DIREITO COMPARADO
Modernamente, tal como apontado por Maria Thereza Gonçalves Pero[3], podem ser constatados, pelo menos quatro sistemas de motivação de decisões judiciais, a saber: a) ordenamentos em que a motivação tem fonte em norma constitucional (modelo italiano, brasileiro e de outros países da América Latina); b) ordenamentos em que a motivação tem fonte em legislação ordinária (França, Alemanha e Áustria); c) ordenamentos em que a motivação se consolida no costume jurisprudencial, sem que haja previsão legal ou constitucional (Inglaterra, Canadá, Escócia e demais colônias inglesas à exceção dos Estados Unidos); e d), ordenamentos em que sequer existe costume, havendo omissão legal e constitucional a respeito do tema (Estados Unidos).
Com relação ao último caso, ou seja, ao direito norte-americano, insta salientar que, embora o costume de motivar tenha sido adotado enquanto o país era uma colônia britânica, acabou sendo abandonado com a independência em 1.776 (até para que se verificasse um rompimento cultural com a sede imperial).
Costuma-se, aliás, ponderar, como regras, que os dois primeiros tipos de ordenamentos são encontráveis nos países que tem o direito de base romano-canônica (Civil Law), enquanto que os dois últimos tipos se encontram, com maior incidência em países que adotam o sistema da Common Law (fenômeno, aliás, explicável pela repetição de decisões fundadas em precedentes, que leva à massificação pelo sistema de stare decisis)[4].
O CPC/15 aproximou muito os dois sistemas processuais no Brasil, eis que se partiu da ideia da existência de princípios universais do processo civil (transnational principles rules) que vem sendo sistematizados pelo esforço conjunto de organismos como a ALI (American Law Institute) e da Unidroit capitaneada pelo italiano Michele Taruffo. A política de precedentes é um desses princípios transnacionais.
E esse fenômeno será mais sintomático na medida em que se constate que, atualmente, são inegáveis os efeitos da globalização sobre quase todo o planeta, não se podendo esquecer de que se cuida de um movimento de padronização sócio-política-cultural, visando uma hegemonia econômica dos países globalizantes em detrimento dos países globalizados, de modo que poderá ser observada uma tendência de adoção do sistema de common law em países que tradicionalmente mantiveram e mantém ordenamentos de base romano-canônica, como é caso do Brasil e de vários países da América Latina.
O risco de tal orientação, num sistema em que não se adota sequer o costume da fundamentação, haverá grande dificuldade de controle do conteúdo jurídico das decisões judiciais. Tal perigo, obviamente, tem suas dimensões ampliadas na medida em que se constata que o Poder Judiciário, que já tem seus órgãos de cúpula compostos por indicações do Poder Executivo, chanceladas pelo Senado Nacional. A politização do Poder Judiciário e a falta de preocupação com a motivação das decisões, sob o argumento de grande volume de serviços é algo extremamente perigoso para um país que adota o respeito a garantias como o contraditório pleno e não pífio e o devido processo legal.
Isso sem que se mencione o próprio esvaziamento do modelo de jurisdição estatal, através de uma lei ordinária, cuja constitucionalidade será reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, instituindo o modelo de arbitragem no Brasil, permitindo julgamentos de equidade, nem sempre motivados, ou com a aplicação do direito pátrio.[5]
Não se pode perder de vista que o direito, aliás, é criado e desenvolvido por ação da jurisprudência de modo que, mesmo não havendo expressa previsão legal ou constitucional os Magistrados acabam por fundamentar suas decisões não para que se justifique o que foi feito, mas, ao contrário, para que se entenda como o ordenamento funcionará a partir do precedente criado. Fala-se hoje em função endoprocessual da motivação e função exoprocessual – ou seja, não basta mais convencer apenas as partes no sentido de que se faz justiça no processo (endoprocessual – inter pars) mas é preciso convencer a sociedade de que Justiça esteja sendo feita – o fenômeno exoprocessual típico das democracias participativas – regimes de governo em que se aplicam os valores da sociedade de confiança as justified trust destacadas linhas acima.
