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Fiscalização das contas das fundações: Ministério Público ou Tribunal de Contas?

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Agenda 07/12/2004 às 00:00

6. Das fundações instituídas e não-mantidas pelo Poder Público

Dessa forma, a polêmica questão existente sobre a existência da competência fiscalizatória dos Tribunais de Contas sobre as fundações instituídas e não-mantidas pelo Poder Público se esvanece, pela falta de um dos pressupostos exigidos pela Constituição Federal.

No Rio Grande do Sul, por exemplo, parece ser o caso da Fundação Hospitalar Educacional São Francisco de Assis, do Município de Machadinho, que muito embora tenha sido instituída pelo Poder Executivo daquela municipalidade, mantém-se financeiramente por conta de recursos próprios, decorrentes de seus serviços hospitalares prestados à comunidade, não recebendo qualquer auxílio financeiro dos cofres públicos municipais e estaduais.

Contudo, face à grande polêmica do tema, a discussão sobre a existência ou não da aludida competência fiscalizatória do Tribunal de Contas levou a referida Fundação a ajuizar a ação declaratória de n.º 01195156276, visando à obtenção da declaração do direito de não ter de prestar contas ao TCE/RS. Entretanto, em 12/09/1996 a 3ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de Porto Alegre julgou improcedente a demanda proposta por aquela Fundação, sob o fundamento de que aquela fundação havia sido instituída a partir da transferência de patrimônio público municipal, e que, por essa razão, estaria sujeita ao poder fiscalizatório do Tribunal de Contas.

Inconformada com o decisório de primeiro grau, a Fundação Hospitalar São Francisco de Assis recorreu ao Tribunal de Justiça – apelação nº 596220632 –, obtendo provimento de seu recurso, por maioria de votos, vencido o Relator, Juiz de Alçada em regime de exceção Augusto Otávio Stern, em 19/11/1997 da 2ª Câmara Cível.

Ressalta-se que o voto vencedor, da lavra do Desembargador Élvio Schuch Pinto, trouxe por fundamento o entendimento de que a competência fiscalizatória do TCE/RS somente surgiria sobre a Apelante se constatada a concomitância dos dois requisitos constitucionais – instituição e manutenção pelo Poder Público –, que no caso inexistia, vez que a Recorrente logrou provar que não era mantida pelo Poder Público municipal e estadual, fazendo, desta forma, sucumbir o requisito constitucional "manutenção pelo Poder Público" no caso concreto.

A situação parecia estar resolvida de acordo com os ditames constitucionais, quando o Estado do Rio Grande do Sul opôs embargos infringentes n.º 598022739, cujo acórdão do 1º Grupo de Câmara Cíveis, por unanimidade, em 06/11/1998, acolheu os ditos embargos sob a fundamentação de que "a lei municipal autorizou a criação da embargada, tendo sido transferidos bens públicos. Isso é suficiente para determinar, no caso, a sujeição ao controle externo pelo Tribunal de Contas" 13.

A toda evidência, os fundamentos de decidir dos aludidos embargos infringentes parecem indicar que a venerável decisão colegiada equivocou-se ao conceder primazia à lei municipal em detrimento da observância compulsória da Constituição Federal, contrariando o consagrado princípio da hierarquia das leis, para determinar a sujeição da Fundação embargada ao controle do Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul.

Ademais, a transferência de bens, como referido no início, é da essência do instituto das fundações. Não há como se instituir fundação sem transferência de patrimônio para a mesma. Portanto, trata-se de característica inerente ao instituto, destituída de força determinante na análise de eventual sujeição à competência fiscalizatória do Tribunal de Contas.

Fosse diferente, o legislador não haveria criado a figura da fundação pública, pois qualquer fundação instituída pelo Poder Público, invariavelmente, face à transferência de bens, estaria sujeita à fiscalização do Tribunal de Contas. Este raciocínio equivocado esvaziaria por completo o sistema jurídico das fundações, que contempla dois conceitos perfeitamente distintos entre si: a fundação, prevista no art. 44, III e 62 a 68 do Código Civil, e o de fundação pública trazido pelo art. 5º, inc. IV do Decreto-lei n.º 200/67.

