4 A DIVULGAÇÃO DA IMAGEM DO SUJEITO PASSIVO DE PERSECUÇÃO PENAL NA MÍDIA SENSACIONALISTA
Dentre do gênero jornalismo, com atribuição de informar os fatos com objetividade, surge outra espécie de jornalismo (revistas, jornais e telejornais) denominado sensacionalista ou popularesco. Este foge aos padrões convencionais, explorando em tom espalhafatoso a notícia que emociona ou escandaliza. Também conhecida como imprensa popular retrata o dia-a-dia das grandes metrópoles, com o uso da linguagem popular, o palavrão e a gíria (PATIAS, 2005).
Não raras às vezes, ocorre a dramatização com simulação dos fatos utilizando para tanto, atores e cenários retratando os eventos do crime e seus envolvidos, com forte apelo emocional, riqueza de detalhes, noticiando os fatos em espetáculo com o objetivo de garantir a audiência dos seus telespectadores. Programas com a participação do público telespectador, até já cativaram o expectador brasileiro, a exemplo do programa televisivo Linha Direta da TV Globo, que apresentava casos criminais não solucionados contando com a participação do público para que através da denúncia pudessem ser capturados os foragidos da justiça, sendo garantido o anonimato do denunciante. Não somente esse exemplo, mas muitos outros telejornais de grande audiência no País retratam por meio de dramatização, a prática de crimes vinculando a imagem do suposto autor a sua prática.
Neste contexto, observa-se que a mídia tende a substituir as instituições públicas que são responsáveis pela apuração e julgamento de crimes, ora auxiliando a polícia na atividade de investigação, ora para fazer a justiça funcionar como deveria (SCHREIBER, 2008). Tornam-se capazes de realizar a justiça, pois além de produzirem a notícia, os meios de comunicação também tratam da fórmula da verdade e das grandes soluções. Uma espécie de messianismo, ocupando o lugar que anteriormente destinado a Deus, surgem como uma verdadeira religião a quem as pessoas recorrem (PATIAS, 2005). Há uma constante necessidade dos apresentadores deste tipo de jornalismo, de buscar um senso elevado de justiça, combatendo o crime, a corrupção institucional, a impunidade, auto elegendo-se a voz que clama em nome do povo. Reduzindo a temática da violência ao drama emocional do crime urbano, o jornalismo se permite a uma visão superficial dos fatos. Estudos, debates e acontecimentos feitos por pessoas e instituições que enfrentam o fenômeno da violência, são desprezados pelos apresentadores e repórteres dos jornais sensacionalistas, pois se prefere tratar os problemas reais sociais como um espetáculo, como entretenimento, não havendo espaço para uma reflexão mais séria buscando soluções. Longe de encontrar soluções objetivas, este tipo de jornalismo faz da violência um produto a ser consumido (PATIAS, 2005).
Utilizando de linguagem popular e com chavões apelando para a redução da maioridade penal, aumento da pena dos crimes, em defesa da pena de morte, de maior combate a corrupção, dentre muitos outros exemplos, esse tipo de jornalismo pode em busca da audiência, ultrapassar os limites da informação, e como consequência, ofender a intimidade individual maculando a presunção da inocência do ofendido. A sua imagem e intimidade excessivamente exposta como “suspeito” da prática de um crime, torna-se o bode expiatório necessário para convencer a sociedade da verdade religiosamente pregada pelos apresentadores deste tipo de jornalismo. Uma vez que alcança grande proporção este meio de comunicação, não há como negar que o indivíduo ali exposto, é hipossuficiente o bastante e incapaz para provar, em contrário senso, a sua inocência já ofendida diante das câmeras e repórteres.
