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Democracia de massas

O grande jogo

Agenda 21/08/2017 às 16:47

Trata-se de uma análise da atual crise política sob o prisma da formação do regime democrático e da incompatibilidade de tal regime com a formação das chamadas sociedades de massas.

O sistema democrático atual, surgido internacionalmente no pós guerra e adotado no Brasil após o encerramento do Regime Militar, carrega em seu modo de funcionamento uma contradição que, a meu ver, é insanável nos termos do próprio sistema.

Voltemos às origens do sistema democrático, na Grécia.

A filósofa Hannah Arendt, em suas obras A vida do espírito e A ação humana trata da Ágora (do espaço público de deliberação política) como um espaço frequentado pelos livres. Os homens deixam seus espaços privados, onde cuidam de seus assuntos pessoais e, na Ágora, dedicam-se ao cuidado daquilo que é comum. Cuidam das condições que permitem o exercício de suas liberdades em seus espaços privados.

A distinção entre público e privado é uma distinção aristocrática, e é a aristocracia que funda o espaço democrático como doação de si, como nobreza. Aqueles que podem abrir mão de seu tempo, que podem dedicar-se ao ócio construtivo das discussões públicas são os cidadãos e é para esta estirpe de pessoas que o sistema democrático clássico é construído.

A democracia, em seu ideal fundador, exige então nobreza de caráter, desprendimento, distinção. Os mesmos caracteres estão presentes no esplendor e no auge de todos os sistemas políticos. A capacidade de deixar de lado os afetos, as paixões pessoais, as relações familiares em nome da discussão daquilo que é comum a todos contrapõe-se ao espírito daquilo que é doméstico, arbitrário, pessoal. Como escreveu Chesterton, o espaço privado é o verdadeiro espaço da liberdade – é de onde partem os homens livres que ocupam a Ágora. Contraposto a esta, o lar é espaço de anarquia, onde valem as regras do indivíduo, onde reina a privacidade e o arbítrio. Para preservar a liberdade dos afetos e o livre arbítrio da vida doméstica é que se reúnem em assembleia os livres.

Hannah Arendt

Além do espaço público e a partir do espaço privado, os homens livres reúnem-se também conforme seus afetos. Reúnem-se em clubes, partidos, famílias… criam instituições coletivas que não tem o caráter impessoal da Ágora. Organizam-se em facções de toda ordem onde seus afetos são desenvolvidos. Onde suas preferências pessoais, que não têm lugar na Ágora, espaço do comum, são exercitadas em comum com outros homens. Ou seja, em paralelo à Agora há o espaço privado e a vida em comum – a comunidade.

A comunidade, acima da Ágora, é o espaço onde os homens livres se organizam. A partir dela – em termos correntes, da sociedade civil – é que os homens livres participam da vida da Polis, preservando os interesses de suas facções e combatendo outras facções que atrapalhem ou impeçam a vida comunitária.

Este ideal da antiguidade foi soterrado pela decadência grega, mas sobreviveu no ideal da política do ocidente por séculos. A ideia de um povo composto por homens livres que governam a si próprios é uma das pérolas do pensamento ocidental e um dos pilares da civilização construída na Europa e que espalhou-se por boa parte do mundo.

Entre o poder impessoal da Ágora e a anarquia do lar há um espaço de mediação, que é a comunidade. A sociedade civil é a instância onde verifica-se aquilo que a Igreja Católica, em sua Doutrina Social, chama de Princípio de Subsidiariedade. Segundo tal princípio, o Estado, que personifica a ação e o poder dos indivíduos reunidos na Ágora, deve reservar para si apenas aquelas tarefas que não podem ser naturalmente resolvidas na esfera da intimidade ou através da vida comunitária. A sociedade civil, como espaço de distinção dos homens livres, coloca-se como esfera de proteção desta mesma liberdade contra o incremento do poder estatal para além de seus limites.

Olhemos para o quadro atual.

