Resumo: O presente trabalho apresenta os elementos que constituem a responsabilidade civil do Estado, delimitando as relações existentes com o poder hierárquico e disciplinar, de forma a visualizar as vias de atuação que a Administração Pública possui em relação aos seus servidores, quando estes cometem infrações que geram a responsabilização do Estado, bem como as sanções que este pode aplicar a seus agentes. Versa também acerca da limitação da discricionariedade que a Administração Pública possui no regime disciplinar, de forma a impedir a arbitrariedade de suas ações em relação a seus servidores.
Palavras-chave: Responsabilidade civil do Estado; ação de regresso; poder disciplinar.
Abstract: This work presents the elements that constitute the civil liability of the State, defining the relations existing with the hierarchical power and discipline, in order to show the tracks of activity that public administration has in relation to their servers, when they commit offenses that generate the accountability of the State, as well as the penalties that this can apply to their agents.
Keywords: Civil Liability; action of return; disciplinary power.
1. Introdução
O desenvolvimento político, jurídico e social do Estado, passou por diversas transformações no transcorrer da história, sendo que, houveram diversas manifestações filosóficas que incidiram, preponderantemente, na forma como o Estado se responsabiliza pela prática de seus atos, bem como, acerca da responsabilização dos atos praticados por seus servidores.
O trabalho em questão visa demonstrar como a responsabilidade civil do Estado se desenvolveu através da construção de teorias que marcaram especificamente cada período da história desde o Estado absoluto, desenvolvendo-se correntes administrativistas, que criaram meios de proteger os administrados das arbitrariedades estatais no que se refere aos danos causados pela administração pública à propriedade particular.
Em um segundo momento, visa demonstrar a possibilidade de a administração agir regressivamente em relação ao seu servidor quando este age com dolo ou culpa causando danos a terceiros que demanda judicialmente contra o Estado, obrigando-o a indenizar e reparar o dano causado por seu agente.
Posteriormente, versa sobre o funcionamento e a aplicação dos poderes hierárquico e disciplinar pela administração pública, demonstrando suas principais características e sua incidência na aplicação de sanções administrativas aos servidores públicos que tenham cometido infrações e/ou tenham agido de forma a danificar o erário.
E finalmente, discorre acerca dos limites existentes em relação a discricionariedade do regime disciplinar que a administração pública possui, quanto à aplicabilidade de sanções a seus servidores quando estes cometem infrações não tipificadas administrativamente, visando assim demonstrar que existem formas de impedir a atuação arbitrária do Estado.
2. Responsabilidade civil do Estado
Antes de adentrar a responsabilidade civil do estado propriamente dita, bem como, às teorias que a envolve, é preciso fazer um adendo para explicar de forma sucinta o que é responsabilidade civil e como esta surge.
Apesar de ainda existir a dicotomia entre direito público e direito privado, a nova ordem constitucional tem movido esforços para reduzir essa disparidade e criar um liame de reciprocidade entre esses dois planos, fazendo com que haja aplicação mútua entre essas duas áreas, para então se chegar a um consenso em determinados casos concretos, bem como para demonstrar a singularidade do direito. Dito isso, entender como funciona a responsabilidade civil demanda conhecer como ela é aplicada no direito privado.
O Código Civil de 2002 disciplina sobre a responsabilidade civil no título IX composto pelos arts. 927 à 965, nos quais dispõe sobre a obrigação de indenizar, a indenização propriamente dita e as preferências e privilégios quanto ao crédito. No entanto, ao que se refere a este instituto, o Código Civil traz em seu título III, art. 186 a determinação legal que fundamenta a aplicabilidade da responsabilidade civil, dizendo que, “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. ”(CC; 2002), surgindo daí a obrigação de reparar o dano.
Para que haja obrigação indenizatória com vias a reparar o dano causado, proveniente de ato ilícito, têm-se que preencher alguns requisitos, quais sejam:
a) conduta comissiva ou omissiva culposa (aqui fala-se em culpa em sentido amplo, compreendendo assim, o dolo e a culpa caracterizada pela imprudência, negligência ou imperícia).
b) dano, que caracteriza a existência de um prejuízo sentido por uma pessoa, seja física ou jurídica.
c) a existência de nexo causal, que demonstra o liame entre a conduta do agente e o dano provocado, sendo que, sendo aplicado no direito brasileiro a teoria da causalidade direita e imediata.
No direito privado a regra é que se tem que demonstrar que houve dolo ou culpa para que nasça para o agente causador do dano a obrigação de indenizar, ou seja, aplica-se aqui a responsabilidade civil subjetiva e como exceção a responsabilidade civil objetiva. Como veremos, no Estado a regra é a aplicação da responsabilidade civil objetiva, uma vez que, o nosso ordenamento jurídico adota a teoria do risco administrativo. Entretanto, a responsabilidade civil do Estado aplicada nos dias atuais é fruto de uma longa evolução histórica e teórica acerca deste instituto, a qual passaremos a discorrer.
