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A reforma da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal)

Agenda 18/02/2005 às 00:00

A vigente Lei de Execução Penal é reconhecida como instrumento legal moderno e de razoável racionalidade. Entretanto, como obra humana, certamente que está longe da perfeição. Ademais, em muitos pontos ressente-se da necessária adequação constitucional, tendo em vista que o sistema político sofreu sensível alteração em período posterior à sua entrada em vigor. Existe amplo projeto de reforma, que foi implementado apenas em parte: a dispensa de exame criminológico e a instituição do regime disciplinar diferenciado, como será visto na seqüência.


1.Progressão de regime e exame criminológico

O sistema penal brasileiro consagra o regime progressivo no cumprimento da pena. Os critérios para a progressão estão delimitados no artigo 112, da Lei 7210/84 (Lei de Execução Penal), cujo Capítulo I, do Título II, regulamenta a "Classificação", dispondo o artigo 5º: "Os condenados serão classificados, segundo seus antecedentes, para orientar a individualização da execução penal". Pela classificação, a lei concretiza os princípios constitucionais da igualdade, personalidade e proporcionalidade. De acordo com o artigo 6º, essa Classificação deve ser feita por uma Comissão Técnica interdisciplinar, cujo trabalho, além da finalidade de individualização da pena, é destinado, também, a fornecer elementos para que as autoridades decidam sobre progressões e regressões do regime prisional, conversões de penas, livramento condicional etc. Para a concessão do livramento condicional, o Código Penal (art. 83) condiciona à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir.

Resumindo: em um primeiro momento, o exame tem por objetivo a individualização da execução, devendo ser, então, realizado logo após o ingresso do condenado na instituição penitenciária, ocasião em que a Comissão Técnica de Classificação deve colher os subsídios para se determinar a medida mais adequada para cada indivíduo recluso; posteriormente, os exames criminológicos, realizados no curso da execução, têm como escopo aferir a personalidade, a conduta social, os antecedentes e o comportamento carcerário do sentenciado. São feitos por um corpo técnico especializado e multidisciplinar, composto por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais.

A Lei 10.792/03 deu nova redação aos artigos 6º e 112 Lei 7.210/84, dispensando o parecer da Comissão Técnica de Classificação e o exame criminológico, para as progressões e regressões de regime, as conversões de pena, livramento condicional, indulto e comutação. Fica mantida a exigência de exame para classificação, que deve ser realizado ao início da execução, embora se deva registrar que esse exame não tem sido feito, na prática.

O sistema progressivo, adotado pelo Código Penal e explicitado pela Lei de Execução Penal sofreu profundas alterações decorrentes da nova redação, pois se exclui de forma expressa o parecer da Comissão Técnica de Classificação e o exame criminológico. Contudo, não se modifica o aspecto objetivo, vale dizer, para progredir, o condenado deverá ter cumprido ao menos 1/6 da condenação, e os aspectos relacionados ao mérito são substituídos, apenas, pelo ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão. Não definiu a Lei o que seja o bom comportamento carcerário.


2.Regime disciplinar diferenciado

A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, como resposta ao surgimento de rebeliões ou sob a alegação da existência de quadrilhas organizadas no interior dos presídios, instalou presídios de segurança máxima, aumentou o poder dos diretores de penitenciárias e editou a Resolução SAP n. 26, de 04.05.2001, que instituiu o regime disciplinar diferenciado (RDD). Esse regime prevê sanção disciplinar, consistente no isolamento em cela própria, por 180 dias, com direito a banho de sol de uma hora e duas horas semanais destinadas a visita, aos líderes e integrantes de facções criminosas e aos presos cujo comportamento exija tratamento específico (art.1º).

Em seguida, no âmbito federal, surgiu a Medida Provisória n. 28/02, com o mesmo objetivo, mas que teve curta duração, por não haver sido convertida em lei pelo Congresso. O Governo Federal apresentou, então, projeto (n. 5.073/2001) que deu origem à já referida Lei n. 10.792/2003, que, no respeitante a essa matéria, modificou os artigos 52 a 54, 57, 58 e 60, da Lei 7.210/84 (LEP), introduzindo o referido regime disciplinar diferenciado.

