de acordo com a concepção mecanicista’.
3. Como métodos de análises.
Apesar de numerosos estudos analisarem os comportamentos dos poderes políticos, concentrar-se-á naquelas que se limita a Teoria do Direito. Estes métodos se dão através da consciência e existência da norma, em destaque das disposições constitucionais.
A situação é quem irá determinar de que maneira irá se decidir ou interpretar as disposições constitucionais e como farão uso dos poderes discricionários, levando-se em consideração como agirão os outros atores diante de vossas competências.
Ver-se assim duas formas de análise. A primeira preocupa-se com a explicação, aplicação e funcionamento das constituições para compreender os comportamentos dos atores como produto das contrições/práticas de estratégias jurídicas. A outra análise dar-se em cima dos discursos, definições e conceitos sobre a constituição.
Um bom exemplo a ser analisado é a idéia dos Tribunais Constitucionais e as teses do Contrapoder. Esta não pode se desvincular do ideal de democracia, apesar de utópico. Assim Michel Troper propõe três definições de democracia:
iii-Afirmar que a democracia é somente o poder do povo de impor sua vontade em última instância, por meio do exercício do poder constituinte. O povo segue sendo soberano se está em situação de impor-se as decisões de um tribunal constitucional adotando emendas à constituição;
iv-Afirmar que a democracia é o poder do povo que exerce por meio de representantes, mas que estes representantes não são necessariamente eleitos, de sorte que o Tribunal Constitucional deve ser considerado como um representante ao lado do parlamento;
v-Afirmar que a democracia não é o poder do povo, senão império da lei e a garantia dos direitos fundamentais. [18]