8 A posição do STF acerca da colisão de direitos fundamentais
Considera-se existir uma colisão de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte de um determinado titular confronta com o exercício de outro direito constitucionalmente protegido na esfera subjetiva de outro titular. Oportuno ressaltar que neste caso não se está diante de um cruzamento ou acumulação de diretos (como na concorrência de direitos), mas perante um “choque,” um autêntico conflito de direitos. Daí pode ocorrer colisão de direitos entre vários titulares de direitos fundamentais e, ainda, colisão entre direitos fundamentais e bens jurídicos da comunidade e do Estado.
Segundo a jurisprudência do STF, “as restrições à liberdade de expressão decorreriam da colisão com outros direitos fundamentais previstos no texto constitucional, dos quais seriam exemplos a proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem de terceiros (CF, art. 5º, X). Porém, ainda que fosse possível a relativização de um princípio em certos contextos, seria forçoso reconhecer a prevalência da liberdade de expressão quando em confronto com outros valores constitucionais, raciocínio que encontraria diversos e cumulativos fundamentos. Assim, a referida liberdade seria uma garantia preferencial em razão da estreita relação com outros princípios e valores constitucionais fundantes, como a democracia, a dignidade da pessoa humana e a igualdade. Nesse sentido, o livre desenvolvimento da personalidade, por exemplo, um dos alicerces de vida digna, demandaria a existência de um mercado livre de ideias, onde os indivíduos formariam as próprias cosmovisões. Outrossim, sob o prisma do princípio democrático, a liberdade de expressão impediria que o exercício do poder político pudesse afastar certos temas da arena pública de debates, na medida em que o funcionamento e a preservação do regime democrático pressuporia alto grau de proteção aos juízos, opiniões e críticas, sem os quais não se poderia falar em verdadeira democracia.” RE 685493/SP rel. Min. Marco Aurélio, 20.11.2014. (RE-685493) STF/Informativo 768.
Sobre a colisão de direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal julgando reclamação, em processo de extradição, no caso envolvendo a Cantora mexicana Gloria Trevi, deferiu a realização do exame de DNA com a utilização do material biológico da placenta retirada da extraditanda. Fazendo contraposição dos valores constitucionais contrapostos, no caso em julgamento, o direito à intimidade e à vida privada da extraditanda, e o direito à honra e à imagem dos servidores e da Polícia Federal como instituição - atingidos pela declaração de a extraditanda haver sido vítima de estupro carcerário. O Tribunal afirmou a prevalência do esclarecimento da verdade quanto à participação dos policiais federais na alegada violência sexual, levando em conta, ainda, que o exame de DNA acontecerá sem invasão da integridade física da extraditanda ou de seu filho.
Ainda, sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do pedido de medida cautelar em petição (PET-2702), analisando a aparente colisão entre direitos fundamentais, no caso em exame, o direito à liberdade de informação e o direito à intimidade da pessoa, que envolvia interceptação telefônica não autorizada, em violação à garantia constitucional ao sigilo das comunicações (CF, art. 5º, XII). O Tribunal, por maioria, referendou decisão proferida pelo Min. Sepúlveda Pertence, relator, analisando, no ponto, a aparente colisão entre direitos fundamentais, quais sejam, o direito à liberdade de informação e o direito à intimidade da pessoa, ressaltou, na espécie, a relevante circunstância de que as gravações em causa originaram-se de interceptação telefônica não autorizada, em violação à garantia constitucional ao sigilo das comunicações (CF, art. 5º, XII). Considerou-se, ademais, militar em favor do requerido, e não da empresa jornalística, o perigo da irreversibilidade do provimento antecipado. Vencido em parte o Min. Marco Aurélio que, emprestando maior relevância ao art. 220 da CF, autorizava a divulgação do material existente, a título de informação. Precedente citado: Pet (QO) 2.541-RS (DJU de14.6.2002). Pet 2.702-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence, 18.9.2002. ((PET-2702).
Para Canotilho as normas dos direitos fundamentais são entidades como exigências ou imperativos de otimização que devem ser realizadas, na melhor medida possível, de acordo com o contexto jurídico e respectiva situação fática. Não existe, porém, um padrão de solução de conflitos de direitos válidos em termos gerais e abstrato.
