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A Súmula nº 698 do STF e o tráfico ilícito de entorpecentes

Agenda 13/12/2004 às 00:00

A Súmula nº 698 do STF recentemente editada reza: "Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura". Como fica o cumprimento da pena no crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins?

Para podermos responder esta questão, é necessário entender um pouco dos posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, desde a vigência da Lei 9.455/97 até a edição da Súmula n. 698 pelo STF.

Pelo que ficou estatuído no § 7º da Lei n. 9.455/97, o condenado "iniciará" o cumprimento da pena em regime fechado. Isso significa que é possível a progressão de regime para os crimes de tortura.

Destacou Alberto Silva Franco a seguinte conclusão, defendendo a progressão para os demais crimes: "Não há razão lógica que justifique a aplicação do sistema progressivo aos condenados por tortura e que, ao mesmo tempo, se negue igual sistema aos condenados por crimes hediondos (...) a extensão da regra do § 7º do art. 1º da Lei 9.455/97, para todos os delitos referidos na Lei 8.072/90, equaliza hipóteses fáticas que estão constitucionalmente equiparadas e restabelece, em sua inteireza, a racionalidade e a sistematização do ordenamento penal". [1]

No mesmo sentido o acórdão da Sexta Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça, relatado pelo Min. Luiz V. Cernicchiaro. [2]

"RESP – 140.617-GO - EMENTA DA DECISÃO DE 02.09.1997:

Resp - Constitucional - Penal – Execução da Pena – Crimes Hediondos (Lei N. 8.072/90) - Tortura (LEI N. 9.455/97) -

Execução - Regime Fechado - A Constituição da República (Art. 5., XLIII) fixou regime comum, considerando-os inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como Crimes Hediondos. A Lei N. 8.072/90 conferiu-lhes a disciplina jurídica, dispondo: "A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado" (Art. 2., parag.. 1.). A Lei N. 9.455/97 quanto ao crime de tortura registra no art. 1. - 7.: "O condenado por crime previsto nesta lei, salvo a hipótese do parag. 2., iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. A lei N. 9.455/97, quanto a execução da pena, é mais favorável do que a Lei N. 8.072/90.

Afetou, portanto, no particular, a disciplina unitária determinada pela Carta Política. Aplica-se incondicionalmente.Assim, modificada, no particular a Lei dos Crimes Hediondos.

Permitida, portanto, quanto a esses delitos, a progressão de regimes".

Para Oswaldo Duek Marques, "nada impede possa dar-se uma interpretação sistemática, para estabelecer o tratamento mais benéfico aos crimes previstos na Lei 8.072/90". [3]

Na mesma linha do entendimento que acaba de ser citado vem o HC 7.197-DF, do STJ, 6.ª Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 04.06.1998, DJU de 03.08.1998, p. 325. V. ainda: HC 7.185-DF, STJ, 6.ª Turma, rel. Min. Vicente Leal, j. 19.05.1998, DJU de 10.08.1998, p. 81.

A questão da extensão da progressividade, prevista na Lei 9.455/97 para os crimes de tortura, a todos os crimes hediondos e equiparados, no entanto, não ganhou muito respeito em alguns Tribunais, principalmente no Supremo Tribunal Federal. Vale recordar que no Colendo Supremo Tribunal Federal a tese da aplicação analógica (in bonam partem) da lei citada a todos os crimes hediondos não foi aceita (STF, HC 76.371-SP, j. 25.03.1998). No Egrégio TJSP predominou também esse último entendimento restritivo (v. Ap.Crim. 229.0873/7, rel. Silva Pinto, j. 20.10.1997).

Questão da maior relevância é saber: A Lei da Tortura derrogou a Lei dos Crimes Hediondos?

O art. 1.º, § 7.º, da Lei de Tortura (Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997) contempla somente o início de cumprimento da pena em regime fechado enquanto o art. 2.º, § 1.º, da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90) determina o regime fechado durante todo o período de execução. Daí a questão: a Lei de Tortura, nesse particular, derrogou a Lei dos Crimes Hediondos? Em outros termos: em face da Lei de Tortura, os delitos previstos na Lei dos Crimes Hediondos admitem progressão, impondo-se o regime fechado somente no início do cumprimento da pena? Há duas orientações:

