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As políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico nacional

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Agenda 26/02/2005 às 00:00

Sumário: I. Introdução; II. Análise do sistema legal envolvido no debate jurídico sobre o tema ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil; II.I. Análise do tema à luz do direito internacional dos direitos humanos; II.II. Análise do tema à luz do direito do Direito Constitucional Comparado; II.III. Análise do tema à luz do direito positivo brasileiro; II.IV. Posicionamento da doutrina jurídica nacional sobre o tema; II.V. posicionamento do poder judiciário nacional sobe o tema; II.VI. Posicionamento do movimento social (movimento negro) sobre o tema: petição de amicus curiae; III. Conclusão; IV. Referências bibliográficas.


Resumo

O presente artigo aborda, sem pretender esgotar o tema, a juridicidade da implantação de políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros [1] pelo aparelho de estado brasileiro, bem como a compatibilidade de tais medidas com o ordenamento jurídico pátrio. Objetiva-se a análise dos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, especialmente, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, bem como exemplificar a existência de Constituições de outros países que prescreveram proteção étnica e racial de forma afirmativa. Procede-se a análise dos principais instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos fundamentais relacionados ao tema e a imperatividade da incorporação dos mesmos à ordem jurídica interna. Por fim, após a sistematização crítica da normatividade em vigor no Brasil, à luz do direito internacional dos direitos humanos, da doutrina nacional e de alguns casos já apreciados pelo Poder Judiciário, conclui-se pela compatibilidade das referidas políticas públicas com as leis brasileiras.

Palavras-chave: políticas públicas; ações afirmativas; cotas; negros; constitucionalidade.

"Todos os animais são iguais perante a lei,

mas alguns animais são mais iguais que outros"

(A Revolução dos Bichos, George Orwell)


I. Introdução

A análise das relações raciais no Brasil vem tomando projeção nos últimos anos, sobretudo após as pressões feitas pelo movimento negro e por setores progressistas da sociedade civil, que ocasionaram o reconhecimento pelo Estado da existência de racismo e de desigualdades raciais, bem como a propositura e implantação de políticas públicas específicas para a população negra objetivando a superação deste quadro. Entretanto, a adoção de políticas, programas e ações governamentais de ação afirmativa e seus mecanismos para negros geraram uma polêmica no debate público que há muito não se via. Essa polêmica tem se travado na mídia, nos espaços acadêmicos, nos Legislativos e nos meios jurídicos. Contudo, quando essas políticas públicas para negros foram implantadas no ensino público superior a polêmica chegou ao seu ápice. No campo jurídico a questão está distante de pacificação e do consenso, haja vista, especialmente, as diversas ações judiciais em curso no Poder Judiciário contestando a constitucionalidade dessas medidas afirmativas.

Muitos operadores do direito, professores e pesquisadores do campo jurídico alegam sua inoportunidade e até mesmo sua inconstitucionalidade [2], notadamente pela suposta vulneração do princípio da igualdade, do mérito, da proporcionalidade, da Federação, da autonomia universitária, e até mesmo sob a alegação de inexistência de critérios seguros para se identificar os beneficiários das medidas implantadas quando estas são destinadas aos pardos e às pessoas portadoras de deficiência. Outras críticas são dirigidas aos critérios adotados por algumas universidades para selecionar e identificar os beneficiários dessas políticas públicas. Mas a tendência observada no debate jurídico que vem a público é o de que as políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos (por exemplo, as cotas) para negros são compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro em vigor.

Demais disso, não podemos deixar de dizer, a área jurídica também é afetada pela carência de produção de textos sobre o assunto, e isso tem colaborado para a formação de alguns juízos de valor derivados do senso comum jurídico (doxa jurídica), sugerindo consistir um importante fator para a emissão de muitas avaliações equivocadas sobre o tema, como, por exemplo, o de que essas políticas públicas, mesmo baseadas no princípio da igualdade material albergado pela vigente Carta Constitucional, violariam o princípio da igualdade. Nesse sentido, a jurista Dora de Lima Bertúlio (2003, 103), refletindo sobre os prejuízos causados pela falta de estudos sobre o tema relações étnicas e raciais em nosso país, enfatiza que:

Na medida em que o conhecimento e a reflexão, indutores que são de nossa identidade, são componentes privilegiados da mudança de comportamentos, intervenção e julgamentos das pessoas em suas relações interpessoais e com o Estado, a carência de estudos e trabalhos sobre racismo, discriminação racial e direitos raciais da população negra permite perpetuar: a) os estereótipos racistas de incompetência do povo negro para se autogerir e desenvolver adequadamente nas sociedades contemporâneas (socialistas ou capitalistas); e b) o descaso do setor jurídico, na sociedade brasileira, para implementar direitos específicos que diminuam o impacto do racismo na qualidade de vida de quase 50% da população nacional.