Vivemos um processo que, em filosofia política, é chamado de Atomização – o desfazimento das instâncias da sociedade civil. Os indivíduos, alienados por jornadas extenuantes de trabalho, expostos a meios de comunicação de massa que sistemáticamente atacam seus costumes mais elementares, afastam-se de suas Igrejas, de seus clubes, de suas vizinhanças. Em um longo processo histórico, que ressalta-se na urbanização pós industrial, vínculos pessoais, lealdades, costumes e tradições são abandonados em nome de benefícios sociais oferecidos pelo aparelho estatal e pelo grande capital.

Surgem a educação de massas, a política de massas, a arte de massas. E com isso desaparecem lentamente as distinções. Desfaz-se a vida comunitária e, com ela o espaço de liberdade que forma os cidadãos para a participação na Agora.

As massas intervém em tudo, e intervém violentamente. E seu maior perigo é o Estado. As palavras de Ortega y Gasset soam cada vez mais atuais – as massas são amorfas. Elas seguem. Toda civilização é aristocrática, e deixa de ser civilização na medida em que deixa de ser aristocrática. Desfeita a mediação das instancias da vida comunitária, as massas obtém participação política na exata medida em que despolitizam o espaço público enquanto trazem para dentro de seus lares – que deveriam ser espaços anárquicos de liberdade – o poder regulador do Estado.

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As massas seguem. Seguem o sistema educacional do próprio estado. Seguem os veículos de comunicação. Seguem líderes religiosos desligados da autoridade tradicional. Seguem líderes partidários. Cada um destes atores, que são os reais detentores do poder em um sistema democrático que é meramente formal, apela para o estomago e para o baixo ventre das massas. A política de massas é uma guerra de slogans elaborados por marqueteiros profissionais. Candidatos-sabonetes, como se diz no jargão da publicidade política.

Os donos do poder são, como dizia Vilem Flusser, programadores. Eles jogam com signos visando conquistar adesões imediatas. Não visam o bem público pelo convencimento racional, mas sim gerando afetações, sensações de familiariedade, simulacros de vida comunitária no jogo de alinhamentos simbólicos, tribais, sub-racionais. Falar em democracia nesse quadro é obsoleto. As massas não sabem sequer quem de fato exerce poder sobre elas. Se prendem em sectarismos, ligadas aos discursos lançados pelos líderes aos quais aderem. O diálogo é impossível, pois só pode ocorrer entre homens livres em um espaço público. Sem espaços comuns de convívio, indivíduos organizados em massas armam-se uns contra os outros. Facções em nome de grupos de pessoas e interesses aos quais desconhecem totalmente. Peões sem saber em um grande jogo.

A política contemporânea que se diz democrática é um jogo para iniciados, um jogo autossuficiente, autorreferencial, que roda sobre si mesmo e não tem sentido para além de si mesmo. Enfraquecido o poder do espaço comunitário, ele avança sobre as liberdades individuais. Liberdades como a privacidade, o livre exercício de afetos e preferências também estão sendo politizadas – ou seja, colocadas sob escrutínio dos grupos que de fato detém o poder.

O que resiste de distinção pessoal e de sociedade civil encontra-se sob ataque de ambos os lados. Mas é apenas a partir daí que é possível pensar em um novo renascimento da democracia. Enquanto famílias desfeitas fabricam indivíduos atomizados para a educação de massas e para o consumo de grandes mídias, o poder fortalece-se. E revoltar-se é anacrônico – o totalitarismo está instalado, pois o melhoramento da ação do poder é necessariamente perda de liberdade. Melhores escolas doutrinam melhor. Melhores mídias alienam mais. Melhores máquinas exploram mais.

As massas podem até protestar. Mas o protesto informa o poder. Demonstra as falhas de sistema, enquanto o objetivo do sistema é a total dominação. Mostram as falhas do jogo, enquanto o objetivo do jogo é não falhar.

Apenas quem enxerga o poder como um jogo pode estar apto a jogar. Quem entende a ação política atual como programação pode programar. Reconstruir o espaço intermediário. Reconstruir a sociedade civil a partir de seu entorno pessoal. Essa é uma saída possível para o jogo do poder.

Sobre o autor
Rafael Pereira de Menezes

Analista judiciário do TRE/PR desde 2009. Servidor do PJU desde 2005. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie desde 2004. Mestre e aluno do programa de doutorado em filosofia da PUC/PR. Professor no Centro Universitário Campos de Andrade - Uniandrade

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