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Bazófia moral

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Agenda 17/10/2017 às 10:03

Por acaso já existiu alguma época ou lugar nos que não se tenha investido uma desmedida quantidade de recursos, tempo e sacrifício pessoal para julgar a conduta dos demais?

"Muchísimos vamos por la vida dando por supuesto que en lo esencial tenemos razón, siempre y acerca de todo: de nuestras convicciones políticas e intelectuales, de nuestras creencias religiosas y morales, de nuestra valoración de los demás, de nuestros recuerdos, de nuestra manera de entender lo que pasa. Si nos paramos a pensarlo, cualquiera diría que nuestra situación habitual es la de dar por sentado de manera inconsciente que estamos muy cerca de la omnisciencia.” Kathryn Schulz

Por acaso já existiu alguma época ou lugar nos que não se tenha investido uma desmedida quantidade de recursos, tempo e sacrifício pessoal para julgar a conduta dos demais? Que levante a mão aquele que ainda se surpreende com a excessiva facilidade e rapidez com que “los seres humanos nos juzgamos los unos a los otros”. Ninguém? Comecemos por isto. 

Entre os recursos com que contam os seres humanos para justificar suas ínfulas de superioridade hierárquica no mundo animal se acha o juízo moral; e seguramente seja o mais socorrido e evocado de todos. Nossa capacidade de discriminar é um traço perceptual e cognitivo evolucionado. Julgar é uma característica central de nossa capacidade para discernir entre amigos e inimigos, potenciais relações morais e imorais, futuros cônjuges confiáveis ou não confiáveis, e um longo et cetera. Navegar através das complexidades da vida diária é julgar inumeráveis estímulos, objetos, ideias, crenças, valores e, fundamentalmente, pessoas. (G. Saad)

Lamentavelmente, como sucede amiúde com a linguagem, uma palavra pode ter dois significados, um dos quais é positivo e o outro negativo. No caso de "julgar", o termo se associa em grande medida com suas implicações negativas, enquanto que seu outro significado, mais neutro, em grande parte se borrou de nosso léxico coletivo. Admito que, em alguns casos, julgar é errar (sacamos conclusões errôneas sobre o mundo e a gente porque julgamos a partir do que vemos, não do que não vemos); em outros casos, a suspensão do juízo está mal quando não é diretamente imoral (sempre e quando se faça baseado em uma nutrida quantidade de elementos de juízo, sensatez e a melhor evidência disponível).

Também reconheço que muitas pessoas são radicalmente contrárias a compartir uma opinião, tomar uma postura ou cometer o mortal faux-pas de emitir um juízo: “Deus não o queira!”. A negativa a julgar os demais e a capacidade de evadi-lo «ad absurdum et ad nauseam» se considera admirável, já que demonstra que se trata de uma pessoa pouco dada a satisfazer seu apetite de cuidar da vida dos demais recorrendo à ética (melhor dito, de “construir a própria bondade com a maldade alheia”). Julgar é equiparado com a estreiteza de miras e com a arrogância de não tolerar ou de não ponderar as distintas imperfeições da vida (por mais que este último seja o que de verdade nos faz seres morais).

Por desgraça para “os que não julgam” (exempli gratia Mateus 7:1-5) a ausência de juízos não é possível; tudo o mais que se pode conseguir é privilegiar a uns juízos frente a outros. Emitir juízos é uma característica integral do que nos faz humanos. Criamos nossa identidade ao fazer juízos de valor. Todos julgamos, todo o tempo. Sempre estamos tratando às pessoas de maneira que julgamos apropriadas para elas tal como nós as vemos, porque cremos firmemente conhecer os fatos, pensamentos e sentimentos relativos a ditas pessoas. O cérebro quer julgar. Quer criar mundos com o que sabe e o que não sabe, com o que imagina e recorda, com o que prediz e deseja. Evolucionou (o cérebro) para fazer juízos de valor e se o indulgente leitor (a) tem um problema com isso vive equivocado e/ou autoenganando-se. Somos uma espécie que em cada momento de vigília — e inclusive em sonhos — luta para dirigir o fluxo de sensação, emoção e cognição a estados de consciência que valoramos como bom ou mau (S. Harris), uma espécie desenhada (ou condenada) a etiquetar e julgar moralmente a conduta de nossos congêneres.[1]