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Portanto, tais considerações autorizam concluir pela ocorrência, em tese, de inconstitucionalidade do referido acórdão, na medida em que seus fundamentos colidiram com disciplina contida no art. 71, inc. II da Carta Federal.

Tal incidente judicial, que transitou em julgado em 05/01/1999, serve para demonstrar a relevância do assunto e da necessidade de amplo debate no meio jurídico, a fim de que outras fundações, de características idênticas – instituídas e não-mantidas pelo Poder Público – não venham a sofrer gravosos prejuízos, representados pela violação de seus direitos constitucionais, provocados pela falta da necessária consolidação doutrinária e pacificação jurisprudencial acerca da matéria.

6.1. Da jurisprudência

Releva registrar que desde antes do advento da Constituição Federal de 1988 já existia entendimento no Supremo Tribunal Federal – STF – no sentido de que para que uma fundação instituída pelo Poder Público fosse considerada integrante da Administração Indireta, seria necessário que ela também fosse mantida por recursos públicos, conforme se observa na ementa abaixo:

"NATUREZA JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES INSTITUÍDAS PELO PODER PÚBLICO. Desde que assumam a gestão de serviço estatal, e sejam mantidas por recursos orçamentários, sob a direção do Poder Público, integram a administração indireta, e são jurisdicionadas a Justiça Federal, se instituídas pelo Governo Federal" (STF - RECR 115.134, DF, 2ª T., Rel. Min Carlos Madeira, Sessão de 08/04/1988). (grifo nosso)

Dessa forma, o entendimento jurisprudencial acima colacionado também rechaça, de plano, a tese de que a simples transferência de bens para a instituição da fundação a qualificaria como órgão integrante da Administração Indireta e, portanto, sujeita à competência fiscalizatória do Tribunal de Contas.

Pelo contrário, o aresto, além dos requisitos estudados no presente trabalho – instituição e manutenção pelo Poder Público – entende pela necessária existência de um terceiro componente: o de que a fundação tenha por mister a gestão de serviço estatal.

Após o advento da Carta Magna de 1988, a jurisprudência do STF, velando pelo fiel cumprimento do art. 71, inc. II da CF/88, reiterou o entendimento da necessidade da existência concomitante dos requisitos – instituição e manutenção pelo Poder Público – como pode se ver pelas ementas abaixo colacionadas:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE. CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE A JUSTIÇA FEDERAL E A JUSTIÇA COMUM. NATUREZA JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES INSTITUÍDAS PELO PODER PÚBLICO. 1. A Fundação Nacional de Saúde, que é mantida por recursos orçamentários oficiais da União e por ela instituída, é entidade de direito público. 2. Conflito de competência entre a Justiça Comum e a Federal. Artigo 109, I da Constituição Federal. Compete à Justiça Federal processar e julgar ação em que figura como parte fundação pública, tendo em vista sua situação jurídica conceitual assemelhar- se, em sua origem, às autarquias. 3. Ainda que o artigo 109, I da Constituição Federal, não se refira expressamente às expressamente às fundações, o entendimento desta Corte é o de que a finalidade, a origem dos recursos e o regime administrativo de tutela absoluta a que, por lei, estão sujeitas, fazem delas espécie do gênero autarquia. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido para declarar a competência da Justiça Federal. (grifo nosso)

RE 215741 / SE – SERGIPE RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. MAURICIO CORREA Julgamento: 30/03/1999 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação: DJ DATA-04-06-99

