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Desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária

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RESUMO: Este trabalho tem como objetivo o estudo da possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do direito tributário. Destaca-se a importância da pessoa jurídica na contemporaneidade, e as implicações do princípio da autonomia patrimonial da sociedade. O instituto é o meio mais adequado para coibir os abusos praticados, sejam pelos sócios, administradores, gerentes, e sendo aplicado corretamente aperfeiçoa a personalidade jurídica. Todavia, o direito tributário possui uma divergência dos demais ramos do direito, que é em relação ao princípio da legalidade, onde se exige a expressa previsão da doutrina na legislação para que possa ser aplicada. Este atributo, próprio do Direito Tributário, impossibilita o fisco de alcançar terceiros quando a lei não autoriza. Apesar disso com a enorme divergência entre doutrinadores, o que se vê é uma progressiva evolução da teoria dentro da esfera tributária com a crescente utilização da desconsideração pela jurisprudência pátria.

Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica. Direito tributário. Aplicação. Princípio da legalidade. Responsabilidade do sócio. Responsabilidade de Terceiros.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO.1DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. 1.1.PESSOA JURÍDICA E PERSONALIDADE JURÍDICA. 1.2.        CONCEITO DO INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA   . 1.3 TEORIAS DA DESCONSIDERAÇÃO. 1.4            REQUISITOS PARA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. 1.4.1           A Personificação.1.4.2   A fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial. 1.4.2.1         Fraude. 1.4.2.2 O abuso de direito. 1.4.3       Imputação dos atos praticados pela pessoa jurídica  . 1.5     Efeitos da desconsideração. 1.6  Desconsideração inversa.1.7  Incidência da desconsideração da personalidade jurídica no código de processo civil de 2015.1.7.1         Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica. 2            RESPONSABILIDADE DO SÓCIO NO DIREITO TRIBUTÁRIO. 2.1           RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. 2.1.1.Responsabilidade tributária por solidariedade art. 124 a 125 do CTN. 2.1.2 Responsabilidade tributária por sucessão art. 129 a 133 do CTN; 2.1.3- Responsabilidade tributária de terceiros art. 134 e 135 do CTN. 2.1.3.1 Responsabilidade do art. 134 do CTN. 2.1.3.2        Responsabilidade do art. 135 do CTN. 3            DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA          . 4. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

Com o intuito de estimular a iniciativa privada e contribuir para o crescimento econômico, o ordenamento jurídico pátrio aprimorou a figura da pessoa jurídica, conferindo a ela personalidade própria. Tal benesse, além de dar autonomia patrimonial a esse sujeito de direito, garante a separação entre o seus bens e de seus integrantes e, como consequência, a limitação da responsabilidade destes últimos.

Porém, é evidente que a proteção legal dada a esse instituto deu margem para um uso fraudulento da pessoa jurídica por parte de seus membros, com o objetivo de se esquivar de obrigações contraídas, causando prejuízo a terceiros.

Assim nasceu a desconsideração da personalidade jurídica, como uma reação do ordenamento jurídico ao mau uso da autonomia patrimonial da sociedade, visando coibir as práticas que impediam a satisfação dos credores.

Este trabalho tem como objetivo analisar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, bem como a existência da possibilidade de sua aplicação no âmbito do Direito Tributário, tema controverso e promotor de discussões doutrinarias e jurisprudenciais. Foi utilizada na sua metodologia a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, através do método dedutivo, sendo elaborada a partir de doutrinas, princípios, normas jurídicas. O assunto foi abordado através de pesquisas em livros que tratam do tema e do posicionamento dos Tribunais. O estudo caracteriza-se pela pesquisa exploratória delineada a partir de utilização de revisão bibliográfica e de jurisprudências, utilizando-se de observações destas como instrumento de coleta de dados.

Para o bom desenvolvimento da pesquisa, dividiu-se a presente monografia em 3 capítulos. No Capitulo 2, conceitua-se a desconsideração da personalidade jurídica, seus requisitos, efeitos do instituto e uma breve discursão sobre a desconsideração inversa.

No Capitulo 3, voltou-se à análise da Responsabilidade tributária dos sócios, expondo o conceito, tipos de responsabilidade e aplicação da mesma.

Feitas as considerações sobre a teoria da desconsideração e sobre a responsabilidade tributária dos sócios, administradores ou gerentes, o capitulo 4 voltou-se às possibilidades de aplicação do instituto no âmbito tributário.