Outro fator importante que parece contribuir para incompreensão das questões que envolvem a temática no campo jurídico é a tendência generalizada dos currículos das faculdades de Direito ainda serem por demais influenciados pela dogmática, pelo formalismo e pelo positivismo jurídico. Além do mais, poucos operadores do direito superam essa formação tradicional dedicando-se a estudos que tratem das novidades doutrinárias havidas no próprio campo jurídico, e, especialmente, a leituras interdisciplinares, notadamente no campo da sociologia, da antropologia, da filosofia, e da ciência política. A propósito dessas observações, o professor e pesquisador António Cavalcanti Maia (1999, 396), indaga:

até que ponto parcelas significativas de nossa comunidade jurídica encontram-se conscientes dos instrumentos teóricos disponíveis no campo da metodologia jurídica mais afeitos a uma práxis jurídica de sociedades democráticas contemporâneas?

Por fim, no contexto das polêmicas jurídicas, percebe-se uma resistência anormal por parte de alguns dos autores contrários a essas políticas públicas implantadas para os negros, que não se repetiram quando foram adotadas medidas positivas para outros segmentos de grupos ou pessoas sócio-politicamente vulneráveis no Brasil. Algumas das opiniões produzidas por juristas conceituados no mundo jurídico podem ser consideradas discriminatórias (muitos sem se perceberem de tal situação), e também sugerem que ainda privilegiam uma visão freyreana da realidade das relações étnicas e raciais no Brasil. Há uma generalizada compreensão entre eles de que existe uma razoável convivência harmônica entre os diferentes grupos étnicos e raciais que compõe a nação brasileira, ou seja, crêem no mito [3] da democracia racial. Esse construto ideológico, que naturaliza a discriminação racial ao estabelecer uma falsa consciência sobre a realidade das relações étnicas e raciais em nosso país, obnubila a compreensão desses juristas a tal ponto, que muitos sustentam que essa temática tem pouca relevância jurídica [4]. Há ainda os que crêem que a questão de classe supera a questão de raça, bem como muitos acreditam que a adoção de políticas afirmativas para negros poderá criar perigoso e indesejável acirramento da harmônica convivência havida com os demais grupos étnicos e raciais que compõe a nação brasileira.


II. Análise do sistema legal envolvido no debate jurídico sobre o tema ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil

A análise sobre a compatibilidade (constitucionalidade) das políticas públicas de ação afirmativa desenvolvidas pelo aparelho de estado brasileiro em favor dos negros com o ordenamento jurídico em vigor no Brasil, sob o ângulo estritamente normativo, sugere a constitucionalidade das medidas implantadas, tanto do ponto de vista do sistema jurídico internacional, quanto do direito doméstico, especialmente, à luz dos diversos princípios e regras estatuídos nessas instâncias jurídicas. Nesse mesmo momento se enfatiza que são despidas de valor jurídico quaisquer considerações que defendam a tese da necessidade de criação de uma lei nacional (federal) que explicite a possibilidade de implantação de políticas públicas para negros no Brasil. O próprio aparelho de estado brasileiro, utilizando o seu poder regulamentar, conferido pela Carta Política de 1988, já implantou muitas dessas políticas públicas, por exemplo, quando estabeleceu cotas para negros no Ministério da Reforma Agrária, nos cargos em comissão do governo federal (DAS), no Supremo Tribunal Federal, no Ministério da Justiça, nas bolsas de estudos do Instituto Rio Branco (Itamaraty), nas universidades públicas estaduais e federais (utilizando-se da autonomia universitária) etc.

II.I. Análise do tema à luz do direito internacional dos direitos humanos

No âmbito Direito Internacional dos Direitos Humanos há diversos instrumentos de proteção dos chamados direitos humanos fundamentais que além de prevenirem todas as formas de discriminação, também prevêem a adoção de políticas de promoção da igualdade. Tais instrumentos (tratados, convenções, acordos, pactos etc.) assumem uma dupla importância: consolidam parâmetros internacionais mínimos concernentes à proteção da dignidade humana e asseguram uma instância internacional de proteção de direitos, quando as instituições nacionais mostrarem-se falhas ou omissas.

Os instrumentos internacionais referentes à proteção dos direitos humanos fundamentais - ressalte-se - têm vigência obrigatória no território nacional, após serem ratificados e promulgados pelas autoridades constitucionalmente competentes, por força do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal brasileira de 1988. Nesse sentido, incumbe a todos os poderes do Estado se conformar à ordem jurídica interna presidida pelo Texto constitucional, bem como aos princípios e regras consignados no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Reza o citado § 2º, do artigo 5º, que:

os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Destacamos, dentre outras normas do sistema internacional de proteção dos direitos humanos fundamentais aplicáveis ao tema sob exame (de observar que os instrumentos abaixo citados não utilizam o termo "ação afirmativa", e sim "medidas especiais", que significam a mesma coisa) as seguintes:

