8. Decisões recentes do STF e STJ
Com fito de ilustrar o tema, selecionamos dois julgados recentes das Cortes Superiores correlatos ao tema.
No Supremo Tribunal Federal, nos autos do Recurso Extraordinário 612.043, em que foi fixada tese de repercussão geral (tema nº 499), houve declaração de constitucionalidade do art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, no sentido de que a sentença civil em ação coletiva proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da demanda, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator da decisão. Destaca-se a ementa:
Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 499 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Relator, desproveu o recurso extraordinário, declarando a constitucionalidade do art. 2º-A da Lei nº 9.494/1997. Vencidos o Ministro Ricardo Lewandowski, que dava provimento ao recurso, e os Ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin, que a ele davam parcial provimento, nos termos de seus votos. Em seguida, o Tribunal, nos termos do voto do Relator, fixou a seguinte tese: “A eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento”. Na redação da tese, a Ministra Rosa Weber acompanhou o Ministro Relator com ressalva. Ausentes, justificadamente, os Ministros Dias Toffoli e Celso de Mello. Impedido o Ministro Roberto Barroso. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 10.5.2017. (BRASIL, 2017).
Já no Superior Tribunal de Justiça, as decisões de Turma [5]tem seguido o entendimento da Corte Especial firmou entendimento no sentido de que é indevida a limitação da eficácia das decisões proferidas em ação civil pública à competência territorial do órgão prolator da sentença. Neste sentido:
"DIREITO PROCESSUAL. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C, CPC). DIREITOS METAINDIVIDUAIS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APADECO X BANESTADO. EXPURGOS INFLACIONÁRIOS. EXECUÇÃO/LIQUIDAÇÃO INDIVIDUAL. FORO COMPETENTE. ALCANCE OBJETIVO E SUBJETIVO DOS EFEITOS DA SENTENÇA COLETIVA. LIMITAÇÃO TERRITORIAL. IMPROPRIEDADE. REVISÃO JURISPRUDENCIAL. LIMITAÇÃO AOS ASSOCIADOS. INVIABILIDADE. OFENSA À COISA JULGADA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: 1.1. A liquidação e a execução individual de sentença genérica proferida em ação civil coletiva pode ser ajuizada no foro do domicílio do beneficiário, porquanto os efeitos e a eficácia da sentença não estão circunscritos a lindes geográficos, mas aos limites objetivos e subjetivos do que foi decidido, levando-se em conta, para tanto, sempre a extensão do dano e a qualidade dos interesses metaindividuais postos em juízo (arts. 468, 472 e 474, CPC e 93 e 103, CDC). 1.2. A sentença genérica proferida na ação civil coletiva ajuizada pela Apadeco, que condenou o Banestado ao pagamento dos chamados expurgos inflacionários sobre cadernetas de poupança, dispôs que seus efeitos alcançariam todos os poupadores da instituição financeira do Estado do Paraná. Por isso descabe a alteração do seu alcance em sede de liquidação/execução individual, sob pena de vulneração da coisa julgada. Assim, não se aplica ao caso a limitação contida no art. 2º-A, caput, da Lei n. 9.494/97. 2. Ressalva de fundamentação do Ministro Teori Albino Zavascki. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido. " (REsp 1243887/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/10/2011, DJe 12/12/2011)
9. Considerações finais
A defesa de direitos pertencentes a mais de um indivíduo encontra inúmeras dificuldades, tais como a hipossuficiência da parte, alto custo do processo, morosidade da justiça e fragilidade da demanda em virtude da pulverização de ações individuais. Assim, visando suprir essa deficiência, o legislador dotou o ordenamento jurídico brasileiro de diversos instrumentos que tutelam os direitos transindividuais, dentre os quais se assenta a ação civil pública.
Não obstante, em sentido diametralmente oposto às suas finalidades, o art. 16 da Lei nº 7.347/85, alterado pela Lei nº 9.494/97, impõe obstáculo à tutela efetiva destes direitos, uma vez que determina que a sentença faça coisa julgada apenas nos limites do órgão prolator.
A inconstitucionalidade, tanto formal quanto material, do referido dispositivo é patente. Formal, considerando que a Medida Provisória nº 1.570/97, convertida na referida Lei nº 9.494/97, foi editada sem seus pressupostos autorizadores, quais sejam a urgência e a relevância. Material, uma vez que há transgressão de preceitos constitucionais do amplo acesso ao Poder Judiciário, proporcionalidade, razoabilidade e igualdade.
Além de ser inconstitucional, conclui-se que o dispositivo em comento também é inefetivo, pois a Lei nº 9.494/97 alterou apenas da Lei de Ação Civil Pública, deixando de proceder modificações no Código de Defesa do Consumidor, que, além de formar um sistema integrado de tutela coletiva conjuntamente com a LACP, regulamenta o instituto da coisa julgada de maneira mais ampla do que a ação civil pública.
Nesses termos, vislumbra-se que a norma é ineficaz do ponto de vista social, ou seja, inefetivo, uma vez que não houve alteração do sistema do Código de Defesa do Consumidor, de modo que a aplicação isolada do art. 16 da LACP não é plausível.
No decorrer deste trabalho, ainda foram elencadas diversas teses que corroboram para a não aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347/85, que são: a confusão dos limites subjetivos da coisa julgada com a competência territorial do órgão prolator da sentença; a indivisibilidade dos direitos tutelados via ação civil pública, de modo que a lesão de um interessado acarreta na lesão de todos eles; a multiplicação desordenada do número de demandas, o que, consequentemente, causa decisões contraditórias sobre uma mesma situação; o fato que a extensão da coisa julgada é determinada pelo pedido autoral e não pela competência territorial do julgador.
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Notas
[1] “Art. 62 - Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional” (BRASIL, 1988).
[2] Notícia disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/mpf-entra-com-acao-para-total-reparacao-dos-danos-sociais-ambientais-e-economicos-causados-pelo-rompimento-da-barragem-da-samarco-1. Acesso em: 16 out. 2017.
[3] Notícia disponível em: http://www.mpf.mp.br/regiao1/sala-de-imprensa/noticias-r1/policia-federal-tera-que-gravar-testes-fisicos-dos-concursos-para-provimento-de-seus-cargos. Acesso em: 16 out. 2017.
[4] A inefetividade, independente da sua nomenclatura, nos ditames expostos é defendida também, a título meramente exemplificativo, por Von Adamovich (2005), Didier Jr. e Zaneti Jr. (2010), Almeida, G. (2003), Souza (2003), dentre inúmeros outros doutrinadores.
[5] A título de exemplo, cita-se a recente decisão (26/06/2017) da Terceira Turma do STJ, que consignou que: “A Corte Especial deste Tribunal, no julgamento dos Embargos de Divergência em REsp n. 1.134.957/SP, firmou entendimento de que é indevido limitar, em princípio, a eficácia das decisões proferidas em ações civis públicas coletivas ao território da competência do órgão judicante. A vedação dessa limitação estende-se aos direitos coletivos indistintamente (direito coletivo em sentido estrito, difuso ou individual homogêneo), sendo que, no caso dessa última espécie, a coisa julgada atingirá todos aqueles beneficiários do comando exarado na decisão que se pretenda executar” (STJ. AgInt no REsp 1628619 / PR. Terceira Turma. Data de Julgamento: 20/06/2017. Data de Publicação: 26/06/2017).