Tanto é assim, aliás, para que não se esqueça que a jurisdição, numa das suas possíveis acepções, tem como conceito à função social de pacificar conflitos, tal como preconizado por Francesco Carnelutti. No direito italiano, por exemplo, conforme assevera Michele Taruffo, na obra “La Motivazione della sentenza civile”, Ed. Padova, 1.975, a Constituição se refere à função política do dever de motivar como trâmite do controle difuso sobre o exercício do poder jurisdicional[6].
Basta, aliás, que se compulse o texto da Constituição da República Italiana, notadamente na sua norma contida no artigo 111, para que se verifique, de forma expressa, tal obrigatoriedade (o texto refere-se à obrigatoriedade de motivação das medidas judiciais, e, ainda, no mesmo artigo, existe a própria referência a um duplo grau em relação a sentenças e medidas referentes à liberdade pessoal).
E, como reflexo desta orientação, na legislação ordinária existe preceito expresso a respeito da obrigatoriedade da motivação das sentenças que seria, justamente, o contido no artigo 118 das Disposições de Atualização e Transitórias do Código de Processo Civil Italiano (o que, obviamente, deve ser analisado em conjunto com o disposto na norma contida no artigo 116 do próprio Código de Processo, que prevê que o Juiz deve julgar o feito de acordo com sua prudente convicção, salvo se a lei exigir de outro modo).
E, observe-se, tal como já dito, e ocorre no sistema constitucional pátrio, a obrigatoriedade de motivação se estende não só às sentenças (enquanto provimentos finais que extinguem processos, com ou sem o julgamento do mérito), mas a todas as medidas jurisdicionais (o que, obviamente, engloba as demais espécies de provimentos jurisdicionais). O CPC/15 deixa claro que qualquer decisão judicial deva ser fundamentada, autorizando a interposição de embargos de declaração em caso de qualquer omissão (artigo 1.022 e seus consectários CPC)
Com algumas variantes, mas mutatis mutandi, também disciplinando a motivação dos atos judiciais, estabelece a Constituição da República Portuguesa, notadamente, na norma contida no artigo 208, de forma expressa: “As decisões dos Tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei.” Portugal, portanto, destoa do regime brasileiro e do italiano ao acabar por remeter a questão à lei ordinária, traçando mera norma programática, e, desta feita, não auto-aplicável, no que tange à fundamentação dos atos judiciais.
A doutrina aponta, ainda, outros países da América Latina e a própria Grécia, como exemplos de países que, como o Brasil, exigem, através de normas de natureza constitucional, a motivação das decisões judiciais[7]. As constituições dos países de common law, como já mencionado acima, não preveem tal disciplina, sobretudo a Constituição norte-americana.
Com a mesma orientação, embora se cuide de sistema jurídico autônomo e alternativo em relação à common law e ao direito de base romano-canônica, de se destacar a Constituição da República Popular da China, de 04.12.1982, que, ao tratar das liberdades públicas (artigos 33 a 56) e ao disciplinar a estruturação de seu Poder Judiciário (artigos 123 a 135), optou por não tipificar o dever de fundamentação de decisões.
A MOTIVAÇÃO NO DIREITO BRASILEIRO
Historicamente, tem-se percebido, tal como informa Maria Thereza Pero, desde a formação de Portugal, que, segundo alguns historiadores, passaria a ter registros formais com o primeiro desembarque de tropas romanas em 219 a.C., já se verificava, neste povo (conhecido por lusitanos) noções de respeito a um devido processo legal, ainda que não escrito, mas por seus costumes. Tal respeito a esse princípio se verificou em inúmeros forais e concílios, desde imemoriáveis tempos, podendo-se destacar: O foral de Castro de Xerez ( 974 d.c), o Concílio de Leão de 1.020, os Forais de Miranda de Ebro (1099), de Palenzuela (já sob a égide de Afonso VI), de Capeludos (1252), As leis gerais de D. Afonso II (Ordenações Afonsinas).[8]
Com o início da desvinculação entre o direito português e o brasileiro, já na Constituição Imperial de 1.824, artigo 179 (itens 13 a 17) também se iniciou a preocupação com os primados processuais e a necessidade de respeito ao devido processo legal, tendência que se seguiu em todas as nossas Constituições posteriores.