O texto aprovado adota o regime paulista, agravando-o, pois prevê 360 dias de isolamento, desde o início, com a possibilidade de reiteração, até o limite de um sexto da pena aplicada (art. 52,I). Pode incluir até mesmo os presos provisórios (art. 52, §§ 1º e 2º), situação por demais gravosa, tendo em vista que se trata de presos não condenados, portanto, presos sob regime inteiramente cautelar.


3.Posicionamentos doutrinários sobre a reforma

3.1.Quando ao exame criminológico

Há manifestações no sentido de que o exame criminológico não pode ser dispensado. Primeiro porque também o Código Penal, nos artigos 33 e 59, refere-se ao mérito do condenado, para fixação do regime e dosagem da pena, respectivamente, cujos dispositivos não foram alterados pela Lei comentada. Além desse argumento, ressalta-se a necessidade de ser feito o exame inicial, para fins de classificação e individualização da execução da pena, tal como preconiza a Lei de Execução Penal, recepcionada, nessa parte, pela Constituição Federal, da mesma forma que se torna imprescindível o exame no curso do processo executório. Aliás, essa corrente é enfática em sustentar que a modificação não se aplica no caso de livramento condicional a condenado por crime doloso cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, tendo em vista a regra contida no parágrafo único, do artigo 83, do Código Penal, em que a concessão fica subordinada à constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir, cuja aferição continua a depender do exame criminológico.

Argumenta-se, ainda, que, com a vigência da nova lei, os atos praticados até então, dentre eles o exame criminológico, não devem ser desconsiderados, porquanto o legislador deixou claro que a Lei de Execução Penal é uma lei adjetiva, não havendo como distingui-la, no tocante à tramitação processual, de outra lei da mesma natureza, cuja aplicação só pode ocorrer a partir de sua vigência; não pode, pois, a nova lei retroagir, para desconstituir atos processuais já realizados, sob pena de se torná-la inaplicável, uma vez que seria obrigatória a desconstituição de todos os atos até então realizados, causando verdadeiro tumulto processual. Assim os velhos pedidos seguem as velhas regras e os novos as novas.

Outrossim, diz-se que o mérito do condenado, para a progressão de regime prisional (requisito subjetivo), diz respeito a seu bom comportamento carcerário e aptidão para retornar ao convívio social. De tal forma, para obter a progressão, não é suficiente o bom comportamento carcerário, exigindo-se, também, que esteja apto a ser colocado em regime menos rigoroso, cuja verificação depende de alguns meios, dentre os quais o exame criminológico, que deverá ser realizado quando necessário. Mesmo com a modificação do artigo 112 da Lei de Execução Penal, "o juiz pode determinar o exame criminológico quando o preso tiver praticado crime doloso com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, ou seja, se houver necessidade de ser aferido o mérito do condenado". Nesse caso, a decisão estará escorada no artigo 33 § 2º, do Código Penal, que "de forma genérica", diz que a pena privativa de liberdade deve ser executada de forma progressiva e segundo o mérito do condenado; também porque o artigo 83, parágrafo único, do mesmo Código, para concessão do livramento condicional ao condenado por crime doloso, cometido com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, exige a constatação de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir, cuja prova depende de exame criminológico. "De tal sorte, para a progressão de regime, que também redundará no retorno do preso ao convívio social, mesmo no regime semi-aberto (...), igualmente deve ser exigido esse exame para verificar se a periculosidade persiste".

Sustenta-se, também, que não houve qualquer mudança no que concerne à necessidade de demonstração, por exame criminológico, de condições pessoais que façam presumir que o condenado não voltará a delinqüir, quando a condenação for decorrente de crime doloso praticado com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa (art. 83, parágrafo único, do Código Penal). No entanto, indo mais além, defende-se a inaplicabilidade do novo diploma para a concessão de livramento condicional, mesmo fora dos casos de violência ou grave ameaça, uma vez que, embora tenha sido retirada a atribuição do Conselho Penitenciário em manifestar-se sobre a concessão do livramento condicional (art. 70, I, da Lei de Execução Penal), o artigo 131 do mesmo diploma legal continua a exigir a referida manifestação.

