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Outorga onerosa do direito de construir

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Agenda 16/12/2017 às 16:24

3. O DIREITO DE PROPRIEDADE

A doutrina brasileira do século XXI não entende que o direito de superfície esteja dissociado do direito de construir, como foi o entendimento dos estudiosos que se reuniram em Roma para debater sobre a outorga onerosa pela primeira vez.

Segundo José Afonso da Silva[17], o instituto do solo criado não colocou fim ao direito de construir, e muito menos seu conceito importa na separação do direito de construir do direito de propriedade. O proprietário do imóvel continuará a possuir o direito de levantar edificações em seu imóvel como lhe aprouver, desde que respeitadas algumas restrições impostas pela Administração.

Conforme já dito, a coletividade e a urbanização foram colocadas em patamar superior ao direito privado.

Para Hely Lopes Meirelles[18], a outorga onerosa do direito de construir está embasada em conteúdo constitucional.

As limitações urbanísticas, como as limitações administrativas, embasam-se nos arts. 5º., XXII e XXIII, e 170, II e III, da Constituição Federal, que condiciona a utilização da propriedade à sua função social. São, portanto, limitações de uso da propriedade, e não da propriedade em sua substância; são limitações ao exercício de direitos individuais, e não aos direitos em si mesmos. E, exatamente por não atingirem a substância da propriedade, nem afetarem o direito individual em sua essência constitucional, é que as limitações urbanísticas podem ser expressas por lei ou regulamento, de qualquer das entidades estatais, desde que observem e respeitem as competências institucionais de cada uma delas.

O entendimento que predomina no Brasil é que o direito de construir obedece a um coeficiente, e que somente o excesso deste direito seria compensável. Com essa posição, entende-se que o direito de construir não se dissociou do de propriedade, apenas ficou regulado por Lei.

A regulamentação legal é fundamental, pois a Administração Pública obedece ao princípio da legalidade, somente podendo realizar qualquer atividade que esteja prevista expressamente em Lei.

Ainda neste mesmo diapasão, temos o entendimento de Gerson Branco.

As regras relativas ao solo criado não limitam e não impedem a utilização natural da coisa, pois são regras gerais, destinadas a uma generalidade de casos, que poderão ocorrer no futuro, com vistas a evitar um dano possível para a coletividade e para assegurar a ela uma “utilidade específica que os bens particulares sejam aptos a produzir, juntamente com a utilidade genérica para o particular proprietário. No caso do solo criado o direito permanece intacto, motivo pelo qual, como já foi dito anteriormente, é despicienda a exigência de lei federal lhe instituindo a teor do § 4o do art. 182, pois trata-se de mero limite administrativo ao exercício do direito de propriedade a ser exigido com base no caput do mesmo artigo. A limitação urbanística derivada do regime do solo criado visa organizar os espaços habitáveis (incluindo os de trabalho, circulação e recreação), para propiciar condições de convivência em comunidade.

Adriando Daleffe[19] entende, ainda, que a propriedade urbana é diferente de outros tipos de propriedades porque possui características diferenciadas, uma vez que envolve o acréscimo de equipamentos públicos e privados. Neste entendimento, o autor ensina que não existem óbices quanto à fixação do coeficiente de aproveitamento,

sem com isso ofender o conteúdo mínimo da propriedade privada urbana na medida em que afetaria o direito de edificar dos proprietários. A estipulação do coeficiente único constrangeria violentamente o aproveitamento dos imóveis da área urbana, não há como negar. Porém, não se vislumbra qualquer direito dos proprietários de lotes urbanos de se opor a medida de tal jaez, visto que o direito de edificar não decorre naturalmente da propriedade do solo urbano. Mais precisamente, e sem causar perplexidade, a adoção desse coeficiente único viria sob as vestes de mais uma limitação administrativa, amparada na supremacia do interesse público sobre o interesse particular e, portanto, sem esbarrar na cláusula da propriedade tal como constitucionalmente consagrada.

