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O tráfico humano: estudo sobre a legislação e o desrespeito à dignidade da pessoa

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6        As causas do tráfico humano

O tráfico humano é uma prática criminosa que não possui fronteiras. A Organização Internacional do Trabalho[20] - OIT - nos traz os principais fatores que favorecem o tráfico humano como sendo: a globalização; a pobreza, responsável por propiciar a falta de perspectivas; a ausência de oportunidades de trabalho – os aliciadores se utilizam desse déficit para ludibriar a vítima, com propostas de empregos de remuneração vantajosa, sendo, também, o fator primordial da emigração; a instabilidade política, econômica e civil em regiões de conflito; a violência doméstica; a emigração indocumentada; o turismo sexual -  uma maneira articulada de exploração, pois pessoas especializadas promovem o turismo a por exemplo: hotéis, bares, boates e casas de show; a corrupção de funcionários públicos e; as leis deficientes.

Entendermos as causas fará com que possamos limitá-las. Em sequência, passaremos a abordar a necessidade de se reconhecer o princípio da dignidade da pessoa humana.


 7 A dignidade da pessoa humana

O Direito Fundamental inerente à pessoa, o princípio da dignidade humana, constitui o rol dos Direitos Humanos e é um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, estando enunciada em nossa Constituição Federal de 1988[21], em seu artigo 1°, inciso III.

A palavra “dignidade” vem do latim dignitas e dignus, que significam o que tem valor, aquilo que é digno ou valioso[22].

Tratar sobre a dignidade humana é rememorar o passado histórico, principalmente o pós-guerra em que vidas humanas foram desrespeitadas em sua integridade, e perceber a primazia desse direito no mundo globalizado.

Dentre as incontáveis violações de direitos pelo tráfico humano, vê-se o desrespeito a dignidade da pessoa, pois as vítimas desse crime são submetidas às situações humilhantes, desumanas e, muitas vezes, sem a mínima condição de subsistência.

Combater o tráfico humano é uma das maneiras de respeitar e efetivar essa gama de direitos, pois ele é a valoração que identifica o ser humano enquanto tal, é o preceito que o protege de tratamentos degradantes e que assegura mínimas condições de sobrevivência.

Assim, pela perspectiva da nossa Carta Magna, efetivados os direitos à liberdade, vida digna, igualdade e segurança tem-se efetivado o princípio da dignidade humana em sua integralidade.

Após, teceremos comentários sobre como o tráfico humano em países diversos.


 8 Analogia estrangeira

Em âmbito internacional, é unanime a preocupação com o tráfico de pessoas. Os países fundadores e integrantes do Mercosul - Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai - são signatários de tratados internacionais como a Convenção da Organização das Nações Unidos sobre o Crime Organizado Transnacional e de seus Protocolos Adicionais, o Protocolo de Palermo e Combate ao Tráfico de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea. A Europa, seguindo a mesma linha parte dos países fundadores e integrantes do Mercosul, também adotam e adequaram suas legislações internas ao proposto pelo Protocolo de Palermo.

8.1 Argentina

Na Argentina, dentre os principais meios de enfrentamento ao tráfico humano, há a Lei n° 26.364 que trata da “Prevención y Sancion de La Trata de Personas y Asistencia a sus Victimas”. Como no Brasil, o enfrentamento ao tráfico na Argentina objetiva com as leis internas e tratados prevenir, reprimir e proteger as vítimas do tráfico de pessoas, porém, de forma diferente da nacional, conceitua o tráfico humano através da Lei n° 23.364 de duas maneiras: a primeira para maiores de 18 (dezoito) anos e outra para as menores de 18 (dezoito) anos, sendo afins e tendo ambas conceituações a base do Protocolo de Palermo.

A legislação argentina também prevê as modalidades de tráfico humano - escravidão, servidão ou práticas análogas a estas, trabalhos ou serviços forçados, comércio sexual e extração de órgãos do corpo humano - e medidas de assistência e de efetivação de direitos fundamentais as vítimas como, o recebimento de alimentação, proteção tanto ao prestar testemunho quanto a sua família e recebimento de documentação. Há, ainda, a Oficina de Rescate Y Acompañamiento que também visa a prevenção e investigação do tráfico humano e conta com equipe multidisciplinar, constituída por assistentes sociais, psicólogos e advogados.