3. Evolução Histórica
A administração pública apresentou diversas faces no transcorrer da história, sendo que, cada qual correspondia ao regime jurídico-político que se estabelecia no Estado em cada momento determinado. Ocorre que, para que se tenha uma visão geral da evolução da responsabilidade civil do Estado, deve-se compreender que esta se relaciona de forma ampla e específica a cada período governamental, uma vez que, a responsabilidade civil estatal se apresenta entre dois extremos, sendo eles: a absoluta irresponsabilidade do estado e a absoluta e integral responsabilidade deste.
A incidência de três eventos políticos atuou de forma primordial para o desenvolvimento jurídico estatal, sendo: a transição do Estado Absolutista para o Estado Liberal, e deste para o Estado Social de Direito.
3.1) Estado Absolutista
O regime absolutista é marcado pela forte concentração do poder estatal nas mãos de um soberano denominado monarca absoluto, que agia de forma arbitrária e conforme sua vontade, ditando regras próprias e não se submetendo à lei.
Nesse Estado o rei praticava os atos da administração sem se preocupar com os danos causados a terceiros, uma vez que, o entendimento jurídico que se estabelecia na época declara que o monarca absoluto não comete erros, e, pelo fato de não cometer erros, não geraria para este a obrigação de indenizar o particular prejudicado por seus atos arbitrários.
Considerando o supramencionado sobre esse princípio, uma das assertivas que se dizia muito na época é “The King can do not wrong” que indica exatamente que o rei não comete erros. Todavia apesar de toda a carga valorativa dada a essa assertiva naquele período, tal princípio da irresponsabilidade do Estado não era absoluto, cabendo em algumas hipóteses a possibilidade de o Estado Absoluto responder por seus atos. Assim dispõe Celso Antônio Bandeira de Mello:
Estas assertivas, contudo, não representavam completa desproteção dos administrados perante comportamentos unilaterais do Estado. Isto porque, de um lado, admitia-se responsabilização quando leis especificas a previssem explicitamente (caso, na Franca, de danos oriundos de obras publicas, por disposição da Lei 28 pluvioso do Ano VIII); de outro lado, também se admitia responsabilidade por danos resultantes da gestão do domínio privado do Estado, bem como os causados pelas coletividades publicas locais. (MELLO; 2010, p. 1001)
Posto isso, depreende-se que apesar da arbitrariedade do Estado frente aos administrados, existiam legislações especiais que o próprio Estado criava impondo a ele mesmo a responsabilização quanto a prática de eventuais danos causados por sua atuação desenfreada e aparentemente ilimitada na esfera privada. Discorre também, que o Estado Absolutista em determinadas situações em que o dano causado era extremamente prejudicial e oneroso à vítima, que o Estado responsabilizaria o funcionário causador do dano em decorrência de suas atividades.
3.2) Estado Liberal
A transição do Estado Absoluto para o Estado Liberal se deu através de diversas revoluções burguesas que objetivavam limitar o poder governamental e instituir direitos e garantias fundamentais, nascendo a partir de então os fortes movimentos constitucionalistas, com o surgimento de dois grandes diplomas: a Constituição Americana de 1787 e a Constituição Francesa de 1891, que instituiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Uma das principais características do Estado Liberal é a existência de uma forte exaltação ao individualismo, ou seja, uma força normativa e jurídica voltada para a defesa das liberdades individuais. No que se refere a responsabilidade civil do Estado Liberal, adotava-se a Teoria da Responsabilidade com Culpa Comum do Estado.
Tal teoria era caracterizada pela equiparação do Estado aos indivíduos, já que vigorava no regime liberal uma forte tendência ao individualismo. Ocorre que, ao equiparar a responsabilidade do Estado à dos indivíduos em geral, a teoria descreve que o Estado somente será responsabilizado subjetivamente, ou seja, só geraria obrigação indenizatória caso restasse comprovada a culpa do seu agente ao prestar o serviço público, sendo assim descrito por Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, 2017, p. 915, como “Ela equipara o Estado ao indivíduo, reconhecendo a obrigação estatal de indenizar os danos que sua atuação causasse aos particulares nas mesmas hipóteses em que se configura tal obrigação para os indivíduos em geral.”, daí ser chamada de culpa comum.
3.3)Estado Social de Direitos
Dentro do Estado Social de Direito surge três teorias de grande importância para a caracterização da aplicação da responsabilidade civil do Estado nos dias de hoje: a teoria da culpa administrativa; teoria do risco administrativo e teoria do risco integral.
No entanto, antes de adentrar as teorias propriamente ditas, faz mister entender que esse tipo de Estado é caracterizado pela maior valoração da esfera social, vindo a ser implantado em um contexto histórico eivado de crises e guerras. Após a segunda guerra mundial, a preocupação em defender os direitos de segunda dimensão trouxe para os Estados em geral, uma iniciativa em editar normas constitucionais voltadas para o meio social, para defesa da igualdade e para a reestruturação dos Estados após o período de guerras.
