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O risco das cláusulas genéricas nos termos de ajuste de conduta

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Agenda 27/07/2019 às 13:00

3. O risco das cláusulas genéricas nos ajustes de conduta

Como se viu, no âmbito do Programa “Alimento sem Risco” apura-se o uso indevido de agrotóxicos, desde a comercialização do próprio agrotóxico, passando pela sua aplicação na lavoura e chegando até o fornecimento do alimento nos supermercados. Constatada qualquer irregularidade nessa cadeia de consumo, a equipe do programa, a par de tomar medidas na esfera administrativa, tais como aplicação de penalidades e apreensão de produtos, encaminha um relatório ao Ministério Público para adoção de medidas a seu cargo.

No âmbito cível, o mais comum é celebrar TACs para ajustar a conduta dos envolvidos às exigências legais. No entanto, é comum os TACs estabelecerem obrigações que vão muito além de simplesmente ajustar condutas. Assim é que se firma TACs com o objetivo de impor ao produtor rural a adoção de boas práticas agrícolas, o uso somente agrotóxicos registrados e prescritos em receituário agronômico, o emprego trabalhadores adultos, capazes e treinados para o manuseio de agrotóxicos; não vender produtos sem rótulos ou etiquetas, entre outras. Os TACs celebrados com comerciantes de agrotóxicos também trazem obrigações similares, como: vender produtos agrotóxicos somente por meio de receituário agronômico; não vender produtos agrotóxicos em desconformidade com a legislação; cumprir integralmente requisitos e condições para funcionamento do estabelecimento (licenças etc.); identificar e isolar produtos tóxicos dos demais produtos comercializados pelo estabelecimento. Finalmente, os TACs celebrados com os fornecedores de alimentos seguem a mesma linha, com cláusulas como observar a legislação vigente sobre a exposição e venda de frutas, legumes, verduras e cereais.

Conquanto essas proposições sejam mais ou menos assentes no âmbito do Ministério Público, à luz das considerações feitas anteriormente, não tem cabimento impô-las por meio de um ajuste de conduta, uma vez que são obrigações já estabelecidas em lei. Assim, por exemplo, não faz sentido propor um acordo para que o comerciante não venda produtos agrotóxicos em desconformidade com a legislação. Ora, isso já é uma obrigação legal do vendedor, goste ou não goste disso. Igualmente, se os produtos tóxicos não estão identificados e isolados dos demais produtos comercializados pelo estabelecimento, é o caso de se apreender os produtos considerados tóxicos ou mesmo interditar o estabelecimento, se não for possível fazer essa distinção imediatamente.  Também se o comércio funciona sem a devida licença ou em desconformidade com a licença expedida deve ser interditado até que esse documento seja obtido ou a situação regularizada. Simples assim.

Perceba-se que todas essas providências independem da vontade do administrado e podem – ou melhor, devem –  ser executadas de ofício pela autoridade administrativa. Daí porque o termo, nesse ponto, é absolutamente inútil. Se não, vejamos.

A obrigação de fazer ou não fazer não poderia ser objeto de uma execução judicial. Isso porque faltaria interesse de agir, uma vez que o Estado desfruta do poder de polícia para resolver a situação. Assim, desde que a providência requerida pode ser executada diretamente pelo Estado, ou seja, independentemente do recurso ao Poder Judiciário, não há nem sequer interesse de agir da parte. No máximo, a ação poderia ser dirigida contra o Estado por conta da sua eventual omissão sobre o dever de fiscalizar o cumprimento da lei.

As multas estabelecidas para o caso de descumprimento do ajuste até poderiam ser cobradas judicialmente. No entanto, mesmo essa previsão de multa é desnecessária, já que, em regra, o descumprimento de obrigações legais sujeita o infrator a penalidades pecuniárias a serem aplicadas pela autoridade administrativa. A multa não poderá ser cobrada pela autoridade sem recurso ao Poder Judiciário, já que não existe uma execução administrativa, mas o ato de lançamento da multa, após regular inscrição em dívida ativa, transforma-se em título executivo extrajudicial, que, uma vez inadimplido, pode ser executado judicialmente, tal qual o termo de ajustamento de conduta.

