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A disponibilidade compulsória como penalidade administrattiva e sua discutivel constitucionalidade

Agenda 09/09/2017 às 13:23

Lei Complementar do Estado de Goiás trata da Lei Orgânica do Ministério Público e prevê, dentre outras penalidades de praxe, a disponibilidade compulsória como penalidade administrativa. Contudo, essa sanção não está explicitada na Lei, o que torna discutível sua constitucionalidade, em face da clara ofensa a alguns dos princípios constitucionais, como o da não culpabilidade e o da proibição de penas.

Se alguém pensar que pode primeiro interpretar a Constituição para depois aplicá-la, é porque ainda está preso às amarras da hermenêutica clássica. É cediço que não interpretamos por partes ou em fatias. Gadamer já de há muito deixou isto bem claro: interpretar é aplicar, é concretizar, e isto se dá no interior do círculo hermenêutico, onde já há sempre antecipado (dependemos, pois, de nossa pré-compreensão, de nossos pré-juízos). A Constituição constitui; a Constituição vincula; a Constituição estabelece as condições do agir político-estatal. Afinal, como bem assinala Miguel Angel Pérez, “uma Constituição democrática e, antes de tudo, normativa, de onde se extraem duas conclusões: que a Constituição contém mandatos jurídicos obrigatórios, e que estes mandatos jurídicos não somente são obrigatórios, mas, muito mais do que isso, possuem uma especial força de obrigar, uma vez que a Constituição é a forma suprema de todo o ordenamento jurídico”. (Streck, 2014).


1.Da (im)previsão legal da disponibilidade compulsória

A Lei Complementar do Estado de Goiás trata da Lei Orgânica do Ministério Público e prevê, em seu artigo 194, como penalidades administrativas cabíveis aos membros do Ministério Público, as penas de advertência, censura, suspensão por até noventa dias, cassação da disponibilidade compulsória e a demissão. Não há previsão de penalidade de aposentadoria compulsória na Lei.

Art. 194. Os membros do Ministério Público estão sujeitos às seguintes penas administrativas, que constarão de seus assentamentos:

I - advertência;

II - censura;

III - suspensão por até noventa dias;

IV - cassação da disponibilidade compulsória e da aposentadoria;

V - demissão;

A penalidade prevista no artigo 194, IV, significa, quando da sua aplicação, a perda do cargo, e, por isso, a perda de vencimentos e, concomitantemente, a continuidade das vedações constitucionais durante sua aplicação.

O primeiro problema para a pena de cassação da disponibilidade compulsória é a não previsão da penalidade de disponilidade compulsória no rol do artigo 194 da referida Lei. A disponibilidade compulsória funcionaria como penalidade obrigatória ex ante a penalidade de cassação da disponibilidade compulsória; pois, senão, não há disponibilidade compulsória aplicada, não há o que ser cassado, por expressa impossibilidade legal lógica de aplicação.

A única previsão, na referida Lei estadual, acerca da disponibilidade compulsória é a explicação sobre em que consiste tal penalidade. O artigo 182 explica sobre vencimentos proporcionais e sobre a vacância na vaga ocupada anteriormente pelo membro colocado em disponibilidade. Neste artigo não há previsão de duração desta penalidade.

Art. 182 - A disponibilidade compulsória de membro do Ministério Público, que perceberá vencimentos e vantagens proporcionais ao tempo de serviço, será fundamentada em motivo de interesse público e determinada pelo Conselho Superior do Ministério Público por voto de 2/3 (dois terços) de seus integrantes, em sessão secreta.

§ 1º - A vaga decorrente de disponibilidade compulsória será, obrigatoriamente, provida por promoção.