3.3.1) Teoria da culpa administrativa
Essa teoria marca a transição da responsabilidade civil subjetiva para a responsabilidade civil objetiva, em que começa a se inserir no Estado a responsabilização por seus atos geradores de dano, sem a necessidade de se perquirir se houve dolo ou culpa, para que este seja obrigado a uma pretensão indenizatória. Acerca desta teoria, declara Hely Lopes Meireles em sua obra Direito Administrativo Brasileiro:
É o estabelecimento do binômio falta do serviço/culpa da Administração. Já aqui não se indaga da culpa subjetiva do agente administrativo, mas perquire-se a falta objetiva do serviço em si mesmo, como fato gerador da obrigação ,de indenizar o dano causado a terceiro. Exige-se, também, uma culpa, mas uma culpa especial da Admmistração, a que se convencionou chamar de culpa administrativa. (MEIRELES; 2016, p. 781)
A culpa administrativa não se pauta unicamente na existência de culpa por parte da administração pública, mas se refere também a prestação do serviço público, levando em conta o dano causado a terceiro, existindo uma parcela culpa, bem como a prestação irregular, falha ou retardada do serviço público, ou seja, o prejuízo sentido pelo administrado é proveniente ou da não execução do serviço caso ele exista, ou da demora para executá-lo, ou da prestação irregular e falha deste.
3.3.2) Teoria do risco administrativo
Conforme abordado anteriormente, o Estado Social de Direito recepcionou a transição do subjetivismo para o objetivismo no que se refere a responsabilidade civil do Estado. A teoria em questão se faz de grande importância e é prestigiada pela grande maioria dos doutrinadores, sendo adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro.
A responsabilidade civil objetiva é caracterizada pela desconsideração da existência de dolo ou culpa em sentido estrito, como forma de perseguir a pretensão indenizatória com vias a reparação do dano causado. Para que haja responsabilidade por parte da administração pública, basta que exista o dano e o nexo de causalidade entre a atividade praticada pela administração e o prejuízo sentido pelo terceiro.
No entanto, a responsabilidade objetiva não se restringe somente a desconsideração da culpa lato sensu, uma vez que, não faz diferença se o serviço prestado pela administração pública foi bom ou foi mal, regular ou irregular (diferindo da teoria da culpa administrativa), pois independentemente desses fatores, haverá por parte da administração uma obrigação de cunho indenizatório e reparatório. Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica essa teoria levando em conta a existência de pressupostos básicos de sua existência. Nesse sentido:
Constituem pressupostos da responsabilidade objetiva do Estado: (a) que seja praticado um ato lícito ou ilícito, por agente público; (b) que esse ato cause dano específico (porque atinge apenas um ou alguns membros da coletividade) e anormal (porque supera os inconvenientes normais da vida em sociedade, decorrentes da atuação estatal); (c) que haja um nexo de causalidade entre o ato do agente público e o dano. (DI PIETRO; 2015, p. 789)
Durante muito tempo, grande parte da doutrina entendia a teoria do risco administrativo e a teoria do risco integral como sendo sinônimas, até que Hely Lopes Meireles veio mencionar sua distinção. Dito isso, um dos requisitos, se não o único, que distingue essas duas teorias, se relaciona ao fato de que os pressupostos elencados como caracterizadores da responsabilidade civil objetiva não são pressupostos absolutos, como defendido pela teoria em pauta, sendo que, esses pressupostos são tidos como absolutos para a teoria do risco integral.
No entanto, o simples fato de não serem os pressupostos considerados absolutos para essa teoria, não define a distinção entre elas. Ocorre que, essa diferença, se encontra na existência ou não de causas que excluem a responsabilidade civil do Estado.
Para entender isso, faz mister explicar que, se esses pressupostos forem considerados absolutos, então se está dizendo que a administração pública fica responsabilizada por qualquer ato que venha lesar o administrado, inclusive aqueles decorrentes unicamente do comportamento da vítima, do caso fortuito e da força maior.
Suponhamos que a administração pública de uma cidade montanhosa, determinou que uma certa área daquele município possuía o seu solo instável, sendo comprovado mediante perícia e relatório de um especialista, a existência de alto grau de deslizamento nesta área. Sabendo disso, determinados cidadãos, que possuíam lotes naquele local, ainda assim decidiram construir seus imóveis, os quais foram destruídos pela chuva e pelo deslizamento. Considerando que, o comportamento pelo dano causado foi inteira e exclusivamente dos indivíduos, se o ordenamento jurídico determinar que os pressupostos supramencionados são absolutos, então a administração pública ficará responsabilizada por reparar o dano.
Por fim, cabe ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro adota a teoria do risco administrativo, levando em conta que os pressupostos da responsabilidade objetiva não são absolutos, sendo aplicadas as excludentes de responsabilidade nos casos em que couberem, ficando a administração pública isenta de obrigação indenizatória e reparatória, quando forem aplicadas.
3.3.3) Teoria do risco integral
Como explanado anteriormente, a teoria do risco integral é aquela a qual considera que a administração pública é responsável objetivamente por qualquer dano causado a terceiros, não considerando a existência de excludentes da responsabilidade civil do Estado.
Neste caso, ainda que o dano seja proveniente de manifestação exclusiva da vítima, de caso fortuito ou de força maior, nasce para a administração pública a obrigação indenizatória e reparatória.