A doutrina tenta, de forma bastante satisfatória, abstrair-se do entendimento de que o direito de propriedade seria absoluto. Desde as eras mais remotas, durante toda a evolução do Direito, o entendimento sobre a propriedade e sua proteção jurídica sofreram modificações, porém o homem capitalista manteve-se atrelado àquele conceito de que o direito à propriedade consistia em algo absoluto, soberano, que nenhuma Lei ou ninguém poderia lhe retirar.

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Este entendimento burguês do direito de propriedade manteve-se arraigado na legislação dos principais países capitalistas, quiçá de todos. No Brasil, não poderia ser diferente. Ocorre que tal entendimento tem raízes extremamente egoísticas, no sentido de que o direito do privado sobrepujar-se-ia ao interesse de toda uma sociedade se o assunto fosse seu direito de propriedade.

Faz parecer que o particular tem direito a utilizar sua propriedade como bem desejar, independente dos malefícios que este uso poderia causar à vizinhança ou até mesmo a toda a localidade.

Não mais se aceita tal ponderação há bastantes anos. O Direito, em constante evolução; a compreensão mais ampla da existência dos Direitos Humanos e Fundamentais; a conscientização de que o interesse coletivo deve estar na frente do interesse privado; todos são fatores que obrigam, hoje, ao entendimento de que o direito à propriedade só é soberano até quando causar incômodos, distúrbios à ordem, malefícios à comunidade. O social deve estar em primeiro lugar. E é preciso que o homem compreenda esta evolução, e deixe para trás o apego exacerbado à propriedade, ao seu uso e gozo ilimitados, à sua fruição descontrolada.

Desta forma, o instituto do solo criado não pode ser considerado como uma interferência no amplo direito de propriedade. O proprietário continuará tendo todos os direitos de uso e gozo de seu bem jurídico, porém não poderá utilizá-lo além dos limites que suportaria a localidade na qual o bem está instalado. Limitar o uso exagerado da propriedade não é novidade no Direito, e não pode ser visto como uma forma de limitação do direito em si. É apenas uma forma de adaptação e adequação da propriedade aos interesses públicos, que devem, via de regra, estar em local privilegiado.


4. A CONTRAPRESTAÇÃO PELO EXCESSO DE CONSTRUÇÃO

A intenção do legislador ao criar o instrumento da outorga onerosa do direito de construir foi a de prestigiar o direito da coletividade em sobreposição ao direito do particular, mesmo quando isso signifique certas limitações ao seu direito de propriedade.

A outorga onerosa do direito de construir faz entender que o proprietário de um imóvel tem direito de usar, gozar, dispor e construir em seu imóvel até o limite em que estes direitos caminhem ao encontro dos interesses da coletividade. A partir do momento em que o interesse coletivo é de frear, ou impor algumas condições, ao direito de construção, a municipalidade pode lançar mão da sistematização legislativa do solo criado.

Cabe, então, à Lei Municipal determinar o que seria o coeficiente único de aproveitamento. Porém, o determinado pelo Estatuto da Cidade dá conta de que para toda construção acima do coeficiente de aproveitamento deve haver uma contraprestação por parte do beneficiário – aquele que realizou a construção.

Analisando o próprio Estatuto da Cidade, desprende-se o entendimento de que tanto a contraprestação através de uma “permuta” quanto a contraprestação pecuniária estariam autorizadas.

Ricardo Pereira Lira prefere[20] a primeira opção, que seria a “permuta” de áreas. Para este autor, a contraprestação

deverá preferencialmente ser representada pela cessão à comunidade de área correspondente ao excesso artificial gerado, para que ali se criem áreas verdes, se instalem equipamentos comunitários, se instituam praças, parques, módulos de lazer, etc...

Para este autor, esta seria uma versão urbanística do instituto, que significaria uma contraprestação real para a coletividade. Na Carta de Embu (Vide anexo “A”, p. 27) estava determinado que “o criador de solo deveria oferecer à coletividade as compensações necessárias ao re-eqüilíbrio urbano reclamado pela criação de solo adicional”. Nesse diapasão, seria mesmo mais adequado que a contraprestação se desse pela entrega à coletividade de área a compensar aquela que fora criada.