Um conceito de disponibilidade compulsória disponível está na Lei Orgânica da Magistratura (LOMAN- Estatuto da Magistratura) e que se aplica no presente caso foi o exarado no processo nº 0007085-47.2012.2.00.0000, julgado em 28/05/2013, do Conselho Nacional de Justiça em que o conceito de disponibilidade compulsória foi assim ementado:

O Estatuto da Magistratura (LOMAN) e a Resolução 135 deste Conselho cuidam das sanções funcionais aplicáveis aos magistrados nesta ordem: I) advertência, II) censura, III) remoção compulsória, IV) disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, V) aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço.  A disponibilidade, enquanto pena, significa inatividade remunerada com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço (art. 57, caput, da LOMAN). Enquanto sanção disciplinar a disponibilidade acarreta sérias restrições ao punido. Coloca-o na inatividade com vencimentos proporcionais, mas o mantém vinculado à Instituição com o dever de observar todas as vedações aplicáveis à carreira, entre elas a de exercer outra atividade remunerada, além daquelas legalmente permitidas.  A disponibilidade só não é mais severa do que a aposentadoria compulsória porque permite o retorno do apenado a atividade pelo aproveitamento, decorrido o prazo mínimo de 2 (dois) anos do afastamento, segundo dispõe o art. 57, § 1º, da LOMAN: " O magistrado, posto em disponibilidade por determinação do Conselho, somente poderá pleitear o seu aproveitamento, decorridos dois anos do afastamento".
 Mas, se esse retorno não for admitido, a disponibilidade torna-se de fato mais severa do que a aposentadoria por implicar, como dito, no dever de observar as vedações aplicadas à Magistratura. Por essa razão, sustenta-se que a disponibilidade não pode produzir efeitos sem data, nem deixar o aproveitamento do magistrado à discricionariedade absoluta do Tribunal por manifesta incompatibilidade com os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da vedação constitucional a perpetuidade ou vitaliciedade das sanções.
                                                                         

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Diferente da LOMAN, a Lei Complementar Estadual nº 25/98 não prevê o tempo máximo para a duração da disponibilidade compulsória e, somente contempla o previsto na LOMAN no que se refere às restrições impostas ao colocado em disponibilidade compulsória, entre elas, a sujeição às vedações constitucionais, o que se apresenta como o segundo problema da disponibilidade compulsória por meio da Lei Complementar Goiana.

Dispõe o artigo 181, § único da Lei Complementar Estadual nº 25/98:

Art. 181 - Em caso de extinção do órgão de execução da comarca ou mudança da sede da Promotoria de Justiça, será facultado ao Promotor de Justiça remover-se para outra Promotoria de igual entrância ou categoria, ou obter a disponibilidade com vencimentos integrais e a contagem do tempo de serviço como se estivesse em exercício. Parágrafo único- O membro do Ministério Público em disponibilidade remunerada continuará sujeito às vedações constitucionais e será classificado em quadro especial, provendo-se a vaga que ocorrer.

Desta forma, a penalidade (não prevista na Lei) de disponibilidade compulsória assume um viés de perpetuidade e caracteriza-se por ser mais grave do que a própria pena administrativa de aposentadoria compulsória.

Este é o entendimento do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot no julgamento paradigma, o Mandado de Segurança nº 32.271/DF, sustentou que “a aplicação da disponibilidade por prazo indeterminado torna-se sanção mais gravosa que a aposentadoria compulsória”.

Nesse julgamento, a Ministra Carmem Lúcia, que foi a relatora do MS 32.271/DF- impetrado por uma magistrada do Estado do Pará que fora compelida pelo CNJ a aguardar julgamento definitivo de ação de improbidade administrativa- decidiu que

Assiste razão à Impetrante ao afirmar ilegal e abusiva a decisão pela qual condicionado seu retorno ao desfecho definitivo daquela ação judicial, pois tanto tornaria a pena de disponibilidade ainda mais grave que a de aposentadoria compulsória (...) Esse entendimento é encampado pelo Procurador-Geral da República: Isso porque a aplicação da disponibilidade por prazo indeterminado torna-se sanção mais gravosa que a aposentadoria compulsória, pois nesta o cidadão pode estabelecer novos rumos para a sua atividade profissional, enquanto naquela fica submetido às limitações impostas aos magistrados. Portanto, salvo na hipótese de fundamentação idônea, o aproveitamento do magistrado não pode ficar adstrito à discricionariedade absoluta do Tribunal ou do CNJ, sob pena de malferimento aos princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da vedação constitucional à perpetuidade ou vitaliciedade das


2 -  Da lesão aos princípios da não culpabilidade, da proibição de penas de caráter perpétuo, da proporcionalidade e da razoabilidade.