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De outro lado, quem aprova a inovação legislativa, isto é, a dispensa do parecer e também do exame criminológico, apóia-se no fato de que os pareceres dos peritos tinham como finalidade apenas dificultar, quando não inviabilizavam, o reconhecimento de direitos, pois, embora não fossem precedidos de estudos efetivos da personalidade do preso, e por mais irracional que fossem suas conclusões, os laudos, em regra, balizavam as manifestações do Ministério Público e as decisões judiciais. Isso porque, geralmente, o preso não tem acompanhamento psicossocial, desde o início da execução, como preconizado pela Lei de Execução Penal, o que os laudos não revelam, da mesma forma que omitem outras deficiências do sistema.

Consideram-se autoritárias e indemonstráveis processualmente tanto as avaliações sobre a personalidade do réu, na fase da aplicação da pena, quanto os exames e prognósticos previstos na Lei de Execução Penal, especificamente aquele referente à não-delinqüência, tendo em vista que "a emissão do parecer tem como mérito ‘probabilidade’, o que por si só em nada poderia justificar a negação de direitos subjetivos, visto serem hipóteses inverificáveis empiricamente", além de não serem submetidas ao contraditório.

No tocante à exigência de juízo de periculosidade, que ainda se mantém no artigo 83, parágrafo único, do Código Penal, considera-se que decorreu de afoiteza do legislador, o qual, ignorando a ligação entre este estatuto e a Lei de Execução Penal, criou mais uma antinomia no sistema. A desarmonia consiste em que, desde a Reforma Penal de 1984, pretendeu-se se extirpar o critério da periculosidade como centro do sistema de penas, que, todavia, resultou inserida através da subordinação da concessão de livramento condicional à existência de condições pessoais que façam presumir que o liberado não voltará a delinqüir. Desse modo, a reforma da Lei de Execução Penal, introduzida pela Lei 10.792/03, ora comentada, deveria ter alterado, também, os termos do referido dispositivo do Código Penal, para harmonizar-se com a alteração promovida, de eliminar o exame criminológico e basear a progressão de regime e o livramento do condenado em seu bom comportamento.

3.2.Quanto ao regime disciplinar diferenciado

Ainda quando se restringia ao âmbito estadual, criticou-se o regime diferenciado sob o prisma da constitucionalidade, tendo em vista que a Constituição Federal, não atribui ao Estado a tarefa de legislar, por meio de resolução, sobre matéria penal ou penitenciária. Essa crítica ficou superada com o surgimento da Lei Federal em análise; mas outras objeções foram feitas sobre sua adoção.

Reputou-se ilegal a Resolução paulista, por ofender a princípios constitucionais e dispositivos legais que cuidam da matéria, dentre os quais se destacam os seguintes pontos: embora a prisão do condenado importe em supressão do direito de liberdade, não se trata de uma supressão absoluta, havendo limites a serem observados pela autoridade penitenciária; não se pode confundir regime disciplinar com regime prisional, tendo em vista que este está ligado a norma constitucional, particularmente o princípio da legalidade, enquanto que o regime disciplinar está afeto ao aspecto de convivência carcerária, de controle administrativo (LEP, art. 44); a Resolução, na verdade, institui uma nova forma de regime de isolamento celular, criando mais uma etapa do cumprimento da pena privativa de liberdade, o regime "fechadíssimo"; o regime disciplinar diferenciado não definiu adequadamente seus destinatários, ou seja, "não montou uma tipologia de condutas que permitisse revelar o perfil dos condenados, que poderiam ser submetidos ao referido regime"; sua flexibilidade conceitual faz com que quase todos os presos sejam abrangidos, pois "qualquer preso poderá ser havido como ‘integrante’ de facção criminosa e quase todo preso poderá ter ‘comportamento que exija tratamento específico’".