Ocorre que, como o documento original – Carta de Embu (Vide anexo “A”, p. 27) – tratou apenas de “compensações”, a doutrina dividiu-se no sentido de que compensação seria esta, e também da destinação dos recursos abarganhados, mesmo em caso de compensação através da entrega de áreas, como entende Ricardo Pereira Lira.

Neste mesmo sentido, Gerson Branco[21] explica que a contraprestação não financeira

trata-se de uma espécie de permuta entre o particular e a Municipalidade. O particular transfere para o poder público bens que interessem ao Município, como por exemplo áreas verdes, terrenos situados em lugares estratégicos para a administração pública ou até partes de terrenos que sirvam como base para a instalação de equipamentos urbanos, sem que haja necessidade de desapropriação. Há ainda, a possibilidade de que seja transferido para o Município frações proporcionais do próprio solo criado para que as áreas edificadas sirvam para a instalação de serviços públicos e equipamentos urbanos que venham a servir aos futuros habitantes da edificação e sua vizinhança.

Ocorre também a possibilidade da compensação se dar através de indenização pecuniária, do particular que deseja “comprar” direitos de construir que não existem naquela área, para “criar solo”. Caso a Municipalidade entenda viável e interessante a criação de solo de acordo com o interesse do particular, porém a contraprestação real, através da permuta de áreas, seja inviável ou impossível, pode ocorrer uma prestação financeira do particular em relação à Administração Pública.

Gerson Branco explica que a

transferência dos coeficientes de aproveitamento é a retribuição do particular pelo equivalente em dinheiro. Com o produto da “venda” dos índices construtivos, ficando autorizado o particular a criar solo, tais recursos poderão ser utilizados para combater os custos que a edificação provocará sobre a coletividade. (grifos originais)

Em Florianópolis, estado de Santa Catarina, o instituto do Solo Criado já surgiu com uma contraprestação pecuniária[22], o que gerou contestações, protestando pela inconstitucionalidade da Lei municipal por razões de estar instituindo tributo. A questão da natureza jurídica desta contraprestação será analisada posteriormente, mas o entendimento predominante nos tribunais é que, mesmo quando se trate de prestação pecuniária, não se estaria frente a um tributo.

De fato, seria muito mais pertinente ao instituto do solo criado que a contraprestação, fornecida pelo proprietário de solo que desejasse construir além do seu potencial construtivo, não fosse financeira. A “indenização” prestada por aquele que constrói além do coeficiente fixado deveria ser no sentido de “repor” à coletividade áreas que seriam utilizadas para a criação áreas de interesse social. Com esta forma, também seria muito mais simples para a Administração Pública saber como e aonde investir o que seria “arrecadado” como contraprestação pelo solo criado.

Porém a prática demonstra que a grande maioria das contraprestações determinadas em legislações municipais é financeira. A contraprestação pecuniária é aparentemente mais simples: coloca-se um preço pelo “solo” a ser criado e está determinado quanto e como deve indenizar o proprietário criador de solo. Apesar de Luiz Henrique Antunes Alochio entender que esta seria uma ótima forma de evitar abusos cometidos pelo Poder Público, resta o problema de em que e aonde investir o que é arrecadado.

Se a Administração Pública arrecada dinheiro pelo solo criado, deveria, sem necessidade de maiores análises, investi-lo no trato de infra-estrutura sanitária, transporte, arborização, criação de parques naturais, pavimentação e suprimento de outras necessidades básicas da cidade, incluindo-se aquelas que ficariam supostamente prejudicadas com a construção de solo artificial além do índice fixado.

Sobre a autora
Tatiana Mareto Silva

Doutora em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Mestre em Políticas Públicas e Processo pela FDC/UNIFLU, Pós-graduada em Processo Civil pela FDV, Professora do Curso de Direito do Centro Universitário São Camilo-ES.

Informações sobre o texto

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