A disponibilidade compulsória, da forma que se encontra prevista na Lei Complementar Estadual nº 25/98, fere o princípio da não culpabilidade, da proibição de penas de caráter perpétuo, da proporcionalidade e da razoabilidade, insculpidos no artigo 5º, incisos LVII (princípio da não culpabilidade), XLVII, b (proibição de pena de caráter perpétuo) e na proibição do excesso por parte do Estado nas garantias e nos direitos fundamentais, pois implica numa restrição de direitos de membro do Ministério Público em razão da atemporalidade da disponibilidade compulsória conforme prevista nesta Lei Estadual.

No julgamento da ADPF 144, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) com a finalidade de permitir aos juízes eleitorais considerarem, para fins de inelegibilidade, sentenças condenatórias em face de candidatos, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de assentar que somente após o trânsito em julgado – não bastaria nem mesmo a sentença, o que não dizer do mero ajuizamento de uma ação, como na espécie – seria possível impor restrição de direito sem violar a não culpabilidade.

E M E N T A: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - POSSIBILIDADE DE MINISTROS DO STF, COM ASSENTO NO TSE, PARTICIPAREM DO JULGAMENTO DA ADPF - INOCORRÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE PROCESSUAL, AINDA QUE O PRESIDENTE DO TSE HAJA PRESTADO INFORMAÇÕES NA CAUSA - RECONHECIMENTO DA LEGITIMIDADE ATIVA "AD CAUSAM" DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - EXISTÊNCIA, QUANTO A ELA, DO VÍNCULO DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA - ADMISSIBILIDADE DO AJUIZAMENTO DE ADPF CONTRA INTERPRETAÇÃO JUDICIAL DE QUE POSSA RESULTAR LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL - EXISTÊNCIA DE CONTROVÉRSIA RELEVANTE NA ESPÉCIE, AINDA QUE NECESSÁRIA SUA DEMONSTRAÇÃO APENAS NAS ARGÜIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE CARÁTER INCIDENTAL - OBSERVÂNCIA, AINDA, NO CASO, DO POSTULADO DA SUBSIDIARIEDADE - MÉRITO: RELAÇÃO ENTRE PROCESSOS JUDICIAIS, SEM QUE NELES HAJA CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL, E O EXERCÍCIO, PELO CIDADÃO, DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA - REGISTRO DE CANDIDATO CONTRA QUEM FORAM INSTAURADOS PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, NOTADAMENTE AQUELES DE NATUREZA CRIMINAL, EM CUJO ÂMBITO AINDA NÃO EXISTA SENTENÇA CONDENATÓRIA COM TRÂNSITO EM JULGADO - IMPOSSIBILIDADE CONSTITUCIONAL DE DEFINIR-SE, COMO CAUSA DE INELEGIBILIDADE, A MERA INSTAURAÇÃO, CONTRA O CANDIDATO, DE PROCEDIMENTOS JUDICIAIS, QUANDO INOCORRENTE CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO - PROBIDADE ADMINISTRATIVA, MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DO MANDATO ELETIVO, "VITA ANTEACTA" E PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - SUSPENSÃO DE DIREITOS POLÍTICOS E IMPRESCINDIBILIDADE, PARA ESSE EFEITO, DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO CRIMINAL (CF, ART. 15, III) - REAÇÃO, NO PONTO, DA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA DE 1988 À ORDEM AUTORITÁRIA QUE PREVALECEU SOB O REGIME MILITAR - CARÁTER AUTOCRÁTICO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LEI COMPLEMENTAR Nº 5/70 (ART. 1º, I, "N"), QUE TORNAVA INELEGÍVEL QUALQUER RÉU CONTRA QUEM FOSSE RECEBIDA DENÚNCIA POR SUPOSTA PRÁTICA DE DETERMINADOS ILÍCITOS PENAIS - DERROGAÇÃO DESSA CLÁUSULA