A má notícia é que os sapiens são infinitamente mais complicados do que parece e os novos nichos virtuais apresentam oportunidades tão desconcertantes e novedosas para o juízo e o exibicionismo moral que de fato só começamos a compreender. Que dúvida cabe de que nos dias que correm somos cada vez mais exibicionistas e espectadores? Mostramos-nos para que nos mirem (evidentemente de forma seletiva) e, a sua vez, miramos aos demais. Gostamos de posar e manifestar nossas opiniões pessoais, ter uma audiência e vários amigos imaginários, expressar abertamente nossas preferências, idiossincrasias e obsessões, mostrar (sempre) a melhor versão de nós mesmos para que as pessoas nos vejam como nós nos vemos, criar testemunhas de nossa vida e que todo o mundo saiba (“quase”) tudo sobre o que fazemos, etc….etc.

Daí o enorme êxito das redes sociais (onde a incapacidade de refrear uma pessoa orgulhosa de sua estupidez sem atenuantes é mínima e a facilidade para propagar juízos e/ou ideias estúpidas e contagiantes é máxima[2]), esta espécie de vacina psicológica contra uma duvidosa ou empobrecida autoestima e um eficaz mecanismo não somente de controle da reputação (similar ao que se utilizava com o boca em boca e a fofoca nas sociedades de caçadores-coletores[3]), senão também para empurrar à pessoa a desenvolver «amizades indiscriminadas» e/ou a uma aceitação por um número cada vez maior de desconhecidos.[4]

E em nossa brumosa obscuridade mental, esta baixada aos infernos que às vezes propõe nossos neurônios e sinapses ávidos de ufania, estima e atenção social tampouco deixamos passar a ocasião de formular e vociferar enlouquecidos juízos morais sobre os demais (a expressão da indignação), como um intento desesperado de atuar ou falar de maneira dirigida a atrair a boa opinião da gente que observa, de fazer uma contribuição ao discurso moral público cujo objetivo é convencer aos demais de que somos “moralmente respeitáveis” (em inglês chamam  virtue signalling  à exibição de valores morais que permite melhorar o conceito que os demais têm de nós).

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Quer dizer, usar o discurso moral para que os demais também façam certos juízos desejados acerca de nós como alguém que é digno de admiração por uma qualidade moral particular. Também a intenção pode ser outra: a de silenciar a um rival ou minar a credibilidade dos demais, mas sempre se apresentando o exibicionista moral como mais honrado moralmente e desvalorizando as contribuições dos demais porque provém de alguém moralmente ínfero. Fazer exibicionismo moral (moral grandstanding, como denominam Justin Tosi e Brandon Warmke[5]) intentando sacar benefício mediante a autoatribuição descarada de valores morais absolutos e axiomáticos é, em síntese, transformar nossa contribuição ao discurso moral em um projeto de vaidade (sem olvidar que a expressão da indignação moral muitas vezes tem suas satisfações: julgar ou criticar é entretido e a sensação de ser virtuoso resulta abertamente agradável). [6]

Em uma época em que a opinião está de moda, que os fatos já não importam, que se pode dizer qualquer coisa das que não temos nenhuma prova, que temos direito a tudo (menos a conformar-nos com qualquer coisa) e afetados por uma espécie de “platonismo incurável”, denunciamos aos “malfeitores” e aos “imorais” porque, ao refugiar-nos em nossa própria identidade (que consideramos incompreensível para os demais), cremos estar dotado de uma grande sensibilidade moral ou de um sentido profundo da justiça (quase sempre gerados pela distorção intrínseca de toda intervenção da mente humana que altera a percepção da realidade de maneira recorrente) que nos autoriza a inflar o peito para arrogar o direito a ir julgando e golpeando gente à tort et à travers com um só critério de valoração: o nosso. [7]

Como seres morais, nossa indignação é – pelo menos em um nível consciente – muito simples: “Ética es lo que les falta a los otros” (para utilizar a definição mais operativa de ética formulada por Fernando Savater). Logo, e dado que parece quase impossível evitar cair em um egotismo extremo quando pensamos em valores morais, está justificada - ainda que esta facilidade acarrete a intrigante possibilidade de que a gente possa expressar indignação moral inclusive sem senti-la, quer dizer, sem que experimentem realmente a indignação que seu juízo dispara para designar virtude ante os demais.