Foi dito, ainda, que a criação do regime diferenciado confirma que ainda hoje os presos são tratados como cidadãos de segunda categoria e que há entre o preso e a administração penitenciária uma relação especial de sujeição e de poder, "ao invés de uma relação, derivada de uma vigência do Estado de Direito, que implica em direitos e deveres recíprocos". Esse ato normativo fere o artigo 5º, incisos II e XXXIX, da Constituição Federal (princípios da legalidade e reserva legal). E, por último, mesmo abstraído o aspecto de inconstitucionalidade, esse regime não se mostra suficiente para solucionar os graves problemas do sistema penitenciário. Ao contrário, o maior rigor no isolamento individual, que configura verdadeira "morte em vida", agrava e acelera o processo inevitável de dessocialização, aumentando o risco de violência e desorganização social. Desse modo, a criação de um regime disciplinar diferenciado não se justifica, a não ser por maior necessidade de vingança, bastando que se cumpra a Lei de Execução Penal.Ainda durante sua tramitação no Congresso, o projeto mereceu repúdio, também, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que o considerou inconstitucional, manifestando-se contrariamente à sua aprovação.

Entretanto, como se pode constatar, o texto aprovado adota o regime paulista, agravando-o, pois prevê 360 dias de isolamento, desde o início, com a possibilidade de reiteração, até o limite de um sexto da pena aplicada (art. 52,I). Pode incluir até mesmo os presos provisórios (art. 52, §§ 1º e 2º), situação por demais gravosa, tendo em vista que se trata de presos não condenados, portanto, presos sob regime inteiramente cautelar. O que deve ser medida excepcional, contém em seu bojo a "exceção das exceções". Trata-se de uma pena cruel, ferindo a Constituição, nos inciso III e XLVII, do art. 5º, que dispõe que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante" e que "não haverá penas cruéis", como também está previsto no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (arts 7º e 10) e Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (art.5º, 2).

Em sentido contrário, apoiando a legalidade do regime diferenciado, salientou-se que a Lei de Execução Penal contempla, em artigos esparsos (art. 5º, 8º, 41), a exigência de se tratar distintamente àqueles que se encontrem em diferentes situações jurídicas, tanto que, por exemplo, no artigo 41, XII, ao enumerar os direitos dos presos, assevera que "constitui direito do preso: igualdade de tratamento, salvo quanto as exigências da individualização da pena".

De outro lado, afirmou-se que o país precisa de uma política equilibrada, de um regime diferenciado e duro, para enfrentar o crime organizado, como ocorreu, com sucesso, na Itália, onde a Corte Constitucional respectiva não acolheu a argüição de que o regime era violador dos direitos humanos.

Ademais, a classificação serve como ponto de partida para a execução das penas, porque somente com ela é que se pode afirmar, futuramente, se o preso apresenta avanços ou não, para se decidir se pode progredir de regime, se deve permanecer no que se encontra ou se deve regredir; em seguida, a individualização da pena deve servir a uma outra finalidade, que apesar de óbvia, vem sendo desprezada pelo Estado: uma vez identificado o condenado propenso ao cometimento de crimes mesmo após o encarceramento, impedir-lhe de tais práticas, mediante a adoção de regras de convívio diferenciadas daquelas que regem o quotidiano do preso dito comum.

Há, portanto, a necessidade do estabelecimento de um sistema que permita atribuir regras diferentes para indivíduos com potencial agressivo diferenciado, sob pena de a eficácia da execução das penas restar prejudicada, caso em que "o criminoso apenas muda de endereço e continua gerenciando suas atividades a partir do sistema carcerário e com farta mão-de-obra à disposição".


4.Conclusões

A Lei 10.792/03, que introduziu alterações na 7.210/84, ao lado de um endurecimento de regime, que configura indiscutível retrocesso no aspecto criminológico, paradoxalmente, apresenta alguns avanços no sentido de adequação constitucional (garantismo) e, por conseguinte, como será comentado a seguir, pode resultar em tanto em maior racionalidade como em eficácia.

Em primeiro lugar, constata-se que a reforma se pauta pela jurisdicionalização, pelo menos no tocante a essa nova medida que introduziu ao sistema; a inclusão de condenado ou preso provisório no regime criado depende de requerimento motivado do diretor do estabelecimento, seguindo-se as manifestações do Ministério Público e da Defesa, e, só depois delas, a decisão judicial. Não basta o entendimento de que o preso necessita ser incluído no regime disciplinar diferenciado. A pretensão deverá ser convenientemente deduzida, formando-se processo judicial (incidente à execução). Evita-se, pois, que a autoridade administrativa decida a respeito de tão grave situação.

