No final dos anos 80 o Ministério Público, movido pelos ideais libertários do regime democrático e Estado de Direito que se consolidavam no Brasil, tornou-se a grande sentinela dos interesses metaindividuais, cujo arroubo e fascínio proporcionados por uma infinita gama de atribuições que ainda busca açambarcar mudou definitivamente seu perfil institucional, quiçá, de seus membros. Felizmente, todo esse avanço histórico restou ainda mais fortalecido pela investigação criminal, que, sem dúvida alguma, encontra-se legitimada pelo poder constituinte originário e seu verdadeiro titular, o povo. De todo modo, o Tribunal do Júri; instituição de aporte milenar, e símbolo rebenque a qualquer espécie de afronta aos direitos fundamentais, revela-se na sociedade contemporânea muito mais importante que outrora, apesar de todas as críticas.
Homens qualitativos que notabilizaram o cenário jurídico (a exemplo do estadunidense Clarence Darrow; de Ferri, na Itália; Maurice Garçon, na França; Erskine, na Inglaterra; e Mongenout Bonfim, no Brasil, dentre tantos outros) fizeram da palavra e dialética na tribuna seu propósito de vida. Donos de retórica pujante construída nos plenários da Justiça, tiveram o destemor no cumprimento do dever ao se defrontarem com a face mais escura do fenômeno criminal, a morte, ainda que dela se possa falar em um dia de vida.
Nos Estados Unidos o Júri é marcado pelo processamento de causas cíveis e penais. Na França, berço dos direitos humanos, forma-se o escabinato, ou seja, três magistrados e nove jurados, cuja culpa do acusado apenas será reconhecida em caso de oito votos dentre os doze integrantes. Na Espanha, a Constituição prevê que o cidadão tem o direito de participar da administração da Justiça.
Nesse sentido, os esforços do Ministério Público brasileiro, digno de encômios, evidenciado na segunda semana nacional do Júri, materializou a tutela da ordem jurídica e do regime democrático, debruçado, dia após dia, sobre diversos processos que se perdem na infinidade do tempo, marcado pela solidão acusatória que perpassa o próprio campo jurídico e social; o parquet revela na figura clássica do Promotor do Júri toda a sua essência e história plasmadas na defesa do bem mais valioso que se pode proteger junto ao corpo social, a vida, contra a qual se tentou ou foi extirpada por um ato de violência.
Em países do primeiro mundo, como os Estados Unidos da América, além de consagrado como um direito fundamental presente na Sexta Emenda, é sem dúvida um instrumento valioso a serviço da democracia que se faz, na perspectiva anglo-americana, pela participação direta do povo na vida pública, e não apenas e tão somente no exercício do direito ao voto.1 Em outras palavras, a presença da sociedade no Tribunal do Júri é resultado do princípio democrático, da democracia participativa, segundo a qual os cidadãos aprendem a democracia, e o exercício da liberdade, participando diretamente das decisões do poder, neste caso, do poder jurisdicional.2
Na América, a função de jurado está jungida ao processo democrático, tanto que demonstra o exercício pleno da cidadania e o acusado tem o direito substantivo fundamental de ser julgado pelos seus pares, quer dizer, por todos aqueles que fazem parte da comunidade onde o crime foi praticado.
O Júri brasileiro, garantia fundamental e cláusula pétrea3, sempre despertou o interesse de estudantes, operadores do direito, em especial de jovens promotores de justiça, notadamente no limiar da carreira onde o ingresso passa, necessariamente, pela tribuna. Demais disso, o luto da sociedade e o sangue da vítima simbolizados nas cores da tradicional beca do Promotor do Júri, sempre utilizada com brio e invejável nobreza, são partes de uma liturgia que cativa os jurados pelo forte simbolismo social.
Quanto à roupa dos oradores, em particular, todos que leram os comentários introdutórios na primeira parte deste trabalho e atentaram para o que foi mencionado até este momento já puderam ter a dimensão da importância das vestes talares (ou seja, aquelas que vão até o talão = calcanhar, e que hoje em dia, talvez por questão de conforto e/ou modismo, estão mais curtas). Tanto a toga, para os magistrados, quanto a beca, para os promotores e advogados são o vestuário simbólico do cargo. Acreditem: todos que participam das sessões do júri, principalmente os jurados, esperam, conscientemente ou não, enxergar os personagens do Júri com os trajes que caracterizam a nobreza, a austeridade e a seriedade das suas funções. São os mesmos que desejariam ver o médico de jaleco branco, ou padre de batina, sob pena de minorar em importância a imagem do profissional ou o conceito do religioso4.
De mais a mais, essa situação se repete também na advocacia, e na magistratura; advogados como Troncoso Peres, Evandro Lins e Silva não devem ser, jamais, esquecidos, além da figura imparcial e serena de juízes como tão bem retratada por Magarino Torres.
Por outro lado, a resistência contra o júri brasileiro tem avançado. Nesse passo, poder-se-ia supor, em raciocínio incauto e sofismático, que o Júri se tornou obsoleto, rudimentar e contraproducente. Na verdade, pensar assim seria o mesmo que defender o autoritarismo, a tirania e o silêncio próprio das ditaduras, enfim, um verdadeiro menoscabo aos dois pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito: a democracia e os direitos fundamentais.