Nota-se que não há processo, pena ou uma sentença condenatória transitada em julgado, mas já o suficiente para, diante da veemente dramatização da vítima e exposição do acusado, criar-se o perfil daquele indivíduo como, na melhor das hipóteses, provável suspeito; na pior delas, será ele de fato o culpado caso não prove o contrário. Todavia em um devido processo legal essa inversão de lógica quanto à presunção do estado natural da inocência, não se subsiste. Não se prova ser inocente, o homem nasce inocente e morre em tal estado. Ninguém pode ser culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Naturalmente, deve haver a inversão do ônus da prova, sendo então presumida a inocência, compete ao Ministério Público ou à parte acusada (se ação penal privada) provar a culpa. Caso o contrário, a ação penal deverá ser considerada improcedente (LENZA, 2016).
Cabe a tarefa de provar o contrário a um órgão estatal acusador, conforme já exposto, formulando com base em provas válidas, o necessário convencimento (livre) do magistrado. Porém na mídia de massa, basta uma mera indicação da prática do tipo penal violado, a vítima ofendida ou a autoridade policial indicando o fenômeno criminal, e já é o suficiente para dar inicio a “super produção” do espetáculo televisivo.
4.1 O CONFLITO APARENTE ENTRE DIREITO A INTIMIDADE E DEVER DE INFORMAR
Se de um lado tem-se a intimidade do acusado pela prática infracional, até então presumida sua inocência, por outro lado tem-se o direito a liberdade de expressão e informação e tais princípios detêm o mesmo peso Constitucional, a priori, podendo mostrar-se conflitantes. Aliás, são usuais os conflitos entre a liberdade de manifestação do pensamento e informação, e direitos como a honra imagem e intimidade. Por essa razão, é inviável a enumeração taxativa por uma gradação de valores na tábua constitucional (TAVEIRA, 2010). Não havendo primazia ou hierarquia de um direito fundamental sobre outro, não há como defender taxativamente a prevalência da liberdade de informação sobre o direito a intimidade ou vice- versa.
Destarte, há um limite a ser desmistificado quanto à extensão do direito de informação, e especialmente quando se tratar da intimidade do acusado de uma infração penal. Na lição do Mestre Gilmar Ferreira Mendes (1994), o direito a liberdade de expressão não pode ser um direito absoluto concebido pelo constituinte, a ponto de ser insuscetível de restrição seja pelo Judiciário ou o Poder Legislativo. E continua enfatizando que no próprio texto Constitucional, trata expressamente que o exercício dessa liberdade deve observar o disposto na Constituição (Mendes, 1994). O Texto Maior confere tal interpretação em seu artigo 220:Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.§ 1.º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5.º, IV, V, X, XIII e XIV. (BRASIL, 1988).
Considerando que o dispositivo Constitucional determina que devem ser observados certos limites, previstos no artigo 5° como o direito a resposta (IV), a vedação ao anonimato (V), e a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e a imagem das pessoas (X), não subsiste a preconcepção de que a liberdade de imprensa seja um direito absoluto, e sim relativo, sendo possível para além da reparação do dano quando houver assim cometimento de abusos, também a possibilidade de restrição de publicação da informação.
Havendo aparente conflito entre os princípios de mesma equivalência constitucional, enfatiza Robert Alexy (2007), que é fundamental a diferenciação de regras e princípios, para a aplicabilidade da técnica de ponderação, que permite a convivência harmônica de princípios que podem colidir-se, como a intimidade e a liberdade de imprensa. Na definição do que são as regras, tem-se que estas são normas que ordenam, proíbem ou permitem a fazer algo ou autorizam a algo definitivamente. Uma vez aplicadas por meio da subsunção e cumpridas seu conteúdo, as regras produzem seus efeitos jurídicos. Caso não se queira aceitar o seu conteúdo, devem ser excluídas do ordenamento jurídico ou inserir uma nova regra, na forma de exceção, para excepcionar a regra anterior (ALEXY, 2007). Os princípios por sua vez, são mandamentos de otimização, não contendo um dever definitivo, mas sim a exigência de que algo seja realizado na medida tão alto quanto possível relativamente às possibilidades jurídicas e fáticas existentes, e que, portanto podem colidir-se entre si. A forma que os princípios são aplicados tipicamente é por meio da ponderação (ALEXY, 2007).