Diversos autores entendem já haver previsão legal que autoriza a aplicação do instituto no direito tributário. Referem-se aos artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional e, mais recentemente, o parágrafo único do art. 116 do mesmo diploma legal que adota a possibilidade de se desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com o escopo de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo. Encontramos também posicionamentos que justificam que o art. 50 do Código Civil Brasileiro desencadeou um movimento no sentido de se identificar sua repercussão no âmbito tributário.

Destaca-se que essa não é a opinião da grande maioria dos estudiosos. Muitos entendem que o nosso sistema jurídico tributário não possui norma processual específica para o instituto da desconsideração, provindo daí que o art. 135, inciso III, do CTN, não representa a desconsideração da personalidade jurídica, mas somente a responsabilidade tributária “pessoal” do sócio.

No Brasil é cada vez mais constante a utilização do véu da pessoa jurídica. Tal atitude delituosa se reveste-se de diversas formas e não há, no âmbito da lei tributária, forma de coibi-la amplamente. Contudo se considerarmos os avanços alcançados na interpretação e integração da lei e a modernidade do direito, que ganha foros de vinculação social, não se deve mais admitir interpretações restritas.


1 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Segundo Coelho (2011, p. 153), a autonomia patrimonial possibilita a realização de atividades fraudulentas por parte de seus membros. Para impedi-los, a doutrina criou, a partir de teses jurisprudenciais, nos EUA, Inglaterra e Alemanha, a teoria da desconsideração da pessoa jurídica. Tal instituto permite que o Poder Judiciário retire o véu protetivo da empresa que é a sua autonomia patrimonial, sempre que for vislumbrado o seu mau uso. Sendo possível responsabilizar o sócio.

1.1 PESSOA JURÍDICA E PERSONALIDADE JURÍDICA

De acordo com Pereira (2000, p. 185) com a necessidade de unir o empenho de indivíduos para a realização dos mesmos objetivos e ao mesmo tempo impulsionar o agrupamento de atividades, assim como a complexidade da vida civil “sugerem ao direito equiparar à própria pessoa natural certos agrupamentos de indivíduos e certas destinações patrimoniais e lhe aconselham atribuir personalidade e capacidade de ação aos entes abstratos assim gerados”.

Desta forma, Gonçalves (2013, p. 216) conceitua pessoas jurídicas como “entidades a que a lei confere personalidade, capacitando-as a serem sujeitos de direitos e obrigações”.

Ligado a isso, Monteiro (1993, p. 109) discorre sobre personalidade jurídica:

[...] a personalidade jurídica não é uma ficção, mais uma forma, uma investidura, um atributo que o Estado defere a certos entes, havidos como merecedores dessa situação. A pessoa jurídica tem, assim, realidade, não a realidade física (peculiar às ciências naturais), mas a realidade jurídica, ideal à realidade das instituições jurídicas. No âmbito do direito, portanto, as pessoas jurídicas são dotadas do mesmo subjetivismo outorgado às pessoas físicas.

Nesse sentido, Gonçalves (2013, p. 220) também conceitua a personalidade jurídica como uma qualidade deferida pelo Estado a certas empresas dignas desse benefÍcio. O Estado não concede esse privilégio de forma aleatória, mas sim observando o preenchimento de todos os requisitos por ele determinado.

Segundo Tomazette (2012, p. 233/224), a personalidade jurídica surge com formação de uma sociedade, sendo presumidos alguns requisitos:

A doutrina não é unânime ao indicar os elementos necessários à constituição de uma pessoa jurídica, sem, contudo, chegar a divergências de maior importância. Em função disso, unindo as ideias de vários autores podemos chegar aos seguintes elementos: (a) vontade humana criadora; (b) a finalidade específica; (c) o substrato representado por um conjunto de bens ou de pessoas; e (d) a presença do estatuto e respectivo registro.

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Assim, Koury (2000, p. 415) expõe que o objetivo principal da pessoa jurídica consiste na “criação de um centro de interesses autônomos em relações às pessoas que lhe deram origem, de modo que a estas não possam ser imputadas as condutas, os direitos e os deveres daquela”.

