Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

A fenomenologia hermenêutica heideggeriana e o direito

O artigo apresenta uma mirada sobre os principais aspectos do pensamento heideggeriano, evidenciando suas contribuições para a contemplação do fenômeno jurídico.

A hermenêutica fenomenológica singulariza-se por mirar a compreensão como condição existencial do homem, não mais identificada como um momento metodologicamente escolhido do ato de interpretar. Compreende-se tão logo se existe, porquanto a existência do homem é, e só pode ser, compreensiva. A abordagem do traçado teórico da aludida vereda hermenêutica deve principiar pela exposição sumária dos construtos teóricos de Martin Heidegger, principal precursor de tais reflexões.

Deveras, Heidegger encampa como projeto estruturante de suas lucubrações a perscrutação de uma ontologia fundamental. Com isso, quer-se dizer da questionabilidade do ser enquanto tal, da possibilidade da pergunta pelo ser. Referida indagação remanesceu velada pela metafísica ocidental, soterrada na ontologia da presença constante das filosofias aristotélica e platônica, além de dispersa nas ontologias regionalizadas reportáveis à coisidade dos entes intramundanos. Com efeito, a pergunta sobre o ser enquanto tal deve partir da analítica existencial do ente privilegiado que se singulariza precisamente por indagar-se acerca do ser: o ser-aí (dasein). Modo de ser-no-mundo do humano, este é contemplado por Heidegger como pastor do ser, desde já e sempre lançado no mundo, imerso na facticidade da qual não se pode desvencilhar. Ora, se a indagação sobre o ser deve partir do ser-aí e este é já sempre “no mundo”, a ontologia fundamental somente pode estruturar-se como fenomenologia, na medida em que toda investigação quididativa será sempre derivativa e tardia ante a originariedade da facticidade, antecedente a toda esquematização de sujeito e objeto.

Nesse passo, a compreensão da ontologia fundamental como fenomenologia, e desta como operada pela hermenêutica da facticidade, aparta Heidegger da fenomenologia husserliana, a qual, em sua redução eidética, pretendia alcançar uma ciência rigorosa das coisas mesmas, transcendente à experiência histórica, pretensamente suprimida na universalidade do intelecto. Lado outro, Husserl mirava as coisas mesmas com espeque na consciência doadora de sentido, em cujo ego solipsista tinha sede a redução fenomenológica predicativamente formulada.

Diversamente de seu mestre, Heidegger propõe uma fenomenologia hermenêutica, desiderato que se clarifica em sua significância com o recobramento radical da tradição evocada pelo vocábulo fenomenologia. Phainomenon, em grego, remete significativamente à expressão “mostrar-se à luz”, ao passo que logos refere-se à palavra, à fala. Disso decorre que a fenomenologia corporifica a mostração do ser dos entes que vem à fala, clareados pela mirada interpeladora do ser-aí. Busca-se, portanto, o permitir que as coisas se mostrem por si mesmas, o que se distancia da redução husserliana, encetada na consciência solitária a estampar categorialmente a projeção impensada do intérprete. A fenomenologia heideggeriana é, por isso mesmo, fenomenologia enraizada, precisamente porque a compreensão sempre e já é no mundo, posto o ser-aí como nexo de confluência entre a ontologia fundamental e a hermenêutica da facticidade.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Ora, o ser-aí, eis que já sempre lançado no mundo e questionador de seu ser, é ser compreensivo, tem a compreensão como existencial seu. Trata-se de poder-ser, temporalmente ek-sistente e, por isso, indeterminado quididativamente. A autencidade do ser-aí repousa, nesse diapasão, no cuidado com seu poder-ser, em abertura para a descalcificação facticidade propiciada pela tonalidade afetiva da angústia, evocada por seu ser-para-a-morte. Haverá sempre o risco da queda, porém, com o predomínio da ditadura do impessoal, ocasionado quando o ser-aí abandona a posição interpeladora defronte ao seu poder-ser na facticidade, entregando-se ao parlatório do “eles”, veiculado em cristalizações proposicionais irrefletidas em seu enraizamento, alvejadas que são como presença constante identificada com a verdade assertiva.

Como pondera Heidegger, a essência da verdade não radica na “adaequatio rei et intellectus”, ao contrário do quanto propugnado pela metafísica ocidental. Se o aí precede qualquer tematização apresentacional em sua pré-ontologia enraizada no solo da tradição, a cristalização predicativa, discordante desse ser, afasta a fenomenologia dele, impingindo o aparente utensiliar sobre as coisas mesmas e obstando sua mostração. Assim, a verdade é apreensível apenas e tão somente como desvelamento e velamento do ser dos entes na clareira da linguagem, o qual, todavia, nunca será totalizante, face à diferença ontológica entre ser e ente e a originariedade da facticidade, a impossibilitar um ancoradouro primevo fundacionalmente edificado acima dela.

De tudo quanto exposto, dessume-se que a tarefa da hermenêutica, pois, há de ser ressignificada como, de um lado, a interpelação do ser-aí sobre seu enraizamento historial, possibilitando o aflorar de suas estruturas prévias promanadas de sua compreensão sempre no mundo (pré-compreensões). Por outro, há que interpelar as coisas mesmas na linguagem, morada do ser por excelência, possibilitando que seu ser venha à fala, em desvelamento e velamento no cerne do círculo hermenêutico, a promover a revisitação questionadora daquelas pré-compreensões, em projeção do poder-ser do ser-aí sobre o ente desvelado e em mostração deste que clarifica o ser-no-mundo daquele. Em verdade, a destruição crítica das calcificações da presença constante, com o cuidado e abertura autênticos ao poder-ser em seu enraizamento no solo da tradição, corporifica alumiamento no qual o campo de mostração do ser dos entes tem lugar, para além da manualização intramundana e da queda no impensado parlatório, conducente ao mal-entendido.  

Sobre o autor
Gladston Bethônico Bernardes Rocha Macedo

Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sendo Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!