Além de afirmar-se a jurisdicionalização, atende-se às exigências dos princípios do contraditório e da ampla defesa, como se verifica em relação ao artigo 54, § 2º, que determina a manifestação do Ministério Público e da defesa, acerca da inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado (RDD) e artigo 112 § 1°, que prevê igual providência antes da decisão judicial a respeito da progressão de regime, livramento condicional, indulto e comutação de pena.

Todavia, mantém-se o sistema de "jurisdição sem ação", ou seja, não se compatibiliza com o texto constitucional, quanto ao aspecto relativo ao sistema acusatório. O sistema ainda se pauta pelo procedimento ex-ofício, porquanto dependente a iniciativa apenas de simples representação da autoridade administrativa, que sem possuir a capacidade postulatória, dirige-se diretamente ao juízo da execução.

Quanto aos posicionamentos doutrinários referentes à reforma, acima colacionados, é interessante constatar duas linhas de entendimento, antagônicas entre si: quem apóia o regime disciplinar diferenciado, é contra a dispensa do exame criminológico e vice-versa. De fato, como se pode conferir nos textos antecedentes, a polarização se estabelece praticamente de acordo com o perfil do sujeito processual; de um lado, identifica-se uma postura mais conservadora e, de outro, revela-se tendência mais progressista.

Afora o inevitável ingrediente ideológico e as divergências doutrinárias, que se apresentam explicitamente e que tanto são inevitáveis como salutares para a busca de aperfeiçoamento, impõe-se reconhecer alguma razão em cada uma das posições externadas.

Uma postura mais conservadora demonstra intransigência no tocante à realização do exame criminológico, inclusive como forma de adiar ou impedir a progressão de regime prisional, mesmo que seja para não cumprir a lei que o aboliu, "que é contrária ao interesse público".

No entanto, essa corrente nem sempre se mostrou assim tão combativa quando não via a realização do mesmo exame para o fim de classificação do preso e individualização da execução da pena, em sua fase inicial. É mais do que provável que, doravante, haverá firme posicionamento, inclusive mediante ações judiciais, para que seja feito o exame inicial classificatório, não apenas para atender ao seu desiderato originário, mas para ser utilizado, se for caso, em substituição àquele abolido pela reforma.

Mas, o combate à dispensa do laudo mostra-se contraditório nos seguintes pontos. De um lado, refere-se que a Lei de Execução tem natureza processual, por isso não se lhe aplicaria o princípio da anterioridade e nem o da vedação da lei nova mais grave; assim, o regime diferenciado pode se aplicar, tranqüilamente, aos apenados já inseridos no sistema, mesmo com relação a faltas cometidas anteriormente à vigência da nova lei; ainda por se tratar de lei adjetiva, não há que se dispensar as conclusões dos laudos criminológicos já realizados (logicamente, se desautorizarem a progressão).

Mas, de outro lado, embasa-se na lei penal, especificamente nos artigos 33 e 83, do Código Penal, para sustentar-se que, a despeito do texto expresso da nova lei, ainda se pode exigir a realização do exame criminológico, "quando necessário" para aferição do mérito para a progressão do regime. Contudo, esses dispositivos, além de tratar-se de normas penais e não processuais, têm caráter genérico e são anteriores. Assim, sob qualquer ângulo, por tornarem mais gravosa a situação, devem ser rechaçados.

A outra corrente aplaude a dispensa do exame criminológico, pelas razões já expostas, que se resumem em dois aspectos: não serem, normalmente, realizados na prática, por falta de recursos humanos e materiais; apresentarem conclusões de pouca credibilidade, pela má elaboração dos laudos e devido à tendência criminologicamente ultrapassada e algo preconceituosa dos profissionais encarregados.

Quanto ao regime disciplinar diferenciado, os adeptos dessa última corrente dizem, entre outras coisas, que o preso volta a ser considerado objeto da pena e não como sujeito de direitos perante o Estado; que o novo diploma configura um sério golpe contra uma visão constitucional e garantista, enfim, contra uma política defensora dos direitos humanos; essa política deve incluir a pessoa presa, na medida em que a moderna tendência criminológica afirma categoricamente que a sanção penal não pode afetar o cidadão em sua essência como pessoa, nem em seus direitos mais elementares, não atingidos pela pena.

