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Da inaplicabilidade da Lei nº 10.684/2003 às condutas criminosas perpetradas contra a ordem tributária (REFIS II)

Agenda 31/01/2005 às 00:00

1. Da impossibilidade do parcelamento contemplar condutas criminosas contra a ordem tributária .

Gize-se, inicialmente, que a Lei 10.684/2003 ("REFIS II" ou "Novo REFIS") dispõe sobre o parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal, à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional do Seguro Social.

Dito parcelamento configura uma das hipóteses de suspensão do crédito tributário, avocando, subsidiariamente, as peculiaridades afeitas à moratória [1] (art. 155-A, § 2º, do Código Tributário Nacional). Das quais, o parágrafo único do art. 154 assume especial relevo, vedando a concessão da moratória (subsidiariamente, o parcelamento) "aos casos de dolo, fraude ou simulação do sujeito passivo ou de terceiro em benefício daquele". Aliás, dita restrição foi solarmente explicitada na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3002 (ADI protocolada em 24/09/03 perante à Excelsa Corte) e é corolário de excelente excerto doutrinário [2].

Mister, assim, repetir as lições do saudoso Aliomar Baleeiro, elencando que a moratória não é concedida "nunca em favor de quem foi convencido de fraude, dolo ou simulação". [3] Com efeito, o insigne tributarista bem sintetiza o móvel de atuação do CTN, ser "fiel a sua diretriz de repressão do dolo ou da simulação [4]".

E mais, além do parcelamento, a Lei 10.684/03 contém outro peculiar instituto do direito tributário, pois o parágrafo 7º do art. 1º, prevê a anistia [5], reduzindo em 50% a multa de mora ou de ofício (artigos 175, II e 180 a 182, todos do CTN). Similarmente ao parcelamento, incorporando aquela diretriz repressiva do dolo, fraude, conluio ou da simulação, a anistia não tem a amplitude reconhecida no bojo da Lei 10.684/03, pois o Estatuto Tributário obsta o seu reconhecimento àqueles atos com vício no consentimento, bem como aos "qualificados em lei como crimes e contravenções" (art. 180, incisos I e II).

Efetivamente, o art. 155-A, § 1º, do CTN, permite à lei disciplinadora do parcelamento a exclusão de multa e juros, entrementes, a dispensa destas penalidades caracteriza a anistia [6] e, como tal, impõe-se-lhe a estrita observância das vedações elencadas pelas citadas normas gerais no âmbito tributário (art. 180, incisos I e II).

Neste condão, infere-se que a Lei 10.684/03, de caráter ordinário, tem sido interpretada além dos meandros preconizados pela lei complementar (CTN), hierarquicamente superior. Pois, data venia, algumas decisões judiciais têm reconhecido o parcelamento e a anistia a todos e quaisquer débitos, sem as distinções preconizadas pela lei complementar (CTN). Dessarte, abrigar fatos criminosos contra a ordem tributária no bojo da Lei 10.684/03 consiste em flagrante inconstitucionalidade. Isto porque, a lei ordinária vem a dizer mais que a lei complementar (CTN), subvertendo a hierarquia das leis e o processo legislativo (artigos 24, §1º, e 59, ambos da Carta Política).

Merece especial relevo, ainda, o conteúdo do art. 111 do CTN, determinando: "Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário". Ora, é consabido que o parcelamento e a anistia são, respectivamente, casos de suspensão e exclusão do crédito tributário, e como tais, não permitem que a interpretação refuja ao preciso conteúdo dos vocábulos, isto é, quando a lei fala em parcelamento ou anistia deste crédito, somente é aplicável àqueles casos não configuradores de atos dolosos, fraudulentos ou simulados do contribuinte, nos quais se incluem os crimes contra a ordem tributária.


2 - Concessão do parcelamento pela União com invasão da competência de outro ente tributante.

Noutro enfoque, a Lei 10.684/03 tem sido interpretada imiscuindo a competência de outro ente tributante, pois ao abrigar parcelamentos e anistias vinculados, v. g. aos Estados, distintos dos débitos junto à SRF e ao INSS, faculta-se-lhe alcançar favores legais em relação a tributos que não sejam da sua competência, afrontando os artigos 24, I, da Constituição Federal e artigo 152, I, "a", do Código Tributário Nacional.

Por derradeiro, deve-se evidenciar o nefasto nexo causal estabelecido entre o ilícito agir dos acusados por crimes contra a ordem tributária e os efeitos danosos à ordem pública. Conceito – ordem pública – voltada à ordenação, ao respeito e à autoridade da coisa (res) de todos (pública). Corolário direto do pacto político e voltada à manutenção do corpo social, consubstanciando-se pelo respeito aos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 1, da Constituição Federal). Dos quais, tomada esta modalidade de ação criminosa e o comprometimento da ordem pública, sobreleva evidenciar a afronta aos valores da livre iniciativa [7] (inciso IV, do art. 1º, da Magna Carta) e como derivação deste ente a livre concorrência. Pois, tais amarras legais buscam dar guarida ao sentimento de repulsa dos bons contribuintes à concorrência desleal, buscando "a finalidade e o sentido econômico das leis tributárias [8]".

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3. Outras considerações.

Insta, também, resgatar a sucessão temporal e a mens legis inerentes aos diplomas em comento: Leis 9.964/2000 e 10.684/2003.