Como se vê, aquilo que se busca através do termo de ajuste pode muito bem ser alcançado através da ação efetiva do Estado, por meio do seu órgão executivo competente. Então, se o Estado pode, no exercício do seu regular do poder de polícia e sem a intervenção judicial, tomar aquelas medidas que se busca através do termo de ajuste, qual é o interesse em se firmar tal ajuste para esses fins? Nenhum, a menos que se entenda que a assunção pelo Ministério Público de competências típicas do Poder Executivo seja o objetivo do ajuste.

Agora, essa assunção de competência é perigosa, pois o Ministério Público certamente não tem vocação para exercer funções executivas. Note-se que, ao reproduzir obrigações que já estão disciplinadas em lei, o prazo para execução do TAC irá se prolongar indefinidamente ou, pelo menos, enquanto o compromissário exercer a atividade objeto do ajuste. Quer dizer, no exemplo acima aventado, enquanto o compromissário vender agrotóxicos, deverá fazê-lo atentando para as cláusulas do ajuste, que, como se disse, são meras reproduções daquilo que está na lei. Ou seja, celebrado o termo de ajustamento, a rigor, o procedimento de acompanhamento do cumprimento das obrigações só seria concluído se o comerciante encerrasse a atividade. Do contrário, o Ministério Público deveria fiscalizar eternamente o cumprimento das obrigações assumidas. Aliás, considerando-se que o ajuste tem “vida própria”, nem mesmo a revogação da lei que inspirou a sua celebração teria o condão de invalidá-lo ou torná-lo insubsistente. Assim, se fosse revogado o dispositivo legal que obriga o comerciante a isolar os produtos tóxicos em seu estabelecimento, aquele que celebrou o termo de ajuste com o Ministério Público continuaria obrigado a manter os agrotóxicos isolados, não mais por força da lei, mas do ajuste.

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Evidentemente, não é esse o propósito de um ajuste de conduta, razão pela qual não devem constar do ajuste previsões genéricas que espelhem deveres já estatuídos em leis e regulamentos.

Nesse contexto, as cláusulas do termo de ajustamento de conduta devem se limitar a fazer cessar a conduta atual tida por irregular e buscar a reparação dos danos efetivamente causados ou compensar esses danos mediante indenização, em razão da conduta lesiva. Frise-se que a multa compensatória fixada em ajuste de conduta representa apenas um mínimo de indenização e, em hipótese alguma, afasta o direito de terceiros pleitearem, individual ou coletivamente, o ressarcimento pelos danos que comprovadamente tenham sofrido em razão da conduta do infrator.


4. Conclusão

O Programa Alimento sem Risco (PASR), desenvolvido pelo Ministério Público de Santa Catarina em conjunto com diversos órgãos executivos, é um modelo de atuação proativa, cujos resultados evidenciam a importância do programa para a defesa da saúde dos consumidores.

No entanto, é preciso delimitar claramente o âmbito de atuação de cada órgão participante dessa ação. No caso do Ministério Público, poderá atuar tanto na esfera cível quanto criminal. No âmbito cível, a celebração de ajuste de conduta com os responsáveis por irregularidades, desde o comércio do agrotóxico, passando pela aplicação do produto nas lavouras até a distribuição dos alimentos para o consumidor final, é um poderoso instrumento para evitar a judicialização dos conflitos. Mas tal instrumento deve ser utilizado com parcimônia e sem descurar das suas finalidades essenciais, isto é, ajustar uma conduta atual efetiva ou potencialmente causadora de dano, reparar um dano já consumado, restaurando a situação anterior, ou compensar os prejuízos causados mediante indenização, quando o dano for irreversível.