Mais em concreto, igual a um feitiço que congela o pensamento e desconecta a reflexão, abraçamos a fé de que desfrutamos de um superavit moral e, como  plasmação da verdade moral para sempre, carregados de valores definitivos e inquestionáveis, verbo moral que se faz carne em forma de guardião angelical da ética, engendramos nossos juízos com esta ideia na cabeça. De fato, o mundo está cheio de santos e puros sem pecha moral, a quem resulta muito, muito fácil, fixar-se em defeitos, reclamar superioridade moral por isso e encher páginas e páginas explicando como reivindicar um comportamento ético “para fazer deste mundo um mundo melhor” ou deduzir um código de conduta moral com a (imaculada) razão. E não creio que exagero se digo que vivemos uma autêntica pandemia de juízos, uma era de asfixiante indignação e de hipertrofia da moral.

Por que todo mundo parece sentir-se ofendido nestes tempos? Por que nos sentimos tão indignados, inclusive quando determinados atos e ofensas não nos afetam diretamente? Realmente é nosso desinteressado compromisso com a justiça, nossa devoção pela ética, nosso férreo compromisso com a sociedade e/ou nossa tenaz empatia e dedicação ao “próximo” o que estimula nossa sede de juízo e  indignação moral? Ou isso é o que queremos crer? Por que estamos todos tão honestamente enlouquecidos e tão moralmente agastados? Não resulta inquietante que os numerosos e arrogantes motivos que soem fazer com que algumas pessoas se sintam superiores moralmente aos demais as levem não somente a desvalorizar suas ideias e opiniões, senão que, ademais, amiúde convertem a essas pessoas em objeto de burlas? Não se trata simplesmente da necessidade (tão) humana de sinalar o bom que somos?

É bastante provável que as respostas a estas perguntas têm que ver em boa medida com a natureza humana, o substrato de todo humano que habita a terra, por muita variedade que se dê na superfície cultural. Um estudo publicado na revista Nature aporta provas de que as raízes de nossa indignação moral são, ao menos em parte, egoístas[8]. Segundo seus autores, a indignação moral é uma forma de propaganda pessoal, de anunciar ou publicitar a si mesmo: confiamos mais nas pessoas que dedicam tempo e esforço a criticar e condenar aos malfeitores, aos que se portam mal segundo nossas pautas morais e/ou os valores de nosso grupo[9], claro.

O artigo trata de resolver um problema evolucionista: como pode surgir uma conduta não egoísta como a indignação moral de um processo evolucionista “egoísta”? A resposta é que expressar um juízo de indignação moral beneficia ao que a manifesta, em longo prazo, porque melhora sua reputação. Os autores do artigo apresentam um modelo teórico que envolve os “sinais custosos” (costly signaling), cujo exemplo clássico é a cauda do pavão real. Somente os pavões reais machos saudáveis e com bons genes podem permitir-se ter essas caudas vistosas e extravagantes que funcionam como um anúncio de sua qualidade genética.

Da mesma maneira, exibir-se recriminando aos que se comportam mal (segundo nossos valores ou de nosso grupo) funciona como um sinal de integridade, de confiabilidade. E isto é assim porque censurar ou corrigir aos demais supõe um custo, mas esse custo se recupera se “a la larga los demás nos van a hacer favores o van a colaborar con nosotros al ver que somos personas moralmente respetables y de fiar”. Portanto, ao perceber que ser íntegro moralmente nos dá resultado, vamos estar mais dispostos a julgar, a reprochar e a condenar aos malfeitores, porque seremos recompensados por promover um comportamento moral. Isto explica, segundo os autores do estudo, o porquê de escolher exibir nossa desaprovação pelos maus pode funcionar como uma cauda de pavão: quem se dedica a reprovar e consertar uma má conduta provavelmente é digno, sério e (moralmente) decente.