1.2 CONCEITO DO INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

De acordo com Coelho (2007, p. 126), “a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, principio que a distingue de seus integrantes como sujeito autônomo de direito e obrigações, pode dar ensejo à realização de fraudes”. Dessa forma o autor afirma em sua obra (COELHO, 2012, p. 33, v. 2):

Em razão do princípio da autonomia patrimonial, as sociedades empresárias podem ser utilizadas como instrumento para a realização de fraude contra os credores ou mesmo abuso de direito. Na medida em que é a sociedade o sujeito titular dos direitos e devedor das obrigações, e não os seus sócios, muitas vezes os interesses dos credores ou terceiros são indevidamente frustrados por manipulações na constituição de pessoas jurídicas, celebração dos mais variados contratos empresariais, ou mesmo realização de operações societárias, como as de incorporação, fusão, cisão.

Tomazette (2013, p. 237) explica que a personalidade jurídica das sociedades “deve ser usada para propósitos legítimos e não deve ser pervertida”.

O autor esclarece que o ato da desconsideração é maneira de adequar a pessoa jurídica com as finalidades para as quais foi criada; é a forma prevenir e impedir o uso inadequado deste privilégio que é a pessoa jurídica, e de reconhecer a relatividade da personalidade das sociedades. (TOMAZETTE, 2013, p. 237).

O tema da desconsideração, para Farias e Rosenvald (2014, p. 426), significa o desprezar, por parte do Poder Judiciário, da personalidade autônoma de uma pessoa jurídica, com o intuito de responsabilizar o patrimônio pessoal dos sócios pelas atitudes fraudulentas praticadas a sombra da sociedade. Ou seja, é a autorização judicial para que os sócios respondam, civilmente, pelas ações ilícitas, em virtude do contrato ou da lei.

Bruschi (2016, p. 138) discorre:

A desconsideração da personalidade jurídica pode ser conceituada como um meio de repressão à frustração da atividade executiva, caracterizada pela decretação da inoponibilidade (ineficácia relativa) do limite patrimonial da pessoa jurídica, permitindo que sejam atingidos os bens de seus sócios, ex-sócios, acionistas, ex-acionistas, administradores, ex-administradores e sociedades do mesmo grupo econômico; ou, ainda, que sejam atingidos os bens da pessoa jurídica por obrigações contraídas por elas, no caso da chamada “desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Para este autor, supracitado, “trata-se, portanto, de caso de responsabilidade executiva secundária, em que os bens de terceiro, no caso o sócio, respondem pela obrigação assumida pelo devedor, que é a pessoa jurídica.” (BRUSCHI, 2016, p. 138).

Ainda sobre o conceito, Coelho (2012, p. 35) lembra:

A teoria da desconsideração da pessoa jurídica, é necessário deixar bem claro esse aspecto, não é uma teoria contra a separação subjetiva entre a sociedade empresária e seus sócios. Muito ao contrário, ela visa preservar o instituto, em seus contornos fundamentais, diante da possibilidade de o desvirtuamento vir a comprometê-lo.

Nesse sentido Tomazette (2013, p. 239) afirma:

[...] a desconsideração da personalidade jurídica é a retirada episódica, momentânea e excepcional da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, a fim de estender os efeitos de suas obrigações à pessoa de seus titulares, sócios ou administradores, com o fim de coibir o desvio da função da pessoa jurídica, perpetrado por estes.

Inicialmente, no Brasil, as normas pertinentes ao instituto da Desconsideração surgiram com o Código de Defesa do Consumidor com fundamento no art. 28 (VADE MECUM, 2016, p. 666):

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

Posteriormente, com o desenvolvimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o Código Civil de 2002, em seu art. 50, consagrou em norma expressa tal teoria (VADE MECUM, 2016, p. 178):

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Em consonância o inciso VII do art. 790 do Novo Código de Processo Civil de 2015 determina os bens dos sócios ficam sujeitos à execução, nos casos de desconsideração da pessoa jurídica. (BRUSCHI, 2016, p.138).

1.3 TEORIAS DA DESCONSIDERAÇÃO

Segundo Tomazette (2013, p. 243), a possibilidade de desviar as finalidades da pessoa jurídica foi fomentadora do estudo sobre a desconsideração, permitindo a superação da autonomia patrimonial, e afirmando que “embora seja um importante principio, não é um principio absoluto”.