Impor, através do ajuste de conduta, obrigações que já estão previstas em lei coloca o Ministério Público na posição do administrador público, na medida em que, ao fiscalizar o cumprimento do ajuste, estará, ao fim e ao cabo, fiscalizando o fiel cumprimento da lei, função que compete ao Poder Executivo. No afã de querer suprir a eventual omissão da autoridade administrativa na execução das suas funções, o Ministério Público não pode substituir o administrador público, porque isso, longe de resolver o problema da inércia estatal, contribui para agravá-lo, já que a autoridade ficará na cômoda posição de quem apenas contempla o outro fazendo o seu trabalho.

Por isso, as parcerias para desenvolver programas como o “Alimento sem Risco” devem ser estabelecidas para somar esforços das entidades envolvidas, cada qual dentro da sua esfera de atribuições, e não para umas substituírem-se às outras no cumprimento dos seus deveres.


5. Bibliografia

DECOMAIN, Pedro Roberto. Ação civil pública e compromisso de ajustamento de condutas. Revista Dialética de Direito Processual, n. 83, p. 114-120.

LOCATELLI, Paulo Antonio. O termo de compromisso de ajustamento de conduta na proteção dos direitos sociais. Atuação-Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, v. 4, n. 10, p. 23-36.

RORIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

VIEIRA, Fernando Grella. A transação na esfera da tutela dos interesses difusos e coletivos: compromisso de ajustamento de conduta. In: Edis Milaré (coord.). Ação civil pública: Lei 7.8347/1985 – 15 anos. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

ZUFFO, Max. Propostas para incremento na eficácia dos termos de ajustamento de conduta. Atuação-Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, Florianópolis, v.3, n.7, p. 29-51.


Notas

[1] Informações sobre o Programa Alimento sem Risco disponíveis em https://www.mpsc.mp.br/programas/programa-alimento-sem-risco.

[2] VIEIRA, Fernando Grella. A transação na esfera da tutela dos interesses difusos e coletivos: compromisso de ajustamento de conduta. In: Edis Milaré (coord.). Ação civil pública: Lei 7.8347/1985 – 15 anos. 2.ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 279. Grifou-se.

[3] ZUFFO, Max. Propostas para incremento na eficácia dos termos de ajustamento de conduta. Atuação-Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, Florianópolis, v.3, n.7, p. 29-51, p. 35. Grifou-se.

[4] LOCATELLI, Paulo Antonio. O termo de compromisso de ajustamento de conduta na proteção dos direitos sociais. Atuação-Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, v. 4, n. 10, p. 23-36, p. 24. Grifou-se.

[5] RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação civil pública e termo de ajustamento de conduta: teoria e prática. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 110. Grifou-se.

[6] RODRIGUES, ob.cit., p. 209. Grifou-se.

[7] DECOMAIN, Pedro Roberto. Ação civil pública e compromisso de ajustamento de condutas. Revista Dialética de Direito Processual, n. 83, p. 114-120, p. 118. Grifou-se.

[8] ZUFFO, ob.cit., p. 36-38. Grifou-se.

Sobre o autor
Leandro G. M. Govinda

Leandro G.M. Govinda formou-se em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e é especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi pesquisador do CNPq, escriturário do Banco do Brasil, Técnico da Receita Federal, Auditor-Fiscal da Receita Federal e Procurador da Fazenda Nacional. Atualmente, é Promotor de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina, Professor da Escola do Ministério Público e integrante do Conselho Editorial da Revista Jurídica Atuação do Ministério Público Catarinense. Escreveu artigos publicados na Revista Tributária e de Finanças Públicas, na Revista Fórum de Direito Tributário e na Revista dos Tribunais (RTSUL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOVINDA, Leandro G. M.. O risco das cláusulas genéricas nos termos de ajuste de conduta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5869, 27 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61202. Acesso em: 22 dez. 2024.

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