PELO PRÓPRIO REGIME MILITAR (LEI COMPLEMENTAR Nº 42/82), QUE PASSOU A EXIGIR, PARA FINS DE INELEGIBILIDADE DO CANDIDATO, A EXISTÊNCIA, CONTRA ELE, DE CONDENAÇÃO PENAL POR DETERMINADOS DELITOS - ENTENDIMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O ALCANCE DA LC Nº 42/82: NECESSIDADE DE QUE SE ACHASSE CONFIGURADO O TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO (RE 99.069/BA, REL. MIN. OSCAR CORRÊA) - PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA: UM DIREITO FUNDAMENTAL QUE ASSISTE A QUALQUER PESSOA - EVOLUÇÃO HISTÓRICA E REGIME JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO ESTADO DE INOCÊNCIA - O TRATAMENTO DISPENSADO À PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA PELAS DECLARAÇÕES INTERNACIONAIS DE DIREITOS E LIBERDADES FUNDAMENTAIS, TANTO AS DE CARÁTER REGIONAL QUANTO AS DE NATUREZA GLOBAL - O PROCESSO PENAL COMO DOMÍNIO MAIS EXPRESSIVO DE INCIDÊNCIA DA PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA - EFICÁCIA IRRADIANTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DESSE PRINCÍPIO AO ÂMBITO DO PROCESSO ELEITORAL - HIPÓTESES DE INELEGIBILIDADE - ENUMERAÇÃO EM ÂMBITO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 14, §§ 4º A 8º) - RECONHECIMENTO, NO ENTANTO, DA FACULDADE DE O CONGRESSO NACIONAL, EM SEDE LEGAL, DEFINIR "OUTROS CASOS DE INELEGIBILIDADE" - NECESSÁRIA OBSERVÂNCIA, EM TAL SITUAÇÃO, DA RESERVA CONSTITUCIONAL DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 14, § 9º) - IMPOSSIBILIDADE, CONTUDO, DE A LEI COMPLEMENTAR, MESMO COM APOIO NO § 9º DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO, TRANSGREDIR A PRESUNÇÃO CONSTITUCIONAL DE INOCÊNCIA, QUE SE QUALIFICA COMO VALOR FUNDAMENTAL, VERDADEIRO "CORNERSTONE" EM QUE SE ESTRUTURA O SISTEMA QUE A NOSSA CARTA POLÍTICA CONSAGRA EM RESPEITO AO REGIME DAS LIBERDADES E EM DEFESA DA PRÓPRIA PRESERVAÇÃO DA ORDEM DEMOCRÁTICA - PRIVAÇÃO DA CAPACIDADE ELEITORAL PASSIVA E PROCESSOS, DE NATUREZA CIVIL, POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA - NECESSIDADE, TAMBÉM EM TAL HIPÓTESE, DE CONDENAÇÃO IRRECORRÍVEL - COMPATIBILIDADE DA LEI Nº 8.429/92 (ART. 20, "CAPUT") COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 15, V, c/c O ART. 37, § 4º) - O SIGNIFICADO POLÍTICO E O VALOR JURÍDICO DA EXIGÊNCIA DA COISA JULGADA - RELEITURA, PELO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, DA SÚMULA 01/TSE, COM O OBJETIVO DE INIBIR O AFASTAMENTO INDISCRIMINADO DA CLÁUSULA DE INELEGIBILIDADE FUNDADA NA LC 64/90 (ART. 1º, I, "G") - NOVA INTERPRETAÇÃO QUE REFORÇA A EXIGÊNCIA ÉTICO-JURÍDICA DE PROBIDADE ADMINISTRATIVA E DE MORALIDADE PARA O EXERCÍCIO DE MANDATO ELETIVO - ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL JULGADA IMPROCEDENTE, EM DECISÃO REVESTIDA DE EFEITO VINCULANTE.
(ADPF 144, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 06/08/2008, DJe-035 DIVULG 25-02-2010 PUBLIC 26-02-2010 EMENT VOL-02391-02 PP-00342 RTJ VOL-00215-01 PP-00031)

Por meio deste julgado, verifica-se que nem mesmo Lei Complementar poderia mitigar o princípio da não culpabilidade, verdadeira cláusula pétrea, bem como, faz-se necessária uma “condenação irrecorrível”, tal o “significado político e o valor jurídico da coisa julgada”, para que seja possível cogitar de imposição de alguma restrição de direito; o que se aplica no caso de uma penalidade provisória atemporal, como é o caso da disponibilidade compulsória.