Aquele (Lei 9.964/2000), voltado à instituição do "Programa de Recuperação Fiscal – REFIS, esta destinado a promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas jurídicas, relativos a tributos e contribuições, administrados pela Secretaria da Receita Federal e pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS".

A última (Lei 10.684/2003 – vulgarmente conhecida como "Novo Refis ou Refis II"), por sua vez, perpassa o mesmo lineamento lógico e reconstrói o citado "Programa de Recuperação Fiscal – REFIS", agora: "dispondo sobre novo parcelamento de débitos administrados pela Secretaria da Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e pelo Instituto Nacional do Seguro Social".

Com efeito, ambos estatutos legais tem como fio condutor o estrito parcelamento de débitos oriundos da Fazenda Federal, nos moldes delineados pelo art. 1º do "Novo Refis".

Na regulamentação destes comandos legais, as Portarias Conjuntas PGFN/SRF números 1, 2 e 3, evidenciam que a Lei 10.684/03 tem um compartimento e alcance preciso: estabelecer o "Novo Refis ou Refis II".

Na mesma linha, o art. 12 da Lei da Lei 10.684/03 alude: "A exclusão do sujeito passivo do parcelamento a que se refere esta lei" ... . Um dos meios de mostrar que toda referência ao parcelamento e a anistia está imbricada com o REFIS II.

Noutro giro, resta cristalino que o "caput" e o § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003, arrolam, respectivamente, a possibilidade da suspensão e extinção da pretensão punitiva pelo parcelamento e o integral pagamento, todavia, sob o enfoque e no beneplácito do nominado REFIS II (Lei 10.684/2003).

Mesmo porque, hermeneuticamente, basta atentar à interpretação sistêmica e verificar que, topologicamente, as disposições enfocadas (art. 9º, "caput", e § 2º, suspensão e extinção da punibilidade) estão de entremeio à perda de parcelamento (art. 8º, "caput e parágrafos") e ao comando legal que determina a consolidação dos débitos e a sua regulamentação (art. 10º, "caput", e § 1º, da Lei do REFIS II) por atos da Secretaria da Receita Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e o Instituto Nacional do Seguro Social.

Isto é, o art. 9 está dentre normas que remetem ao parcelamento de débitos federais (arts. 8 e 9), assim, tem o seu conteúdo amarrado a ditas questões, inviabilizando cogitar-se uma incidência criminal, cível e administrativa fora dos limites de débitos para com a União.

Neste diapasão, houvesse a lei de revogar totalmente o art. 34 da Lei 9.249/95 - que prevê a extinção da punibilidade pelo pagamento nos crimes fiscais, desde que anterior ao recebimento da denúncia – o faria em artigo não interpolado aos arts. 8 e 9, ou mesmo consignaria esta vontade legal com remissão expressa ao artigo a ser revogado, dispondo-a em diploma legal não vocacionado a fim específico (NOVO REFIS). Por exemplo, quando quis alterar a Lei 9.718/98 o fez expressamente no art. 18, bem como através do art. 20, alterando a Lei 8.213/91; restando um total de 09 alterações de textos legais com referência direta na Lei.

Dessarte, verifica-se que a indigitada Lei 10.684/03 – REFIS II – tem estrita referência com os débitos federais, conseqüentemente, a suspensão pelo parcelamento ou a extinção da punibilidade pelo pagamento, acaso acatada, diria respeito, tão só, aos tributos nela contemplados (tributos e contribuições sociais federais), e dentro de uma específica dimensão temporal (até 28.02.03), cessando qualquer efeito a partir de então.


Notas

1 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, pg 468: " ... a moratória, regrada pelos artigos 152 a 155 do Código Tributário Nacional, ou seja: "consiste na concessão legal de um período de tolerância na exigência de dívidas".

2 LEMOS, Rubin. Parcelamento de Débito Tributário. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.

3Ibid, p. 473.

4Ibid, p. 474.

5 No Rio Grande do Sul, o Decreto nº 42.633/03 instituiu o Programa de Recuperação de Créditos – REFAZ/RS II -, cujo art. 7, inciso I, possibilita a redução em "100 % do valor da multa atualizada monetariamente e de 20% do valor dos juros".

6Ibid, p. 533: "exclusão das infrações cometidas anteriormente à vigência da lei, que a decreta".

7 PINTO, Ferreira. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1994: "O princípio da livre concorrência tem equivalência filosófica com o princípio da liberdade de iniciativa; é essencial para o funcionamento do sistema capitalista e da economia de mercado. Carlo Barbier Filho ensina: A concorrência é elemento fundamental para o democrático desenvolvimento da estrutura econômica. É ela a pedra de toque das liberdades públicas do setor econômico. Concorrência é disputa, em condições de igualdade, de cada espaço com objetivos lícitos e compatíveis com as aspirações nacionais. Consiste, no setor econômico, na disputa entre todas as empresas para conseguir maior e melhor espaço no mercado".

8 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de DireitoTributário. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 22

Sobre o autor
Aureo Rogério Gil Braga

Promotor de Justiça (RS), com atuação na Promotoria de Justiça especializada no combate aos crimes contra a ordem tributária, e Mestre em Filosofia Política e Moral pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Aureo Rogério Gil. Da inaplicabilidade da Lei nº 10.684/2003 às condutas criminosas perpetradas contra a ordem tributária (REFIS II). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 573, 31 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6236. Acesso em: 22 nov. 2024.

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