8.2 Paraguai

O Paraguai não possui uma legislação especificamente destinada para o enfrentamento do tráfico humano, porém, desenvolve ações sociais internas como a promoção de seminários e congressos, possuindo, também, o Plan Nacional de Prevención y Erradicación de La Explotación Sexual de Niños, Niñas y Adolescentes – ESNA (2004) e Plan Nacional de Prevención y Erradicación Del Trabajo Infantil y Protección Del Trabajo de los Adolescentes (2003-2008).

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8.3 Uruguai

O Uruguai, desde 2004, vem introduzindo em sua legislação medidas que criminalizam o tráfico de pessoas, mas ainda não possui ações públicas próprias para o crime em estudo. No Estado foi aprovada a Lei 17.815 que aborda a “Violência Sexual Comercial ou Não Comercia cometida contra Crianças, Adolescentes e Incapazes” e a Lei 18.250 que se refere as migrações, em especial ao tráfico de pessoas. Sobre as medidas de políticas públicas o governo paraguaio busca através da sua, ainda embrionária, implementação fortalecer sua legislação e estar apto a elaborar medidas de prevenção[23].

8.4 Alemanha

A legislação penal do Estado Alemão, em 2005, foi alterada na sessão dos crimes contra a liberdade para se adequar ao Protocolo de Palermo, sendo, assim, inclusas ao delito do tráfico humano a exploração sexual e laboral. Em ambas as modalidades a pena-base é a de prisão de 6 (seis) meses a 10 (dez) anos.

8.5 Espanha

Na Espanha, foi incluso ao Código Penal o Título VII, com o artigo 177, itens 1 a 11, que aborda as questões relativas ao tráfico humano com base no Protocolo de Palermo, dando enfoque a exploração sexual, laboral e a extração ou comercialização de órgãos. Sendo a pena de 5 (cinco) a 8 (oito) anos de prisão.

Internamente, a legislação é criticada pelos doutrinadores pois não considerou na positivação as necessidades e realidade do País. A tipificação também é taxativa e deixou de abranger algumas condutas que poderiam constituir o crime, como a imposição forçada de matrimônio.

8.6 Itália

Dentre os países europeus, a Itália é o país com mais vítimas de tráfico humano[24]. Devido o grande número de migração, tratar sobre o tráfico humano se tornou relevante para a política italiana, que viu o aumento de 1.192 (mil e cento e noventa e dois) casos em 1990 para 3.004 (três mil e quatro) em 2001 nos delitos envolvendo a prostituição.

Os principais artigos que dizem respeito ao tráfico de pessoas se encontram no Capítulo III, Dos delitos contra a liberdade individual, do Código Penal Italiano. Tratando diretamente sobre a temática se tem os artigos 600, 601 e 602, que abordam questões como a redução do ser humano a escravo ou práticas análogas, como a servidão e sobre a compra e venda de escravos. A penalidade é a prisão, que pode ser de 8 (oito) a 20 (vinte) anos.

O artigo 601, em especial, se preocupa em descrever as maneiras que a indução pode ser efetivada e destaca, ainda, que a pena pode vir a ser majorada se os crimes forem cometidos contra pessoas menores de 18 (dezoito) anos ou com finalidade de exploração da prostituição ou remoção de órgãos[25].

Sequencialmente, após a exposição da legislação desses países, será abordado alguns casos de efetivação da tipificação em estudo.


 9 Estudo de casos

Como já mencionado no presente estudo, os homens também podem ser vítimas de tráfico humano, em território brasileiro casos como o de “Ronaldo” são propensos a se repetirem. Tendo fugido de sua casa na Bolívia aos 14 (quatorze) anos e sem documentos “Ronaldo”, quando trabalhava de garçom, viu-se surpreendido pela proposta de “coiote” que lhe oferecia emprego e acomodação em território brasileiro. Chegando ao seu destino, “Ronaldo” possuiu duas opções: pagar pela viagem ou trabalhar durante um ano para o “coiote” sem receber nada e com a condição de não procurar emprego em outro local. Como não possuía nenhum dinheiro aceitou se submeter as restrições impostas e durante 1 (um) ano e 6 (seis) meses, tempo de sua estadia, e terminou por trabalhar em diferentes oficinas de costura.