Podemos vislumbrar na obra do doutrinador Coelho (1999) a existência de duas teorias que versam sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Coelho (1999, p. 35), de forma sintetizada, constatou:

Há duas formulações para a teoria da desconsideração: a maior, pela qual o juiz é autorizado a ignorar a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, como forma de coibir fraudes e abusos praticados através dela, e a menor, em que o simples prejuízo do credor já possibilita afastar a autonomia patrimonial.

A respeito do tema, Farias e Rosenvald (2014, p. 427) explicam que a teoria maior sustenta que só será possível se desconsiderar a personalidade jurídica em determinados momentos, ou seja, nos casos de se ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica como forma de combater as práticas fraudulentas e abusivas praticadas pelos sócios, e responsabilizar seu patrimônio pessoal.

A respeito da teoria maior, Tomazette subdivide o tema, fazendo as seguintes considerações (TOMAZETTE, 2013, p. 244):

Uma primeira vertente pode ser chamada de teoria maior subjetiva, na qual o pressuposto fundamental da desconsideração é o desvio da função da pessoa jurídica, que se constata na fraude e no abuso de direito relativos à autonomia patrimonial.

A segunda vertente é a adoção dos pressupostos da teoria maior objetiva, “entendendo que é a confusão patrimonial o requisito primordial da desconsideração”. (TOMAZETTE, 2013, p. 245).

Por outro lado, Farias e Rosenvald (2014, p. 428) discorrem que a teoria menor trata como desconsideração da personalidade jurídica “toda e qualquer hipótese de comprometimento do patrimônio pessoal do sócio por obrigação da empresa. Fundamenta o seu cerne no simples prejuízo do credor para afastar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica”.

Contudo, em obras mais recentes, o professor Coelho (2012, p.41) relata que desde 1970, juízes e tribunais tem aplicado os exatos entendimentos da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, valendo-se dela somente nas hipóteses excepcionais em que é justificável o afastamento do princípio da autonomia patrimonial. Por conseguinte, a partir de novo entendimento, discorre que caso seja utilizada a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, consiste em incorreção quanto à sua aplicação, conforme podemos verificar (COELHO, 2012, p.40):

Essa aplicação incorreta reflete, na verdade, a crise do princípio da autonomia patrimonial, quando referente a sociedades empresárias. Nela, adota-se, o pressuposto de que o simples desatendimento de crédito titularizado perante uma sociedade, em razão da insolvência ou falência desta, seria suficiente para a imputação de responsabilidade aos sócios ou acionistas.

O autor Coelho (2012, p. 41), supracitado, ainda acrescenta sobre o tema:

Em 1999, quando era significativa a quantidade de decisões judiciais desvirtuando a teoria da desconsideração, cheguei a chamar sua aplicação incorreta de “teoria menor”, reservando à correta a expressão “teoria maior”. Mas a evolução do tema na jurisprudência brasileira não permite mais falar em duas teorias distintas, razão pela qual esses conceitos de “maior” e “menor” mostram-se, agora, felizmente, ultrapassados.

Nesta mesma linha de pensamento, Tomazette, apesar de ter apreciado o desdobramento da teoria desconsideração, também possui uma visão contraria quanto à aplicação da teoria menor (2013, p. 246):

Embora não aplicada a todos os ramos do direito, não vemos razoabilidade na aplicação dessa teoria menor. Tal teoria praticamente ignora a ideia de autonomia patrimonial das pessoas jurídicas e não se coaduna com a própria origem de aplicação da teoria da desconsideração. Ao contrário de proteger, a teoria menor acaba por minar a existência da autonomia patrimonial, em nada favorecendo aqueles que se dignam a exercer atividades econômicas.

Na maioria dos casos, o ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria maior, sendo exigido o desvio da finalidade social ou a confusão patrimonial para que se caracterize a desconsideração. (BRUSCHI, 2016, p. 140).

1.4 REQUISITOS PARA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

De acordo com Tomazette (2013, p. 246), para que ocorra a desconsideração faz-se necessário uma prova concreta de que a finalidade da pessoa jurídica foi desviada, sendo se suma importância que sejam preenchidos todos os requisitos para a aplicação do instituto.

1.4.1 A personificação

Tomazette (2013, p. 247) explica que, se observamos a simples terminologia usada, pode-se concluir que a desconsideração só será aceita quando a sociedade tem personalidade jurídica.

O autor supracitado (TOMAZZETE, 2013, p. 247) discorre que, no ordenamento brasileiro, a personificação das sociedades se dá com o registro dos atos competentes. Sem este procedimento não há que se falar em personificação, mesmo que a sociedade possua atos constitutivos.