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO. EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA. CONDENAÇÃO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA DAS FUNDAÇÕES INSTITUÍDAS PELO PODER PÚBLICO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. ART. 109, I DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. A Fundação Universidade do Rio de Janeiro tem natureza de fundação pública, pois assume a gestão de serviço estatal, sendo entidade mantida por recursos orçamentários sob a direção do Poder Público, e, portanto, integrante da Administração Indireta. 2. Conflito de competência entre a Justiça Comum e a Justiça Federal. Art. 109, I da Constituição Federal. Compete à Justiça Federal processar e julgar ação em que figure como parte fundação instituída pelo Poder Público Federal, uma vez que o tratamento dado às fundações federais é o mesmo deferido às autarquias. 2.1. Embora o art. 109, I da Constituição Federal não se refira expressamente às fundações, o entendimento desta Corte é no sentido de que a finalidade, a origem dos recursos e o regime administrativo de tutela absoluta a que, por lei, está sujeita a entidade, fazem dela espécie do gênero autarquia e, por isso, são jurisdicionadas à Justiça Federal, se instituídas pelo Governo Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido. (grifo nosso)

RE 127489 / DF - DISTRITO FEDERAL RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a): Min. MAURICIO CORREA Julgamento: 25/11/1997 Órgão Julgador: Segunda Turma Publicação: DJ DATA-06-03-98

6.2. Do aparente conflito de atribuições fiscalizatórias sobre as fundações

Contudo, examinando o assunto sob a ótica fiscalizatória do Órgão de Controle Externo, paradoxalmente, emerge a idéia de que a verificação da ocorrência ou não das mencionadas qualificações constitucionais somente será possível se a Corte de Contas tiver acesso aos controles financeiros e contábeis da fundação. E esta relevante verificação dependerá da respectiva fiscalização a ser procedida pelo Tribunal de Contas. No deslinde desse paradoxo jurídico repousa a solução do presente estudo.

Em verdade, pensa-se que melhor seria qualificar o dito entrave como aparente paradoxo, pois as fundações típicas, pessoas jurídicas de direito privado, de previsão legal no Código Civil, como já visto, são fiscalizadas pelo Ministério Público por expressa disposição legal. Portanto, a este caberá originariamente, por definição legal, o mister de verificar se a entidade fiscalizada é ou não mantida pelo Poder Público.

6.3. Da extensão interpretativa da palavra "mantida"

E nesse aspecto, releva destacar a polêmica entabulada a respeito da interpretação, em termos de extensão, da palavra mantida da norma constitucional inserta no art. 71, Inc. II da CF/88. Será que a percepção meramente eventual, portanto, não-permanente de verbas públicas, seria suficiente para configurar o dito requisito constitucional? Se a resposta for afirmativa, qualquer percepção e utilização de dinheiros públicos por uma fundação, seja ela eventual ou não, implicaria sua sujeição direta à fiscalização do Tribunal de Contas.

Contudo, a prática consubstanciada em procedimentos fiscalizatórios adotados em algumas Cortes de Contas brasileiras, indica o contrário. Nesses órgãos fiscalizatórios de controle externo, a orientação principiológica estabelecida é no sentido de que, quando o recebimento de verbas públicas for eventual, não consistindo fonte de receita permanente da fundação, a fiscalização do uso de tal aporte público deverá ser realizada diretamente pelo ente repassador.

Por sua vez, na ocorrência da sobredita hipótese, com o fito de cumprir com sua atribuição fiscalizatória constitucional, o Tribunal de Contas realizaria o exame do dito repasse de verbas à fundação na apreciação das contas do ente público responsável pela operação financeira.

Dessarte, na ocorrência dessa hipótese fática, a fundação não se sujeitaria diretamente à fiscalização da Corte de Contas, sendo suas contas diretamente endereçadas ao Ministério Público, nos termos da Lei Civil.

De outro lado, como já se afirmou, se a palavra mantida for interpretada no sentido de considerar que qualquer valor repassado teria a função precípua de colaborar na mantença fundacional, então, conseqüentemente, todo e qualquer repasse, mesmo eventual, seria suficiente para configurar o requisito constitucional em apreço.