Aponta-se, inclusive, que, mesmo com a proclamação da independência, o país ainda continuou a adotar regras normativas portuguesas, por força do Decreto de 20.10.1823, que manteve, inclusive, o disposto no Livro III, Título LXVI, § 7º, primeira parte, das Ordenações Filipinas, dispondo sobre o dever dos Tribunais de lançarem os fundamentos de suas decisões, disposição mantida no Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850.[9]
Mesmo na época dos Códigos de Processo Estaduais, que se seguiu, vários foram os exemplos de expressa previsão do princípio da motivação, podendo-se destacar, verbi gratia, o artigo 382 do Código de Processo Civil de Minas Gerais (de um brilhantismo pioneiro, exigindo, dentro outros requisitos, que a sentença fosse clara, sem divagações científicas e os motivos precisos da decisão), o artigo 333 do Código de Processo Civil de São Paulo, o artigo 322 do Código de Processo Civil do Maranhão, o artigo 231 do Código de Processo Civil do Paraná e o artigo 308 do Código de Processo Civil da Bahia.[10]
Neste quadro histórico, e sendo o dever de motivação, uma garantia do Juiz imparcial, e, portanto, desdobramento do princípio do devido processo legal (o due process of law preconizado pela doutrina federalista norte americano, desde a Magna Charta Libertatis de 1.215), se tem aceito em doutrina, todos esses diplomas, como marcos significativos do dever de motivação no nosso ordenamento jurídico.
E tal como no direito italiano, também ocorre, no direito brasileiro, disposição constitucional expressa a respeito da motivação das decisões judiciais, como se verifica, pelo teor da norma contida no artigo 93, inciso IX da Constituição Federal de 05.10.1.988, com iguais previsões na legislação ordinária. De acordo com nossa Magna Carta: “Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões sob pena de nulidade.”
E o inciso seguinte do mesmo artigo 93 da Carta Política de 1.988 (qual seja, o inciso X), já é expresso em consignar que mesmo as decisões administrativas dos Tribunais (ou seja, decisões que não teriam cunho eminentemente jurisdicional, sob uma ótica estritamente técnica) devem ser motivadas. No ambiente do CPC/15 em seu art. 489, § 1º, este não afeta a liberdade que o juiz tem para valorar a prova, com a total Autonomia na valoração da prova e necessidade de adequada motivação, ressalte-se que a regra do art. 489, § 1º, CPC/2015, trata do 2º elemento (motivação), e não do 1º (liberdade na valoração da prova).
Corroborando tal entendimento, os artigos 371 e 372 comprovam a afirmação de que subsiste a liberdade de valoração da prova no CPC/2015, ao indicar que o juiz apreciará a prova atribuindo-lhe o valor que entender adequado, devendo, contudo, indicar as razões da formação do seu convencimento, ou seja, o Juiz não se configura estático, permanecendo a sua liberdade pautada na legislação e racionalidade.
Vale, ademais, apontar no sentido de que a motivação da decisão judicial equivale ao exame da causa de pedir de uma petição inicial enquanto que o dispositivo equivale ao pedido na análise de similitude entre as peças processuais em testilha. Assim, percebe-se de forma clara que, qualquer que seja a espécie de decisão que redunde na apreciação da petição inicial, de todo modo, haverá necessidade de motivação, ainda que concisa.
Obviamente que devem ser contidos abusos nesta interpretação, posto que existe ao menos uma categoria de provimentos jurisdicionais que não seria dotada de conteúdo decisório explícito, qual seja, a categoria dos despachos de mero expediente (decisões que não põem fim a relações jurídicas processuais, nem tampouco resolvem questões, apenas e tão somente dando regular impulso oficial ao processo).
Assim não sendo dotados de expresso conteúdo decisório, tem-se entendido que não haveria necessidade de fundamentação em relação aos despachos de mero expediente. Mesmo assim, aponta o Ministro Marco Aurélio Mello (STF) no sentido de que, mesmo contra o texto expresso de lei que aponta no sentido de que despachos são irrecorríveis, a garantia constitucional da motivação autorizaria que fossem interpostos embargos de declaração mesmo em face de tais despachos para se obter o aclaramento acerca das razões de decidir – as ratio essendi ou ratio decidendi, como queiram.