A pessoa que o trouxe para o Brasil possuía uma oficina de costura, local em que “Ronaldo” costurava retalhos durante todo o dia. Após se perder na cidade de São Paulo, quando havia saído para comprar remédios, “Ronaldo” conheceu um compatriota e juntamente com este saiu em busca de um novo emprego. Trabalhou em Guarulhos/SP, onde os seus expedientes se estendiam até a madrugada, depois próximo ao metrô Armênia, onde não recebia pagamento e era ameaçado de violência caso não cumprisse a jornada exaustiva. Chegou a reencontrar o “coite”, que lhe cobrou a dívida de sua passagem, e pedindo a seu novo chefe para arcar com a dívida mais uma vez se viu subordinado, porém desta vez considerava o patrão seu amigo. Após prestar o depoimento não registrou nenhum Boletim de Ocorrência para que os crimes denunciados (tráfico de migrantes e trabalho análogo ao de escravos) fossem apurados, mas obteve a carteira de trabalho provisória e declarou que não pretende voltar a Bolívia[26].

Aos 13 anos, e com uma família instável, Jane - Nigéria - passa a ser mais uma das vítimas de tráfico humano para fins de exploração sexual. Vendida por grupos de traficantes no Reino Unido, Jane foi trocada por diferentes grupos de homens pelo país “Eles me jogavam para fora do carro. Queimavam meu cabelo, chegaram a quebrar ossos do meu rosto. Eles tentaram jogar gasolina e colocar fogo em mim”, relata. Durante 09 (nove) anos, algumas vezes durante todos os dias, Jane era abusada. Somente escapando quando entrou em contato com o Exército da Salvação, em seu relato, afirma, ainda, que a polícia e outras agências não acreditavam no que ela dizia[27].

Silvânia de Jesus, de 47 anos, quando teve o seu quarto filho em uma maternidade de Belo Horizonte/MG, foi enganada por um casal, que ela conhecia, que alegavam que o recém-nascido tinha uma doença e, para tratá-lo nos Estados Unidos, precisavam de sua autorização. Analfabeta, assinou os papéis e após 07 (sete) anos tem conhecimento de que o filho está em Curitiba/PR e que o casal tenta conseguir na Justiça, com base nos documentos assinados, a adoção da criança[28].

Pevesi, pai de Paulo Veronesi, relata a história de seu filho. Em 2000 quando o filho aos 10 (dez) anos sofreu uma queda em um playgroud do prédio em que residi, foi levado ao hospital e com vida teve os seus órgãos retirados por médicos que haviam atestado o seu óbito. Pevesi mencionou que o “esquema” somente foi descoberto porque, por ambição, percebeu que havia cobranças indevidas na conta hospitalar[29].

Luísa e Cláudia, moradoras do Rio de Janeiro, visando a melhora na qualidade de vida aceitaram a proposta de emprego em Israel, feita por Rosana, para trabalharem como garçonetes em um restaurante brasileiro em Tel Aviv, com o salário de US$ 1.500,00 (mil e quinhentos dólares) por mês. Luísa em seu relato diz que “Era muito mais do que eu poderia ganhar com as minhas faxinas (...) Se eu ficasse lá um ano, daria pra juntar o dinheiro para realizar o sonho de comprar uma casa. Aceitei”. Ao saírem do aeroporto do destino, as amigas se viram obrigadas a entregar seus passaportes aos israelenses. Levada para um prostíbulo, Luísa conheceu outras brasileiras, também vítimas que a explicaram que caso se recusasse a os obedecer. Aliciadores “iriam me bater, me deixar com fome, ou até sumir comigo”. Durante 04 (quatro) meses viu sua liberdade cerceada, mas conseguiu fugir e entrar em contato com o Consulado Brasileiro[30].

Sobre os autores
Leonardo Barreto Ferraz Gominho

Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

Lígia de Moraes Cruz

Acadêmica de Direito da Facesf.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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