Não sobra matizar aqui que estamos falando de causas últimas e de um processo evolucionista. Os autores não estão dizendo que conscientemente atuamos assim, isto é, que as pessoas que expressam ou exibem indignação estão deliberadamente tentando aparecer para os outros. É como praticar sexo: não o fazemos porque queiramos multiplicar nossos genes, senão porque nos satisfaz (já sabem: "la petite mort"); mas a explicação última é que praticar sexo serve para fazer cópias de nossos genes.[10]

Surpresos? Pois, a estas alturas e com tudo o que já sabemos sobre a natureza humana, não é para tanto: somos o que somos por nossa relação com outros. O «eu moral», algo que cremos muito íntimo e pessoal, “es en realidad un Caballo de Troya del grupo, un programa cargado en nuestro cerebro que en realidad no trabaja para nosotros, sino para los demás: nuestro yo trabaja para el otro, para asegurar que encajemos en el grupo (M. Lieberman). Como afirma David Eagleman: “Aunque solemos sentirnos seres independientes, nuestros cerebros están preactivados para la interacción social y una gran parte de los circuitos cerebrales tienen que ver con otros cerebros: la mitad de nosotros somos los demás”.

Esta «marca de qualidade» do ser humano já deveria ser suficiente para entender o muito que nos importa o que pensam os demais. A visão individualista, racional e separada da natureza humana é equivocada: somos criaturas profundamente sociais e tem toda a lógica do mundo que nos afete demasiado a opinião que os outros tenham ou o que pensam de nós (por isso há um tipo de informação que nos interessa sobre todas as demais: as informações sobre nós mesmos). Frente a nossos congêneres nos jogamos nossa reputação, nosso prestígio e, em definitiva, nosso status - nossos maiores e mais apreciados bens. Na verdade, nossa imagem e nosso sentimento de autovalia estão determinados pela maneira como os outros nos veem atuar e, inclusive, mais pelo que pensam e o que dizem de nós[11] - tampouco caberia esperar outra coisa de uma espécie que se move pelo mundo social julgando constantemente as intenções dos demais e cujo «ego» luta incessante e encarniçadamente por afirmar e defender sua existência, sua autoimagem, sua autoestima, sua honra e suas idiossincrasias. [12]

Desse modo, a teoria proposta pelos autores da referida investigação explicaria algumas coisas que estamos vendo amiúde, onde há casos absolutamente desproporcionados de linchamento moral a alguns indivíduos que eventualmente não estiveram muito acertados em algumas de suas decisões. De forma consciente ou não, as pessoas que se dedicam a julgar, censurar, denunciar ou depreciar sem moderação aos demais, o que estão fazendo não é realmente dizer o mau, imorais ou néscios que são esses indivíduos, senão o bom, o moral e ilustradas que são elas mesmas; quero dizer, que elas não são nem más, nem imorais, nem estúpidas e que jamais incorreriam nos mesmos equívocos.

Intentarei guiar suavemente e acomodar os neurônios do amável leitor (a) ao redor do que acabo de dizer dando um exemplo rápido para que não incorra em enganos: quando, sem sequer considerar o risco que implica especular sobre os motivos dos demais,  afirmo que um determinado indivíduo atua (ou atuou) como “se fora infalível”, um “santo”, um “juiz de um tribunal da Inquisição” ou como um tipo débil guiado pela força de uma dada situação que influi (ou influiu) em sua conduta, o que estou dizendo é que eu sou um ser humano virtuoso, justo, racional, humilde, cauto e firme, e que «nunca jamais» atuaria do mesmo modo nem me curvaria ante o poder das circunstâncias[13]. Convenhamos: bastante forte.

Com a mensagem de desacreditar aos que não estão de acordo com nossas crenças, valores e pensamentos como indivíduos imorais, malvados, idiotas ou ignorantes, chega também, em um sussurro, o anelo egoísta de incrementar, melhorar ou adornar nossa reputação moral individual. Perguntarei outra vez: Há outro modo mais sutil e eficaz de autopromoção (tão sutil que raramente nos damos conta do impacto que exerce sobre nosso pensamento)? Por acaso não aprendemos que para conservar intacta ou aumentar nossa autoestima às vezes é necessário sentir-nos superiores aos demais? Deveras podemos confiar que alguém fanático da moral crê que sua identidade tem que ver com um autoconhecimento total das razões pelas quais se sente virtuoso? É o convencimento de que quando os demais veem o bom que sou isso eleva meu status, glorifica meu prestígio, me converte em alguém exemplar, uma pessoa desejável para trabalhar e cooperar ou me elogiarão e farão favores em caso de necessidade; e também me faz atrativo como companheiro sexual[14]. «Vanitas vanitatum omnia vanitas». 