Além do mais, de acordo com a análise do art. 990 do nosso Código Civil de 2002, “todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais” (VADE MECUM, 2016, p. 229).

Neste contexto, Tomazette (2013, p. 247) conclui que “a aplicação da desconsideração presume-se que pressupõe uma sociedade na qual o exaurimento do patrimônio social não seja suficiente para levar responsabilidade aos sócios”. Assim, o autor expõe que a exigência da responsabilidade limitada apesar de ser de cunho eminentemente prático, não impede que haja desconsideração em uma sociedade composta por sócios de responsabilidade ilimitada, tendo em vista que um dos seus principais objetivos é de proteger a sociedade.

1.4.2 A fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial

Segundo Tomazette (2013, p. 248), o principal pressuposto para aplicação da desconsideração é o desvio da função da pessoa jurídica, que está presente na fraude e no abuso de direito em razão da autonomia patrimonial, tendo em vista que o instituto é uma forma de limitar o uso da pessoa jurídica para os fins aos quais ela foi destinada.

Todavia, Comparato (1983, p. 283) entende que o requisito primordial da desconsideração é a confusão patrimonial.

Tomazette discorda de tal posicionamento. O autor afirma que a confusão patrimonial pode levar à desconsideração da personalidade jurídica, contudo, não é seu principal requisito (2013, p. 245):

A confusão patrimonial não é por si só suficiente para coibir todos os casos de desvio da função da pessoa jurídica, pois há casos nos quais não há confusão de patrimônios, mas há o desvio da função da pessoa jurídica, autorizando a superação da autonomia patrimonial. Outrossim, há casos em que a confusão patrimonial provém de uma necessidade decorrente da atividade, sem que haja um desvio na utilização da pessoa jurídica.

Por essa razão, o autor entende que a fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial são os fundamentos básicos da aplicação da desconsideração. (TOMAZETTE, 2013, p. 248).

1.4.2.1 Fraude

Para Tomazette (2013, p. 248), a autonomia patrimonial é um instrumento que protege o patrimônio do sócio, prevenindo possíveis riscos da atividade empresarial. Contudo, o individuo que ilicitamente usar da autonomia patrimonial como forma de se ocultar deixar de cumprir suas obrigações, estará diante de uma fraude relacionada à autonomia patrimonial.

O supracitado autor (TOMAZETTE, 2013, p. 250) ressalta que, para à aplicação da desconsideração, não se faz necessário somente à existência de uma fraude, se não houver sua ligação com a utilização da autonomia patrimonial.

1.4.2.2 O abuso de direito

De acordo com Tomazette, a personalidade jurídica é um direito conferido às sociedades para os seus fins específicos. No entanto, tal finalidade poderá ser desvirtuada, não podendo mais se falar no uso do direito, mas sim no seu abuso, o que não deve ser aceito. Neste sentido, o autor sintetiza que “é abusivo qualquer ato que por sua motivação e por seu fim, vá contra o destino, contra a função do direito que se exerce”. (TOMAZETTE, 2013, p. 250).

Continua o citado autor (2013, p.251) em seu pensamento afirmando que em oposição à fraude, no abuso de direito a finalidade de prejudicar não é fundamental, ocorrendo na verdade o mau uso da pessoa jurídica.

1.4.3 Imputação dos Atos Praticados pela Pessoa Jurídica

De acordo com Tomazette (2013, p. 253), sendo aplicada a teoria da desconsideração, os atos devem ser imputados à pessoa jurídica. Feito isso os sócios ou administradores serão responsabilizados. Porém, existem algumas hipóteses que não há o que falar sobre tal instituto.

O autor, em sua obra, ressalta que existem casos em que a desconsideração não será aplicada. Essas hipóteses ocorrem quando o sócio ou administrador violar a lei ou o contrato social, não sendo preciso desconsiderar a empresa, a responsabilidade será direta e pessoal aos sócios, vez que decorre de preceito legal. (TOMAZETTE, 2013, p. 253).

1.5 EFEITOS DA DESCONSIDERAÇÃO

Guimarães (2004, p.236) discorre que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) terá por consequência atingir aquele que fez uso indevido da distinção da autonomia patrimonial da pessoa jurídica - o sócio - sendo este pessoa física ou jurídica.