Contudo, parece ser bastante razoável e apropriado considerar a orientação principiológica da não-eventualidade, acima exposta, adotada em alguns Tribunais de Contas, porque dito entendimento decorre do enfrentamento prático de situações fáticas, que envolvem o assunto em debate, sob pena da teoria restar divorciada da realidade e possibilidade operacional vividas nas Cortes de Contas brasileiras.

Dessa forma, para fins de continuidade da exposição do presente estudo, roga-se ao leitor, objetivando a conclusão do presente trabalho, emprestar à palavra mantida o significado de não-eventualidade de repasses. Em outras palavras, para que uma fundação pudesse vir a ser considerada como mantida pelo Poder Público, far-se-ia necessário que a mesma recebesse verbas públicas de forma sistemática durante um exercício financeiro.

Seria o caso, por exemplo, de uma fundação que recebe verba de uma determinada municipalidade, cuja lei orçamentária tenha contemplado dotação orçamentária específica para realizar repasses periódicos à dita fundação, que possibilitem concluir que a verba pública repassada é ordinariamente utilizada pela fundação para fins de sua mantença.

Portanto, no caso de uma fundação instituída pelo Poder Público ter se utilizado de dinheiros públicos, a ponto de caracterizar a não-eventualidade de repasses, configurando a segunda qualificação constitucional – manutenção pelo Poder Público – em determinado exercício financeiro, a competência para exame das contas seria automaticamente transposta ao respectivo Tribunal de Contas. Dessa forma, evitar-se-ia a duplicidade fiscalizatória que parece ocorrer, como já referido, por exemplo, no âmbito das fundações sediadas e/ou atuantes no Estado do Mato Grosso.


7. Das fundações não-instituídas e mantidas pelo Poder Público

Já no caso de a fundação não-instituída e mantida pelo Poder Público, a utilização do raciocínio da necessidade de existência de dois pressupostos concomitantes não subsiste juridicamente para afastar a competência fiscalizatória dos Tribunais de Contas.

É que a ocorrência fática de tal situação configurará a hipótese constitucional prevista no art. 70, parágrafo único da Constituição Federal 14, que estabelece a sujeição de todo aquele, pessoa física ou jurídica de direito público ou privado que vier a se utilizar, arrecadar, guardar, gerenciar ou administrar dinheiros, bens ou valores públicos, à competência fiscalizatória dos Tribunais de Contas.

Assim, em razão de o Código Civil lhe atribuir o encargo da fiscalização originária das fundações, cabe ao Ministério Público Estadual, em um primeiro momento, verificar se a fundação fez uso de verbas públicas.

Se o fez, o Parquet irá transferir, de pronto, tal encargo fiscalizatório ao Tribunal de Contas, que através de seu "poder jurisdicional administrativo" 15 , que deriva de sua competência constitucionalmente estabelecida, realizará a fiscalização das contas de toda fundação que versar dinheiro público, nos moldes do art. 70. da Carta Magna.

Sobre o autor
Cleber Demetrio Oliveira da Silva

Sócio da Cleber Demetrio Advogados Associados, da RZO Consultoria e Diretor Executivo do Instituto de Desenvolvimento Regional Integrado Consorciado (IDRICON21), Especialista em Direito Empresarial pela PUCRS, Especialista em Gestão de Operações Societárias e Planejamento Tributário pelo INEJE, Mestre em Direito do Estado pela PUCRS, Professor de Ciência Política no curso de graduação da Faculdade de Direito IDC, de Direito Administrativo em curso de pós-graduação do IDC e Professor de Direito Administrativo e Direito Tributário em cursos de pós-graduação do UNIRITTER da rede Laureate International Universities.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Cleber Demetrio Oliveira. Fiscalização das contas das fundações: Ministério Público ou Tribunal de Contas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 524, 7 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6002. Acesso em: 22 dez. 2024.

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