Muito cedo se aprende no Júri que o momento em que o homem mais se aproxima de Deus é no momento em que ele julga, e o julgamento do homem pelos seus pares revela, sobretudo, sua conotação nitidamente democrática, exemplo de cidadania e de consciência popular. Del Vechio afirmava que o Direito Positivo não é apenas mutável, mas necessariamente mutável, 5logo, o veredicto de um Conselho de Sentença tende, sim, com o tempo, a sofrer progressiva mutação diante das transformações sociais, fato que assegura uma permanente atualização do ordenamento jurídico, sem levar em conta a equidade na apreciação das causas, à luz do bom senso, de considerações morais, éticas e psicológicas, livres da rigidez da letra fria da lei.
As críticas permanecem, sob os argumentos de morosidade, de ter o Júri cumprido seu papel histórico, da complexidade do procedimento, além do tom teatral, levantam-se vozes que clamam por sua completa extinção. Sim, o Júri nacional precisa de aperfeiçoamento, não negamos isso, de simplificação de seu rito e quesitação, mas a ideia de extingui-lo em uma reforma política nos parece demasiadamente forte e descabida. Conquanto tenha sido feita, grosso modo, uma reforma da instituição do Júri, cabe ao Direito se adaptar à realidade e não o contrário, logo, deveria ter sido modernizado de acordo com as peculiaridades locais e não por meio de epistemologias estrangeiras, de centros com culturas e realidades distintas, salientando-se, contudo, que, no Brasil, possivelmente não temos um problema no Júri propriamente dito, mas sim nos homens.
É preciso lembrar, ainda, que o Tribunal do Júri está alinhavado aos ideais responsáveis pelo surgimento do próprio Ministério Público, quer dizer, do Estado-acusação. Parte da doutrina afirma que a origem do Ministério Público está no antigo Egito, no chamado Magiai, que era um funcionário do Faraó encarregado de representar seus interesses, além de acusador oficial. Para outros, estaria em Roma, na figura dos Éforos - autoridades que detinham o poder de acusar e julgar. De sorte, prevaleceu, no entanto, a ideia de que a origem do parquet remonta da França, encarnada na figura dos Procuradores do Rei, e que, após a revolução francesa (1789), tornou-se um direito fundamental do indivíduo de que aquele acusador não deveria julgar, surgindo, a partir desse momento, o Estado-acusação, o Promotor de Justiça criminal. Desse modo, do Júri não deve nunca se afastar, sob pena de perda da própria identidade. A história nos mostra e adverte que toda a instituição de Estado que se distanciou, seja por qual motivo fosse, de sua origem e essência, acabou imiscuindo-se em matérias de somenos importância, distanciadas de seus fins, e o pior e mais grave, deixando de atuar onde deveria, perdeu espaço e acabou sendo substituída.
Certamente no Ministério Público do porvir, além de firme e destacada atuação no processo civil coletivo e ações pontuais dos grupos de inteligência, sempre deverá existir espaço, isto é, um local de destaque a ser ocupado pelos Promotores do Júri, que, na defesa das vítimas e da sociedade, conseguiram manter viva a chama e essência da instituição paramentada nos ideais republicanos.
Referências bibliográficas
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RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão Linguística, Histórica, Social e Jurídica. 5ª ed., revista e atualizada até 31 de dezembro de 2014. São Paulo: Atlas, 2015.
REIS, Wanderlei José dos. O júri no Brasil e nos Estados Unidos. Algumas considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3490, 20 jan. 2013. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/23474/o-juri-no-brasil-e-nos-estados-unidos>. Acesso em: 13 de fevereiro de 2015.
TREIN, Thales Nilo. Júri. As linguagens praticadas no plenário. A oratória, os gestos e uma nova comunicação. Rio de Janeiro: Aide, 1996.
VILLELA JÚNIOR, José dos Santos. O Tribunal do Júri. Origem, Conceito, Teoria de Prática. Franca-SP: Lemos e Cruz, 2017.
Notas
1REIS, Wanderlei José dos. O júri no Brasil e nos Estados Unidos. Algumas considerações. Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3490, 20 jan. 2013. Disponível em:<https://jus.com.br/artigos/23474/o-juri-no-brasil-e-nos-estados-unidos>. Acesso em: 13 de fevereiro de 2015.
2RANGEL, Paulo. Tribunal do Júri. Visão Linguística, Histórica, Social e Jurídica. 5ª ed., revista e atualizada até 31 de dezembro de 2014. São Paulo: Atlas, p. 275-276.
3Constituição Federal, inc. XXXVIII, do art. 5º.
4 TREIN, Thales Nilo. Júri. As linguagens praticadas no plenário. A oratória, os gestos e uma nova comunicação. Rio de Janeiro: Aide, 1996, p. 191.
5FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. História do Direito Penal (crime natural e crime plástico) São Paulo: Malheiros, 2005, p. 14.