Segundo Brushi (2016, p.145), os efeitos resultantes da decretação da fraude de execução, da desconsideração da personalidade jurídica e da procedência da ação pauliana, ao ser reconhecido a fraude contra credores, são os mesmos; os limites dos patrimônios do devedor e do terceiro tornam-se relativamente ineficazes “em relação à atividade jurisdicional executiva que seria frustrada, caso a eficácia de tais limites não fosse relativizada”.

1.6 DESCONSIDERAÇÃO INVERSA

Coelho (2012, p.40), ao abordar a desconsideração inversa da personalidade jurídica, define esta como sendo o afastamento do conceito da autonomia patrimonial da pessoa jurídica no intuito de levar a responsabilidade à sociedade por obrigação do sócio.

Vale ressaltar, ainda, as palavras de Diniz (2009, p.316):

A doutrina da desconsideração da personalidade jurídica visa impedir a fraude contra credores, levantando o véu corporativo, desconsiderando a personalidade jurídica num dado caso concreto, ou seja, declarando a ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, portanto, para outros fins permanecerá incólume. Com isso alcançar-se-ão pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos, pois a personalidade jurídica não pode ser um tabu que entrave a ação do órgão judicante.

Tomazette (2013, p.280) também disciplina acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica:

Com efeito, é possível que o sócio use uma pessoa jurídica, para esconder o seu patrimônio pessoal dos credores, tranferindo-o por inteiro à pessoa jurídica e evitando com isso o acesso dos credores a seus bens. Em muitos desses casos, será possível visualizar a fraude (teoria maior subjetiva) ou a confusão patrimonial (teoria maior objetiva) e, em razão disso, vem sendo admitida a desconsideração inversa para responsabilizar a sociedade por obrigações pessoais do sócio.172 O mesmo raciocínio da desconsideração tradicional é usado aqui para evitar o mau uso da pessoa jurídica.

Dessa forma, Coelho afirma que a desconsideração inversa da personalidade jurídica, objetiva combater a fraude pelo desvio de bens (COELHO, 2012, p.40):

[...] Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. Quer dizer, o sócio da associação ou o instituidor da fundação, desde que mantenham controle total sobre os seus órgãos administrativos, podem concretizar com maior eficácia a fraude do desvio de bens.

Sendo assim, de acordo com a visão de Gagliano e Pamplona Filho (2009, p.238), a desconsideração inversa ocorre quando o sócio coloca em nome da empresa seus próprios bens, com o objetivo de prejudicar terceiros. Diante disso, deve-se aplicar a desconsideração inversa da personalidade jurídica da sociedade com o propósito de atingir o patrimônio social, que na verdade, pertence ao individuo fraudador.

1.7 INCIDENTE DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO CÓDIGO DE PROCESSO CÍVIL DE 2015

Segundo Didier Jr. (2015, p.513/514), o direito brasileiro criou a desconsideração da personalidade jurídica, cabendo assim ao direito processual criar um mecanismo que pudesse efetivá-lo. Desta forma, o CPC prevê o incidente do instituto, tratando-se da intervenção de terceiro, onde se provoca o ingresso deste em juízo, na busca de responsabilizá-lo patrimonialmente.

Nesse sentido o § 2º, art.134 do Código de Processo Civil de 2015 expõe (BECKER, 2016).

Art. 134 O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

§ 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.

Bruschi (2016, p.159) discorre que o Código de Processo Civil de 2015 assegura a realização do contraditório antes de ser desconsiderada a personalidade jurídica, extinguindo-se o que era anteriormente assentado pela doutrina e pela jurisprudência, na medida em que se realizava a desconsideração, impedido o sócio de dispor livremente de seu bem sem a sua oitiva. Dessa forma retardava-se o direito do exercício do contraditório, sendo necessária a oposição de embargos de terceiro como um processo incidental.

1.7.1 Aspectos Processuais da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Didier Jr. (2015, p.519), em sua obra, expõe as características do incidente de desconsideração da personalidade jurídica:

a) Cabe em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento da sentença e na execução d e título extrajudicial (art. 134, caput, CPC). Assim, não é possível desconsiderar a personalidade jurídica sem a observância desse procedimento - mesmo na execução de título extrajudicial e no cumprimento de sentença.

b) A desconsideração da personalidade jurídica não pode ser determinada ex officio pelo órgão julgador. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica depende de pedido da parte ou do Ministério Público, nos casos que justificam a sua intervenção (art. 133, CPC).

