Conforme mudam as relações sociais, as normas jurídicas devem se coadunar com a nova realidade vigente, ou o intérprete deve realizar a hermenêutica e aplicar a norma conforme o atual paradigma social.
O Direito do trabalho também sofreu várias mudanças nas últimas décadas e recentemente, com o advento do aplicativo da Uber, as relações trabalhistas sofreram uma mudança significativa, que vem sendo objeto de análise pelo Poder Judiciário.
O centro da discussão é definir se a relação entre a Uber e o motorista é uma relação de emprego ou uma relação de trabalho.
Primeiramente, é importante salientar que relação de emprego e relação de trabalho são institutos distintos, uma vez que a relação de trabalho seria o gênero, enquanto a relação de emprego seria uma das espécies da relação de trabalho, junto ao trabalho voluntário, trabalho autônomo, trabalho avulso etc.
Maurício Godinho Delgado ensina que:
“A primeira expressão tem caráter genérico: refere-se a todas as relações jurídicas caracterizadas por terem sua prestação essencial centrada em uma obrigação de fazer consubstanciada em labor humano. Refere-se, pois, a toda modalidade de contratação de trabalho humano. A expressão relação de trabalho englobaria, desse modo, a relação de emprego, a relação de trabalho autônomo, a relação de trabalho eventual, de trabalho avulso e outras modalidades de pactuação de prestação de labor (como trabalho de estágio, etc.). Traduz, portanto, o gênero a que se acomodam todas as formas de pactuação de prestação de trabalho existentes no mundo jurídico atual. Evidentemente que a palavra trabalho, embora ampla, tem uma inquestionável delimitação: refere-se a dispêndio de energia pelo ser humano, objetivando resultado útil (e não dispêndio de energia por seres irracionais ou pessoa jurídica). Trabalho é atividade inerente à pessoa humana, compondo o conteúdo físico e psíquico dos integrantes da humanidade. É, em síntese, o conjunto de atividades, produtivas ou criativas que o homem exerce para atingir determinado fim. A relação de emprego, do ponto de vista técnico-jurídico, é apenas uma das modalidades específicas da relação de trabalho juridicamente configuradas. Corresponde a um tipo legal próprio e específico, inconfundível com as demais modalidades da relação de trabalho ora vigorantes.”
(Curso de Direito do Trabalho, Mauricio Godinho Delgado, 7ª Edição, Editora LTR, página 285 e 286).
Uma relação empregatícia será configurada a partir da presença dos 05 elementos fático-jurídicos do vínculo de emprego presentes nos artigo 2º e 3º da Consolidação das Leis Trabalhistas, além de serem muito bem explicados e fundamentados pela doutrina. A partir do conceito de empregado,"toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário" (art. 3º da CLT), é possível analisar os elementos do vínculo.
Esses elementos são:
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Trabalho prestado por pessoa física
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Pessoalidade
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Onerosidade
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Não eventualidade
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Subordinação
É fundamental salientar que a falta de um desses elementos no caso concreto, a relação de emprego não está configurada, ou seja, ela não existirá.
A essência do vínculo de emprego se reflete na existência de um estado de dependência jurídica em que permanece o trabalhador, do qual decorrem o poder de comando e direção do empregador e a consequente obrigação do empregado de submeter-se às ordens recebidas, em outras palavras, o trabalhador recebe ordens e está sujeito ao poder de comando e de fiscalização do empregador.
No caso da Uber, é o motorista que contrata a empresa para prestar seus serviços obedecendo algumas exigências da empresa que remunera o trabalhador pelas corridas realizadas, ou seja, há o elemento da onerosidade nesta relação. O próprio motorista presta o serviço que caracteriza o elemento do trabalho prestado por pessoa física, todavia ele poderá prestar serviço de forma habitual ou eventual, uma vez que a empresa não obriga os motoristas à realização das corridas em determinados horários e muito menos obrigam ao cumprimento de uma determinada jornada de trabalho. Em outras palavras, mesmo que exista habitualidade ou não eventualidade nos serviços realizados pelos motoristas, o elemento subordinação está ausente, pois não há controle de jornada e muito menos o empregado se submete ao poder de direção e fiscalizatório da empresa.
Maurício Godinho Delgado relata que:
“Não obstante a relação de emprego resulte da síntese indissolúvel dos cinco elementos fático-jurídicos que a compõem, será a subordinação, entre todos esses elementos, o que ganha maior proeminência na conformação do tipo legal da relação empregatícia”. (Curso de Direito do Trabalho, Mauricio Godinho Delgado, 7ª edição, LTR, pág. 301).
De acordo com a explicação de Sérgio Pinto Martins, “Encontra-se também a origem da palavra subordinação em sub (baixo) ordine (ordens), que quer dizer estar de baixo de ordens, estar sob as ordens de outrem” (Comentários à CLT, Sérgio Pinto Martins, 15ª edição, Editora Atlas, pág. 15.), tal fato não se configura no caso concreto que envolve o aplicativo e os motoristas.
Sérgio Pinto Martins complementa dizendo que: “Emprega o art. 3º da CLT a denominação dependência. Este termo não é adequado, pois o filho pode ser dependente do pai, mas não é a ele subordinado. A denominação mais correta é, portanto, subordinação. É também a palavra mais aceita na doutrina e na jurisprudência”. (Comentários à CLT, Sérgio Pinto Martins, 15ª edição, Editora Atlas, pág. 15).
E, de acordo com o entendimento de Amauri Mascaro Nascimento:
“Para uns a subordinação é hierárquica, significando a aceitação, no próprio trabalho, das ordens de um superior; para outros a subordinação é econômica, entendendo-se aquela que põe o trabalhador numa sujeição ou estado de dependência econômica; para outros a subordinação é jurídica, entendendo-se como tal um estado de dependência real, produzido por um direito, o direito do empregador de comandar, de dar ordens, donde a obrigação correspondente para o empregado de se submeter a essas ordens; para outros a subordinação é técnica, assim se entendendo aquela que nasce entre indivíduos dos quais um exerce de modo constante uma atividade na indústria humana e para exercício da qual eles se servem de pessoas que dirigem e orientam; finalmente, para outros, a subordinação é social, o estado decorrente de classe social”. (Curso de Direito do Trabalho, Amauri Mascaro Nascimento, 24ª edição, revista, atualizada e ampliada, Editora Saraiva, pág 622).
Há diferentes tipos de modos de subordinação, entretanto, prevalece a teoria da subordinação jurídica, que tem por objetivo explicar a posição do empregado perante o empregador, não como pessoa, mas como o modo do trabalho, da prestação de serviço é realizada, através do contrato de emprego. Não há que se falar em relação de emprego se não houver a chamada subordinação jurídica, uma vez que, como dito anteriormente, a relação de emprego é composta pela união indissolúvel dos elementos fático-jurídicos da relação empregatícia.
Deste modo, podemos concluir que esse tipo de relação não pode ser considerada uma relação de emprego por faltar o requisito de maior importância que é a subordinação jurídica, uma vez que esses trabalhadores não estão sujeitos ao poder de direção do empregador e não estão sujeitos a controle de jornada. As exigências dadas pela empresa ao motorista, como oferecer água e balas aos passageiros não configuram a subordinação, pois trata de condições previamente pactuadas e que não configuram tal fenômeno. Sendo assim, eles são considerados profissionais de caráter autônomo, uma vez que não existe a subordinação, mas, sim, como salienta Amauri Mascaro Nascimento, uma “parassubordinação”, ou seja, o trabalho realizado tem características de um trabalho subordinado, mas o viés jurídico da subordinação não se faz presente.