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1.ª ) a Lei n. 9.455/97 não derrogou a Lei dos Crimes Hediondos, sendo aplicável somente aos delitos de tortura (STF, HC 76.371, Plenário, rel. para o acórdão Ministro Sydney Sanches, DJU 22.5.98, p. 5; STF, HC 76.894, 1.ª Turma, rel. Ministro Ilmar Galvão, DJU 22.5.98, p. 5; STF, HC 76.936, 1.ª Turma, rel. Ministro Sydney Sanches, DJU 18.9.98, p. 5; STF, HC 76.617, 2.ª Turma, rel. Ministro Carlos Velloso, DJU 2.10.98, p. 3; STJ, RHC 7.619, 5.ª Turma, rel. Ministro José Dantas, DJU 28.9.98, p. 84; STJ, RHC 7.776, 6.ª Turma, rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJU 28.9.98, p. 120; STJ, HC 7.182, 5.ª Turma, rel. Ministro Félix Fischer, DJU 19.10.98, p. 112; STJ, Petição 956, 5.ª Turma, rel. Ministro Félix Fischer, DJU 19.10.98, p. 111; STJ, HC 9.574, 6.ª Turma, rel. Ministro Fernando Gonçalves, j. 10.8.99, DJU 20.99.99, p. 88; STJ, REsp 186.428, rel. p/ o acórdão o Ministro Fernando Gonçalves, DJU 20.9.99, p. 91; REsp 194.038, 6.ª Turma, rel. p/ o acórdão o Ministro Fernando Gonçalves, DJU 20.9.99, p. 92; REsp 196.241, 6.ª Turma, rel. p/ o acórdão o Ministro Fernando Gonçalves, DJU 20.9.99, p. 92);

2.ª) a Lei de Tortura derrogou a Lei dos Crimes Hediondos, de maneira que é admissível a progressão nos delitos previstos por esta última (STJ, HC 7.185, 6.ª Turma, rel. Ministro Vicente Leal, DJU 10.8.98, p. 81; STJ, RHC 8.046, 6.ª Turma, rel. Ministro Vicente Leal, DJU 14.12.98, p. 306; STJ, RHC 7.856, 6.ª Turma, rel. Ministro Vicente Leal, DJU 14.12.98, p. 304; STJ, HC 8.264, 6.ª Turma, rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJU 3.5.99, p. 180; STJ, HC 8.004, 6.ª Turma, rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJU 3.5.99, p. 179; STJ, STJ, HC 8.181, 6.ª Turma, rel. Ministro Fernando Gonçalves, j. 8.6.99, DJU 20.9.99, p. 86; STJ, HC 8.640, 6.ª Turma, rel. Ministro Vicente Leal, DJU 20.9.99, p. 87).

Verifica-se que, no STF, prevalecia pacificamente a orientação da inexistência de derrogação. No STJ, a 5.ª Turma adotava a primeira posição; a 6.ª Turma, a segunda.

Posição do Professor Damásio Evangelista de Jesus: a segunda, com fundamento no princípio constitucional da proporcionalidade. O art. 5.º, XLIII, da CF, equipara o delito de tortura aos hediondos e assemelhados. Ora, se a Lei de Tortura, posterior à Lei dos Crimes Hediondos, admite a progressão, de estender-se o benefício a estes e assemelhados, por aplicação retroativa da norma mais benigna (CF, art. 5.º, XL; CP, art. 2.º, parágrafo único).

Observação: nota-se que o Ministro Fernando Gonçalves, da 6.ª Turma do STJ, aparece nas duas correntes. Ocorre que mudou de opinião na sessão de 10 de agosto de 1999, enfraquecendo essa posição, que já havia perdido, pela aposentadoria, os votos do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro.

O Supremo Tribunal Federal sempre se mostrou contrário à tese que defendia a progressão de regime de cumprimento de pena aos crimes hediondos, dentre eles o de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, recentemente editando a Súmula nº 698, que dispõe: "Não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura", fundamentada em diversos acórdãos, dos quais extraímos seus principais fundamentos:

HC 76543 - Direito Constitucional, Penal e Processual Penal. Tráfico de entorpecentes. Concurso de Agentes. Pena-Base. Majoração da Pena (artigos 12, 14 e 18, III, da Lei n. 6.368/76). Regime de cumprimento de pena: integralmente fechado (Leis n.s 8.072/90, art. 1º, e 9.455/97, art. 1º, § 7º). Artigo 5º, XLIII, da Constituição Federal.

"De qualquer maneira, bem ou mal, o legislador resolveu ser mais condescendente com o crime de tortura do que com os crimes hediondos, o tráfico de entorpecentes e o terrorismo. Essa condescendência não pode ser estendida a todos eles, pelo Juiz, como intérprete da Lei, sob pena de usurpar a competência do legislador e de enfraquecer, ainda mais, o combate à criminalidade mais grave. A Constituição Federal, no art. 5º, inc., XLIII, ao considerar crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, não tratou de regime de cumprimento de pena. Ao contrário, cuidou, aí, de permitir a extinção de certas penas, exceto as decorrentes de tais delitos. Nada impedia, pois, que a Lei n. 9.455/97, definindo o crime de tortura, possibilitasse o cumprimento da pena em regime apenas inicialmente fechado – e não integralmente fechado". (4)

E o mesmo STF:

RE 237846 – "Regime de cumprimento de pena. A Lei n. 9.455/97, que admite a progressão do regime de cumprimento da pena para o crime de tortura, não se aplica aos demais delitos a que se refere a Lei n. 8.072/90, não sendo correto o entendimento de que o artigo 5º, XLIII, da Constituição deu tratamento unitário a todos esses crimes, inclusive quanto a regime de cumprimento de pena". (5)

E o Supremo Tribunal discutindo a matéria especificamente no caso da Lei de Tóxicos:

HC 76894 – "Habeas Corpus. Regime de Cumprimento da Pena. Crime hediondo. Tóxico. Lei n. 8.072/90. Lei n. 9.455/97.

O Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária no dia 25 de março de 1998, julgando o Hábeas Corpus n. 76371, Redator para o acórdão o eminente Ministro Sydney Sanches, concluiu que a Lei n. 9.455/97 (Lei de Tortura), quanto à execução da pena, não derrogou a Lei n. 8.072/90, não se viabilizando a progressão do regime de cumprimento da pena para os delitos tipificados na lei dos crimes hediondos". [6]

Assim, pelo entendimento firmado pelo STF e agora com a edição da Súmula nº 698, podemos concluir que, até o presente momento, o cumprimento da pena no crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será o regime integralmente fechado, da lei 8.072/90, art. 2º, § 1º, não estendendo o benefício concedido pela Lei 9.455/97, nos crimes de tortura.

A Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, no tópico que disciplina sobre a "Aplicação da Pena" assim dispõe: "sob a mesma fundamentação do Código vigente o Projeto busca assegurar a individualização da pena sob critérios mais abrangentes e precisos. Transcende-se assim, o sentido individualizador do Código vigente, restrito à fixação da quantidade da pena, dentro de limites estabelecidos para oferecer ao arbitrium iudices variada gama de opções, que em determinadas circunstâncias pode envolver o tipo da sanção a ser aplicada".

E continua na mesma Exposição de Motivos: "As penas devem ser limitadas para alimentarem no condenado a esperança da liberdade e a aceitação da disciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal. Restringiu-se, pois, no artigo 75, a duração das penas privativas da liberdade a 30 (trinta) anos, criando-se, porém, mecanismo desestimulador do crime, uma vez alcançado este limite. Caso contraio, o condenado à pena máxima pode ser induzido a outras infrações, no presídio, pela consciência da impunidade, como atualmente ocorre. Daí a regra de interpretação contida no artigo 75, § 2º: "sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, computando-se, para esse fim, o tempo restante da pena anteriormente estabelecida".

A Constituição Federal em seu artigo 5º, XLI, assim dispõe: A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:

a)privação ou restrição da liberdade;

b)perda de bens;

c)multa;

d)prestação social alternativa;

e)suspensão ou interdição de direitos;

Nas palavras de Montesquieu, "nem o Estado, nem sua Soberania são um fim em si mesmos; mas, estão a serviço do homem, e são limitados pelos direitos humanos".

A individualização da pena é um Princípio da Humanidade da Pena e da Dignidade da Pessoa Humana.

A determinação do cumprimento da pena em regime prisional fechado, sem possibilidade de progressão para o mais benéfico além de também representar um atentado ao Princípio da Individualização da Pena, redunda em tratamento que não atende à finalidade essencial da sanção criminal, que é a obtenção da Ressocialização do condenado.

Vamos aguardar novo posicionamento do Supremo Tribunal Federal, não esquecendo o caráter ressocializador da pena e a dignidade da pessoa humana, mesmo que esta pessoa esteja presa, o que aos olhos de muitos pode parecer horrível, pois, para estas pessoas, onde já se viu um preso ter direitos? Sim, um preso tem direitos e devem ser respeitados de acordo com a Carta Magna.

O Estado Brasileiro carece de políticas públicas sérias, e o alto nível de exclusão social faz aumentar cada vez mais a criminalidade, que depois será combatida com leis confusas e desprovidas de aspectos jurídicos e humanos.


Notas

1 Breves anotações sobre a lei 9.455/97, RBCCrim, n. 19, 1997, p. 69.

2 STJ, REsp 140.617-GO

3 Marques, Oswaldo Henrique Duek. Breves Considerações. Boletim IBCCrim, n. 56

4 STF, HC 76543/SC, DJ de 17/4/1998

5 STF, RE 237846/DF, DJ de 30/4/1999

6 STF, HC 76.894, DJ de 22/5/1998

Sobre o autor
Alexandre Pontieri

Advogado com atuação nos Tribunais Superiores (STF, STJ, TST e TSE), no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal) e, especialmente, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ); Consultor da área tributária com foco principalmente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF); Pós-Graduado em Direito Tributário pelo CPPG – Centro de Pesquisas e Pós-Graduação da UniFMU, em São Paulo; Pós- Graduado em Direito Penal pela ESMP-SP – Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Aluno Especial do Mestrado em Direito da UNB – Universidade de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PONTIERI, Alexandre. A Súmula nº 698 do STF e o tráfico ilícito de entorpecentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 524, 13 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6018. Acesso em: 18 nov. 2024.

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