No meu modo de ver, as objeções, relativamente ao exame criminológico, são procedentes. As críticas em relação aos laudos são antigas e variadas, dizendo-se que eles são sempre iguais, mesmo porque os profissionais (psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais) conseguem dizer das condições pessoais dos condenados com base em brevíssimas entrevistas; chegam, em muitos casos, a conclusões negativas, consistentes no "risco de reincidência", que não é aferível mediante exame e nem constitui tarefa desses profissionais; os laudos devem dizer das condições pessoais dos apenados, quando possível, para que os operadores do direito possam decidir, com base em suas conclusões. E, ademais, o risco de reincidência é requisito apenas para concessão do livramento condicional (art. 83, do Código Penal) e não da progressão do regime (art. 112, da Lei de Execução Penal).

Pode-se até concordar com quem pense que melhor seria corrigir os erros apontados, quanto à avaliação pericial, do que não realizá-la. Realmente, o acompanhamento efetivo e não apenas consistente em meras entrevistas de poucos minutos, seria o mais adequado, inclusive para as progressões e regressões de regimes. Mas, pelo menos, deve ser realizado exame sério e minucioso, no momento de ingresso do condenado no sistema, para fins de classificação e individualização.

Todavia, o que deve ser levado em conta é que, agora, dispensando o exame, para efeito de progressão e livramento condicional, existe uma lei, que deve ser cumprida, notadamente por não apresentar inconstitucionalidade. Ao contrário, até se pode dizer que ele vem ao encontro dos anseios daqueles que militam na área de proteção dos direitos humanos. Não se deve invocar a redação do artigo 83, parágrafo único, do Código Penal, para conferir tratamento mais gravoso ao condenado; ao contrário, com base na lei mais recente, deve-se entender que a norma penal é que deve ajustar-se a ela. Não obstante, teria sido mais adequado que o legislador tivesse estabelecido uma escala para aferição de comportamentos, com parâmetros objetivos para avaliação do comportamento prisional, o que constituiria maior segurança jurídica.

Dessa forma, cumpre a todo operador jurídico defender a aplicação do novo diploma, mormente daquele que detenha o papel constitucional de guardião da legalidade, ainda que, paralelamente, procure conscientizar ou sensibilizar os legisladores quanto à sua inadequação com o interesse público, caso se entenda assim. Não se afigura o melhor caminho procurar-se, sempre, uma interpretação "salvadora" de textos legais, para ajustá-los à posição do momento, como por vezes ocorre.

Quanto ao regime disciplinar diferenciado, comunga-se do entendimento de que não se constitui, efetivamente, em medida que se ajusta aos anseios da moderna criminologia, bem como de que não será solução para a grave crise criminal da atualidade. Ademais, conquanto seja sedutora a idéia de que se possa compreende-lo como solução imediata, em busca de alguma eficiência ao sistema penal, outras razões conspiram em sentido oposto. Conforme se deixou registrado, é justo pretender-se um sistema funcional. Compreendem-se os anseios sociais que demandam providências mais drásticas contra a criminalidade e contra a impunidade. Contudo, a eficácia do sistema de repressão penal não pode justificar o sacrifício de conquistas humanitárias histórias, sob pena de revelar-se contraproducente.

De fato, o primeiro objetivo da prisão deve ser, efetivamente, o de evitar a dessocialização do recluso. Dentre as formas de se evitá-la, a doutrina sugere que a prisão não reforce a carga de estigmatização social traduzida pelo julgamento e pela pena; que as limitações de direitos só devem ser admitidas por razões de força maior e não de necessidades de funcionamento do estabelecimento prisional; que as condições de vida do recluso devem ser mais próximas daquelas que tinha quando em liberdade e as relações do recluso com o mundo exterior devem ser facilitadas. Ora, esse regime caminha no sentido absolutamente contrário a essas proposições.


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Sobre o autor
Antonio Milton de Barros

promotor de Justiça aposentado, mestre e doutorando em Direito pela PUC/SP, professor de Processo Penal na Faculdade de Direito de Franca (SP), fundador-coordenador do Núcleo de Aperfeiçoamento e Crítica de Ciências Criminais (NACCRIM) da Faculdade de Direito de Franca (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Antonio Milton. A reforma da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 590, 18 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6322. Acesso em: 22 nov. 2024.

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