É possível então a relativização dos direitos fundamentais, pois não servem a propósito de escudo protetivo para a prática de atos ilícitos, tampouco como discurso para afastar ou minorar a responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total violação de um Estado de Direito. Havendo conflito entre dois ou mais direitos fundamentais, o intérprete deve aplicar o princípio da concordância prática ou harmonização, combinando os bens jurídicos conflitantes, evitando o sacrifício total de uns em relação a outros, com redução proporcional do alcance de cada um, buscando o verdadeiro significado da norma e a harmonia do Texto Constitucional e sua finalidade primordial (MORAES, 2016).
Na aplicação da técnica de ponderação de interesses para a solução de tal conflito, deve-se observar a sua incidência no plano abstrato e no plano concreto, considerando o contexto de sua aplicação. A primeira espécie é a chamada ponderação abstrata, que analisa os conceitos fora de qualquer caso concreto, criando limitações pré-determinadas nos direitos colididos, estabelecendo uma regra que deve ser obedecida em todos os casos análogos, desprezando-se as singularidades de cada uma das situações fáticas (DA SILVA, 2014, p. 82).
Todavia tal método despreza as peculiaridades que cada caso real pode traçar, e uma vez que desconsiderados tais singularidades e aplicando a interpretação tradicional sistemática da Constituição, a determinação antecipada do direito fundamental em abstrato pode criar uma nova violação dos direitos fundamentais conflitantes, como exemplos a criação da censura prévia, esvaziando o conteúdo da liberdade de imprensa ou ainda, a exposição aviltante e consequente violação da intimidade e o direito a vida privada.
A outra espécie de técnica de ponderação é a chamada ad hoc, assim chamada porque é instaurada toda vez que se verifica uma genuína colisão de direitos fundamentais, devendo o intérprete levar em consideração todas as peculiaridades do caso concreto quando da atribuição do peso de cada direito conflitante, sempre tomando a cautela necessária para que o subjetivismo, que em razão da natureza humana não poderá ser completamente afastado, influencie da maneira mais restrita possível. (DA SILVA, 2014, p. 82). A ponderação ad hoc será aplicável sempre que, tendo o caso concreto sob análise, o julgador irá determinar qual direito fundamental deverá prevalecer e em qual medida, sem, no entanto criar uma “receita” pronta para todos os demais casos que porventura poderão ser levados ao conhecimento do órgão julgador. Por certo que haveria algum grau de subjetivismo ao fazer a análise dos princípios fundamentais conflitantes, contudo ainda dentro da própria ponderação, o julgador deverá observar o princípio da proporcionalidade que deve ser aplicado subdivido em três máximas parciais: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Alexy (1999) explica que: Segundo a lei da ponderação, a ponderação deve suceder em três fases. Na primeira fase deve ser determinada a intensidade da intervenção. Na segunda fase se trata, então, da importância das razões que justificam a intervenção. Somente na terceira fase sucede, então, a ponderação no sentido estrito e próprio.
Alexy (1999) enfatiza que quanto mais intensiva é uma intervenção em um direito fundamental tanto mais graves devem ser as razões que a justificam. As razões da intervenção na direito fundamental da liberdade de imprensa se justificam considerando a grave violação do direito a presunção de inocência do acusado. A exposição da imagem deste em mídias sensacionalistas de massa, que visam apenas à exposição pela exposição, contando como dados estatísticos de audiência em seus noticiários configura-se flagrante violação da presunção do estado de inocência, pois se obriga ao suspeito considerando a sua farta exposição aos meios de comunicação em massa, a provar a sua inocência independentemente das provas colhidas na instrução criminal (BOTTINI, 2006, p.100-102 apud DA SILVA, 2014, p.92). Uma vez maculada sua imagem como “suposto autor” de um crime, e exaustivamente divulgada tal informação, no meio social em que vive o suspeito, passará este então a condição de criminoso divulgado no noticiário.