Tratando-se a disponibilidade compulsória de penalidade propriamente dita antecipada e ad perpetuam, em ambas as hipóteses, na esteira de entendimento do STF, há de prevalecer o princípio da não culpabilidade. Somente após o trânsito em julgado de uma sentença em prejuízo do paciente seria possível cogitar na aplicação de medida administrativa sem incorrer em violação à normatização constitucional para a aplicação de uma penalidade administrativa desse teor punitivo. 

Além da lesão ao princípio da não culpabilidade, a disponibilidade compulsória da Lei Complementar Goiana fere o princípio da proibição de penas de caráter perpétuo; que não se confunde com pena perpétua, mas sim, a determinação temporal da penalidade a ser aplicada; incluindo aí, a penalidade administrativa.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que “as penas de caráter perpétuo tem conceito mais amplo do que a prisão perpétua” e o cerne da questão está justamente na ausência de previsão temporal de aplicação da penalidade de disponibilidade compulsória na Lei Complementar Estadual nº 25/98 (diferente do previsto no artigo 57, § 1º da LOMAN).

RHC - PENAL - PENA - EFEITOS - A SANÇÃO PENAL E DE EFEITO LIMITADO NO TEMPO. VEDADA A PRISÃO DE CARATER PERPETUO (CONST. ART. 5., XLVII, B). O CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE NÃO PODE SER SUPERIOR A 30 ANOS (CP, ART. 75). A EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE, QUANTO AO TEMPO, FAZ CESSAR OS EFEITOS DA CONDENAÇÃO: PRESCRIÇÃO, DECADENCIA, PEREMPÇÃO (CP ART. 107, IV). A REABILITAÇÃO, EM PARTE, TAMBEM PODE SER INVOCADA (CP ART. 93). A REINCIDENCIA (CP ART. 61, I) E DE EFEITO LIMITADO NO TEMPO (CP ART. 64, I). TAMBEM OS ANTECEDENTES PENAIS NÃO SÃO PERPETUOS (STJ, 6. TURMA, RESP 67.593-6 SP). PENAS DE CARATER PERPETUO TEM CONCEITO MAIS AMPLO DO QUE - PRISÃO PERPETUA. CARATER, AI, TRADUZ IDEIA DE - QUALIDADE, ESPECIE. TODA SANÇÃO PENAL, NO BRASIL, E DE EFEITO LIMITADO NO TEMPO. (RHC 6.727/SP, Rel. Ministro LUIZ VICENTE CERNICCHIARO, SEXTA TURMA, julgado em 24/11/1997, DJ 20/04/1998, p. 104).

No que se refere à lesão aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, cabe trazer à baila o ensinamento de Mendes e Monet Branco (2017) acerca destes princípios.

De acordo com esses autores, a utilização do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso no Direito constitucional envolve, como observado, a apreciação da necessidade e adequação da providência legislativa. Neste caso, as providências legislativas a serem aplicadas são os princípios da não culpabilidade e da proibição de pena de caráter perpétuo.

Seguindo essa linha, o Estado pode exercer seu direito de punir alguém, mas sem excessos, a fim de verificar segurança na aplicação e efetividade das garantias e direitos constitucionais, da qual a não culpabilidade e a proibição de pena de caráter perpétuo são exemplos.

Isso demonstra que não há proporcionalidade, nem mesmo razoabilidade na penalidade administrativa provisória de disponibilidade compulsória por tempo indeterminado, conforme previsto na Lei Complementar Estadual Goiana nº 25/98, em razão da penalidade provisória ser mais gravosa que a própria penalidade definitiva da aposentadoria compulsória.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que impor, cautelarmente, penalidade mais gravosa do que a penalidade definitiva fere o princípio constitucional da proporcionalidade.