Portanto, não há na doutrina nem, tampouco, na jurisprudência uma sistematização que possibilite solucionar as demandas envolvendo direitos fundamentais conflitantes. Dessa maneira, deve o operador do direito aplicar, no caso concreto, a harmonização e o equilíbrio possível entre direitos colidentes.
Por fim, vale ressaltar que pode ocorrer apenas conflito aparente, e não colisão real entre direitos fundamentais, conforme foi destacado pelo relator, Min. Marco Aurélio, no julgamento da ADPF 54:
O Plenário, por maioria, julgou procedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS, a fim de declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, I e II, do CP. Prevaleceu o voto do Min. Marco Aurélio, relator. De início, reputou imprescindível delimitar o objeto sob exame. Realçou que o pleito da requerente seria o reconhecimento do direito da gestante de submeter-se a antecipação terapêutica de parto na hipótese de gravidez de feto anencéfalo, previamente diagnosticada por profissional habilitado, sem estar compelida a apresentar autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão do Estado. Destacou a alusão realizada pela própria arguente ao fato de não se postular a proclamação de inconstitucionalidade abstrata dos tipos penais em comento, o que os retiraria do sistema jurídico. Assim, o pleito colimaria tão somente que os referidos enunciados fossem interpretados conforme a Constituição. Dessa maneira, exprimiu que se mostraria despropositado veicular que o Supremo examinaria a descriminalização do aborto, especialmente porque existiria distinção entre aborto e antecipação terapêutica de parto. Nesse contexto, afastou as expressões “aborto eugênico”, “eugenésico” ou “antecipação eugênica da gestação”, em razão do indiscutível viés ideológico e político impregnado na palavra eugenia. Na espécie, aduziu inescapável o confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os de parte da sociedade que desejasse proteger todos os que a integrariam, independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. Sublinhou que o tema envolveria a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitossexuais e reprodutivos das mulheres. No ponto, relembrou que não haveria colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente. Versou que o Supremo fora instado a se manifestar sobre o tema no HC 84025/RJ (DJU de 25.6.2004), entretanto, a Corte decidira pela prejudicialidade do writ em virtude de o parto e o falecimento do anencéfalo terem ocorrido antes do julgamento. Ressurtiu que a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo não se coadunaria com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantiriam o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. ADPF 54/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 11 e 12.4.2012.(ADPF-54) STF/Informativo 661.
Conclusões
O Constituinte brasileiro de 1988 atribuiu, de forma expressa, força jurídica especial às normas de direitos fundamentais (CF., art. 5º, § 1º), de modo que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Observou-se que a executoriedade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais faz com que estas sejam diretamente aplicadas, sem que seja necessário adotar, previamente, medidas legislativas ou administrativas de natureza regulamentar.
Verificou-se, ainda, que o Constituinte de 1988 cuidou de dotar também os direitos fundamentais com a proteção da imutabilidade das cláusulas pétreas.
O exercício dos direitos fundamentais encontra limites na própria Constituição, é tida neste caso por restrição constitucional, bem como pode a Constituição autorizar a lei a restringir esse âmbito de proteção, a chamada reserva de lei restritiva, há também os limites constitucionais não escritos.
As normas consagradoras de direitos fundamentais não são apenas o conjunto de normas e princípios formalmente positivados na Constituição, podem ser encontradas, por exemplo, nas leis ordinárias e nas convenções internacionais ou mesmo nos princípios políticos, econômicos e sociais que servem de base para o sistema normativo constitucional.
Constatou-se que sem um controle efetivo da obra do legislador infraconstitucional, ou mesmo do constituinte derivado, estariam as normas de direitos fundamentais vulneráveis a alterações inoportunas e casuísticas gerando, por consequência, instabilidade em todo ordenamento constitucional.
Finalmente, pode-se afirmar que a defesa dos direitos fundamentais através da fiscalização de constitucionalidade das leis e atos normativos implica na defesa da própria Constituição. Dessa maneira, o controle de constitucionalidade está diretamente relacionado à supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, bem como na proteção dos direitos fundamentais.
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Nota
1MIRANDA , Jorge. Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, Direitos Fundamentais, p. 89.