Entendo que dar e receber razões são parte de nossa vida cotidiana, que consumimos razões e também as produzimos: para justificar nossa conduta, para julgar, criticar ou elogiar, para sopesar prós e contras de uma eleição, decisão ou ato. Também  compreendo o inútil que resulta pedir a nossas paixões que sejam sensatas e que a todos nos satisfaz ver-nos baixo uma luz favorecedora e positiva, que nos produz toneladas de prazer a sensação de que somos uns indivíduos excelentes e que julgar e condenar aos demais nos faz sentir-nos muito melhores por contraposição[15]. É um monstruoso deleite poder presumir com nossos comentários dos bons que somos diante dos demais. Mas há um limite! Há coisas em que se podem crer e outras que nem por assomo, já que o entusiasmo, a autoestima e/ou a honradez “no basta para tener la seguridad de que uno está en lo cierto”. (B. Russell)

Estou persuadido que todos compartimos a razoável opinião de que existe um grande perigo em todos os juízos e condenas morais que não se limitam somente às críticas baseadas em provas ou critérios objetivos, senão que em algumas ocasiões se traduzem em ações contra os demais, e que, às vezes, se demonstra que são (ou foram) injustas e precipitadas[16]. Sabemos muito menos do que cremos acerca do que impulsa as pessoas a tomar uma decisão ou a adotar uma conduta sobre outra. Os juízos e a ostentação moralista, o constante julgar e criticar aos demais, o santificar e pontificar sobre qualquer tema segundo nossos valores ou de nosso grupo pode arruinar a vida da gente sem mais referência que uma informação muito parcial (logo está a emoção humana da «Schadenfreude», que designa a dita ou a ledice que se sente pelo sofrimento ou desgraça alheia, e que “impregna toda nossa experiência, apesar de suas conotações vergonhosas” – R. H. Smith).

Ademais, ao excesso de crédito que outorgamos à nossa capacidade perceptiva, ética, intelectual e analítica para entender e explicar comportamentos complexos se soma nossa tendência a sobre-estimar nossas capacidades e subestimar as capacidades alheias. Pessoalmente, suspeito por princípio das divisões de pessoas em boas e más, porque a vida real é muito mais complexa e profunda que tudo isso, e com uma peculiaridade não menos aterradora: “el que quiere el «summum bonum», introduce también con esto el «summum malum»”. (P. Watzlawick)

Talvez o mais inteligente e sensato seja reconhecer que todos somos medíocres e limitados em quase tudo, que estamos prenhados de vieses cognitivos e prejuízos que são invisíveis para nós e que exigir o máximo moral dos demais é ridículo. Do contrário, corremos o risco de chegar a um nível de exigência moral e de virtude inalcançável para todo o mundo e/ou a um tipo de postura ou discurso moral cada vez mais cínico e vazio, lançando-nos a uma louca e interminável carreira de santidade e pureza, uma carreira em que ninguém quer ficar atrás e que lhe acusem de covarde, apático ou inferior desde o ponto de vista moral.

Por certo que a indignação moral é parte da natureza humana, mas é bom saber que a censura que dispara esta indignação se explica melhor não como uma reação proporcionada e justa, senão como o resultado de um sistema que vai mais além de nossas capacidades cognitivas e emocionais e que evolucionou para potenciar e engrandecer nossas reputações individuais, sem demasiado cuidado ao que isso supõe para os demais.

Assim, da próxima vez que o indulgente leitor (a) sinta a tentação de julgar ou indignar-se com alguém (e logo convencer a milhares de primatas para que o aceitem), recorde perguntar-se, independentemente do grupo a que pertence, se não está em realidade dizendo: “Mira que bom eu sou; mira que cauda mais bonita tenho!”. Pode, inclusive, que com essa sensata falta de impaciência obtenhas um elogio extra de alguns amigos adultos, sempre e quando faças o correto ao final. Teus filhos, por outro lado, sempre te julgarão com dureza.

Sobre o autor
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Bazófia moral . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5221, 17 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61185. Acesso em: 7 nov. 2024.

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