A vedação ao direito de recorrer em liberdade revela-se incompatível com o regime inicialmente semiaberto fixado na sentença penal condenatória, a qual se tornou imutável para a acusação em razão do trânsito em julgado. 4. A situação traduz verdadeiro constrangimento ilegal, na medida em que se impõe ao paciente, cautelarmente, regime mais gravoso a sua liberdade do que aquele estabelecido no próprio título penal condenatório para o cumprimento inicial da reprimenda, em clara afronta, portanto, ao princípio da proporcionalidade (HC nº 123.226/PI, Primeira Turma, Ministro Dias Toffoli, DJe de 17/11/14).

EMENTA Habeas corpus. Penal. Tráfico de drogas. Paciente surpreendido na posse de pouco menos de 7 (sete) quilos de cocaína na tentativa de embarcar para a Nigéria. Condenação. Dosimetria. Incidência da causa especial de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei de Drogas em seu grau máximo. Impossibilidade. Dedicação à atividade criminosa reconhecida por instância ordinária. Impropriedade do habeas corpus para se revolver o contexto fático-probatório da causa e para concluir diversamente. Precedentes. Denegação da ordem. Fixação de regime inicial semiaberto. Vedação ao direito de recorrer em liberdade. Incompatibilidade. Violação do princípio da proporcionalidade. Precedentes. Habeas corpus concedido de ofício. 1. A negativa de aplicação da causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/06 pelas instâncias ordinárias não está lastreada em presunções, ilações ou conjecturas. Pelo contrário, apresentaram elas elementos concretos que apontam não só que o paciente atuou conscientemente a rogo de organização criminosa, como também se dedicava à atividade ilícita, ficando demonstrado que ele teria realizado outras viagens em circunstâncias indicativas de transporte de drogas. 2. Tal qual se deu na espécie, ”a quantidade e a natureza do entorpecente, os apetrechos utilizados e as circunstâncias em que a droga foi apreendida podem constituir o amparo probatório para o magistrado reconhecer a dedicação do réu à atividade criminosa” (HC nº 119.053/SP, Primeira Turma, Relator o Ministro Luiz Fux, DJe de 23/4/14). 3. A invocação pelas instâncias ordinárias de que o paciente se dedicava à atividade criminosa obsta, de fato, a aplicação da benesse do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/06, sendo certo que afastar essa premissa demandaria o reexame dos fatos e das provas, o qual o habeas corpus não comporta. Precedentes. 4. Habeas corpus denegado. 5. A vedação ao direito de recorrer em liberdade revela-se incompatível com o regime inicial semiaberto fixado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. 6. A situação traduz verdadeiro constrangimento ilegal, na medida em que se impõe ao paciente, cautelarmente, regime mais gravoso a sua liberdade do que aquele estabelecido no próprio título penal condenatório para o cumprimento inicial da reprimenda, em clara afronta, portanto, ao princípio da proporcionalidade. 7. Ordem concedida de ofício. (HC 141. 292/SP, Segunda Turma, Relator Ministro Dias Toffoli, DJe de 22/05/2017).

Desta feita, em razão da ausência de previsão expressa da penalidade de disponibilidade compulsória, há incongruência lógica na aplicação de penalidade  de cassação da disponibilidade compulsória, ou seja, cassa-se o que não foi aplicado.

Além desta incongruência, a Lei Complementar Estadual nº 25/98 por não prever prazo de duração, enquanto ocorre restrição de direitos (redução de vencimentos, vacância do cargo e vedações constitucionais) para a penalidade de disponibilidade compulsória, é claramente ofensora dos princípios constitucionais da não culpabilidade, proibição de penas de caráter perpétuo, da proporcionalidade e razoabilidade. Por isso, neste aspecto, é inconstitucional.


Referências bibliográficas

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL, Lei Complementar nº 35, de 14 de março de 1979. Dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp35.htm.

GOIÁS, Lei Complementar nº 25, de 06 de julho de 1998. Institui a Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de Goiás e dá outras providências. Disponível :http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/leis_complementares/1998/lei_complementar_n25.htm

MENDES, Gilmar F, GONET BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2014.

Sobre a autora
Aline Seabra Toschi

Doutora em Direito pelo Uniceub-DF, Mestre em Ciências Penais pela UFG. Professora de Processo Penal e coordenadora do estágio do Curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis-GO.

Informações sobre o texto

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