3. OS PARÂMETROS NORMATIVOS DA VONTADE E OS CRIMES DE TRÂNSITO
A principal pretensão almejada pela substituição da busca da vontade psicológica – intangível – pela descoberta da vontade normativa é o combate à formação de juízos arbitrários.
Em quaisquer das hipóteses, existe a possibilidade de falhas de julgamento. Todavia, a proposta em tela é eminentemente mais segura, pois se pauta na enumeração de critérios básicos de imputação sujeitos à demonstração probatória.
Muitas vezes, independentemente da posição adotada, haverá uma identidade de tratamento, sobretudo porque as regras de experiência regularmente empregadas nos julgamentos e a própria qualidade dos magistrados enseja a produção de decisões justas.
Entretanto, o posicionamento ora defendido fomenta maior probabilidade científica de produção de tratamentos uniformes, bem como resguarda maior aptidão para controle probatório.
Neste contexto, a vontade é interpretada a partir de uma compreensão social, compartilhada pela comunidade em que está inserido o autor do fato.
Com efeito, é relevante a intensa política encampada pelo Poder Público e a mídia para reprimir o consumo de bebida alcoólica por motoristas para a aferição do dolo.
Da mesma forma, é defeso ao infrator se furtar à responsabilização de sua conduta a título doloso sob o pretexto de que sua conduta exteriorizada é incongruente com seu desejo íntimo.
O autor do fato, ao criar um perigo intenso e idôneo para a produção de um resultado lesivo, atribui-se a si a vontade de produzi-lo, sob pena de desprezo às regras básicas de convivência social.
Com efeito, o volume de bebida alcoólica ingerido, o estado de embriaguez do autor do fato; associado à velocidade empregada no veículo automotor, à dinâmica do acidente e a todas as outras circunstâncias em torno do caso penal são fundamentais para explicitar o dolo ou não do suposto infrator.
Assim sendo, embora se repudie qualquer análise tendente à averiguação da subjetividade do autor do fato, a individualidade do sujeito não é desconsiderada, devendo as características pessoais dele serem contextualizadas dentro da órbita de julgamento.
4. CONCLUSÃO
A criminalidade no trânsito constitui uma faceta incontestável da vida moderna, especialmente em virtude da expansão da frota de veículos automotores associado à péssima infraestrutura viária.
A embriaguez no trânsito, outrora tolerada, é atualmente repudiada violentamente pelos principais meios de comunicação e incriminada pela legislação vigente.
Todavia, permanece indefinido o impacto jurídico advindo da embriaguez nos crimes trânsito, notadamente nos delitos dos quais resultam lesões ou a morte de vítimas.
É natural que acidentes automobilísticos de gravidade acentuada provocados por motoristas embriagados sensibilizem os julgadores e fomentem a aplicação de penas mais severas (a título de dolo).
Da mesma forma, é racionalmente complicado estabelecer associações subjetivas entre o resultado lesivo e a atitude interna do autor do fato.
Neste contexto, instaura-se um verdadeiro vácuo entre o pensamento do infrator no momento da conduta e o que o julgador intuiu que ele pensou na execução do ato.
O querer psicológico do autor do fato é intangível e toda tentativa de desvelá-la está fadada ao insucesso, pois não é suscetível de demonstração probatória, com base em elementos normativos.
Com efeito, em busca de mitigar o subjetivismo no corpo de decisões judiciais, mediante a criação de balizas mais transparentes de julgamento, sustenta-se a delimitação do dolo através de lentes normativas, a partir de uma análise individualizada do comportamento exteriorizado do autor fato cujo efeito foi a criação de um risco qualificado a um bem jurídico penalmente tutelado.
Logo, o estado intencional do infrator – embriagado ou não – na consecução do crime de trânsito torna-se indiferente.
O decisivo, pois, é a análise da embriaguez, associada a todas as outras circunstâncias em que se deu o delito de trânsito como elementos fáticos sujeitos a uma análise racional do risco produzido pelo infrator, fundada em critérios sociais, científicos e normativos.
Destarte, a Lei 13.546/2017 configura apenas um fator – normativo – para análise do impacto da embriaguez nos crimes de trânsito; e, apesar do recrudescimento das penas resultante dela, o novo diploma, por si só, é incapaz de resolver toda a problemática envolvendo o consumo de bebida alcoólica no processo de avaliação da natureza dolosa ou culposa da conduta praticada.
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Notas
1 Art. 18. - Diz-se o crime: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime doloso (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;(Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Crime culposo (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. (Incluído pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
2 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: Parte Geral: Volume I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 379.