De acordo com o autor, o inciso VI, do art. 932 do CPC, explica que “cabe ao relator decidir o requerimento de desconsideração da personalidade jurídica, quando formulado perante o tribunal”(DIDIER JR., 2015, p.519).

c) Nada obstante ser exemplo de intervenção de terceiro, admite-se a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos juizados Especiais Cíveis (art. 1.062, C PC).

d) O requerimento de desconsideração da personalidade jurídica será dirigido ao sócio ou à pessoa jurídica, cujo patrimônio se busca alcançar. Como o incidente serve também apara a desconsideração inversa - muito utilizada em questões de família, quando um dos cônjuges esconde seus bens em uma pessoa jurídica -, será bem frequente o direcionamento do requerimento de desconsideração a uma pessoa jurídica.

Como já foi dito anteriormente, Didier Jr. (2015, p.520) ressalta que, este requerimento poderá ser formulado na petição inicial. Desta forma o autor irá dirigir o pedido em face da sociedade, que eventualmente, será o pedido de desconsideração contra o sócio.

e) O incidente de desconsideração da personalidade jurídica, além de trazer sujeito novo, amplia também o objeto litigioso do processo. Acresce-se ao processo um novo pedido: aplicação da sanção da desconsideração da personalidade jurídica ao terceiro.

O autor explica que no pedido de instauração do incidente devem estar preenchidos os pressupostos legais que autorizem a intervenção, sob pena de inépcia (DIDIER JR., 2015, p.520).

f) Instaurado o incidente, o terceiro será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis, em quinze dias (art. 135, CPC). Com essa regra, concretiza-se o princípio do contraditório. Conforme sempre defendemos neste Curso, não é possível desconsiderar a personalidade jurídica sem a observância do princípio do contraditório. O dispositivo encerra, assim, antiga controvérsia.

g) A instauração do incidente suspende o processo, salvo quando a desconsideração foi requerida na petição inicial, quando, como vimos, não é caso de intervenção de terceiro (art. 134, § 2°, CPC). A instauração deve ser imediatamente comunicada ao distribuidor, para que proceda às anotações devidas (art. 1 34, § 1 °, CPC).

h) O incidente será resolvido por decisão interlocutória - impugnável por agravo de instrumento (art. 1.015, IV, CPC). Se for por decisão de relator, o caso é de agravo interno (art. 136, par. ú n., CPC). Se porventura o juiz decidir o incidente na sentença, o caso é de apelação (art. 1.022, CPC).

i) Aplica-se ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica o regime da tutela provisória da urgência. Pode-se, então, pedir a antecipação dos efeitos da desconsideração, uma vez preenchidos os pressupostos gerais da tutela de urgência (arts. 300 e segs., CPC).

j) Acolhido o requerimento de desconsideração, a alienação em fraude à execução, feita após a instauração do incidente, será ineficaz em relação ao requerente (art. 137, CPC).

k) O Ministério Público somente intervirá no incidente de desconsideração de personalidade jurídica, se ocorrer uma das hipóteses do art. 178 do CPC.

Dessa forma, o autor (DIDIER JR., 2015, p.520/521) expõe que não bastam afirmações genéricas da parte que queira desconsiderar a personalidade jurídica, embasadas nos princípios da efetividade e da dignidade humana. Ao solicitar a desconsideração, a parte deve observar que o instituto é formado pela prática de atos ilícitos, devendo a conduta imprópria está descrita no requerimento para que o terceiro possa defender–se da acusação.

Sobre os autores
Ricardo Simões Xavier dos Santos

Advogado. Fundador do escritório Ricardo Xavier Advogados Associados. Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Mestre e Doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador - UCSal; Especialista em Direito do Estado pelo Jus Podivm/Unnyahna e em Direito Tributário pelo IBET. Professor da Universidade do Estado da Bahia - UNEB , da Universidade Católica do Salvador - UCSal e da Escola Superior da Advocacia - ESA - Seccional da OAB/BA; Coordenador Curso de Pós-graduação em Direito Empresarial da Universidade Católica do Salvador - UCSal. Pesquisador do Núcleo de Estudos em Tributação e Finanças Públicas - NEF da Universidade Católica do Salvador - UCSal

Louise Gonzaga De Menezes

Bacharela em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSal

Informações sobre o texto

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