- A Convenção relativa à luta contra a discriminação no campo do ensino [5], que "consciente de que incumbe conseqüentemente à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, dentro do respeito da diversidade dos sistemas nacionais de educação, não só proscrever qualquer discriminação em matéria de ensino, mas igualmente promover a igualdade de oportunidade e tratamento para todos neste campo", estabelece, no seu Artigo I, que "Para os fins da presente Convenção o termo ‘discriminação’ abarca qualquer distinção, exclusão, limitação ou preferência que, por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou qualquer outra opinião, origem nacional ou social, condição econômica ou nascimento, tenha por objeto ou efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento em matéria de ensino". No item 2, do mesmo artigo, diz que: "Para os fins da presente Convenção, a palavra ‘ensino’ refere-se aos diversos tipos e graus de ensino e compreende o acesso ao ensino, seu nível e qualidade e as condições em que é subministrado";

- A Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, artigo 1º, item 4: "Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos e indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos";

- A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, artigo 4º, item 1: "A adoção pelos Estados-Partes de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento haverem sido alcançados".

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No cenário dos instrumentos internacionais de proteção aos Direitos Humanos fundamentais também não podemos olvidar os termos da Declaração e o do Plano de Ação da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, em setembro de 2001 [6]. Naquele instante, o Estado brasileiro comprometeu-se a adotar, oficialmente, após assinar a Declaração de Durban, medidas para eliminar o racismo, o preconceito, a discriminação e a falta de oportunidades para os afro-brasileiros. A referida Declaração, é oportuno seja lembrado, considerou a escravidão e o tráfico de escravos como crimes contra a humanidade e ainda reconheceu que os africanos e os afrodescendentes foram e continuam sendo vítimas desses crimes. A pesquisadora Rosana Heringer [7], no artigo intitulado Ação afirmativa, estratégias pós-Durban, destaca a importância da citada Conferência e de seus resultados, que no seu entendimento deu maior visibilidade ao tema ação afirmativa em nosso país, ressaltando ainda que o Plano de Ação de Durban "apresenta o combate ao racismo como responsabilidade primordial do Estado e, portanto", nos seus artigos 99 e 100:

incentiva os Estados a desenvolverem e laborarem planos de ação nacionais para promoverem a diversidade, igualdade, eqüidade, justiça social, igualdade de oportunidades e participação de todos, através, dentre outras medidas, de ações e estratégias afirmativas ou positivas. (Art. 99). (...) insta os Estados a estabelecerem, com base em informações estatísticas, programas nacionais, inclusive programas de ações afirmativas ou medidas de ação positivas, para promoverem o acesso de grupos e indivíduos que são ou podem vir a ser vítimas de discriminação racial (Art.100).

No contexto do Direito Internacional dos Direitos Humanos, cumpre ressaltar, por outro lado, a existência do princípio de não discriminação que tem aplicação destacada [8], e baliza toda a temática dos direitos econômicos, sociais e culturais. Esse princípio é caracterizado como sendo uma garantia fundamental, porque se salienta nele o caráter instrumental, garantidor, do direito de igualdade. O referido princípio se encontra presente em quase os todos os instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos fundamentais produzidos no século XX, dentre os quais destacamos: Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 2º); Pacto dos Direitos Civis e Políticos (artigos 2º, I, e 26); Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 2º); Convenção Européia de Direitos Humanos (artigo 14); Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 1, I); Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos (artigo 2º); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; a Convenção da OIT sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, de 1958; a Convenção da UNESCO contra Discriminação na Educação, de 1960; e a Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Baseadas na Religião ou Crença, de 1981.

Decorre ainda do referido princípio que se estabeleça um veto às discriminações, ou seja, que se tenha imposto o não diferenciar, que se imponha positivamente, a obrigatoriedade de se dispensar a todos igual tratamento. Além disso, atualmente tem-se entendido que a articulação do princípio de não discriminação com a ação afirmativa resulta em inclusão social. É com essa perspectiva, por exemplo, que a Carta dos Direitos Fundamentais, recentemente adotada pela União Européia, admite que, para se conseguir a igualdade, o direito de não ser discriminado deve ser complementado pelo direito ao usufruto das medidas projetadas para garantir autonomia, inserção e participação na vida da comunidade. Cançado Trindade (2002), em consonância com tudo o que foi acima alinhavado, assevera que o princípio de não discriminação está vinculado às políticas de ação afirmativa para grupos ou pessoas sócio-politicamente vulneráveis:

As políticas de ação afirmativa para grupos vulneráveis encontra-se diretamente vinculadas à luta pela prevalência do princípio da não-discriminação

Em complemento às considerações antes expendidas, temos ainda o que CANOTILHO (2000, 386) chama de "função de não discriminação" - uma das principais funções dos direitos fundamentais. Segundo esse constitucionalista português, a partir do princípio de igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na Constituição, se assegura que o Estado trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais, e, por conseqüência, aplica-se a função de não-discriminação a todos os tipos de direitos: aos direitos, liberdades e garantias pessoais; de participação política; direitos sociais e aos direitos à prestação. Seguindo essa linha de pensamento, finaliza o referido autor, que tal função se aplica inteiramente à instituição mecanismos de ação afirmativa, como, por exemplo, as cotas:

É com base nesta função de não discriminação que se discute o problema das quotas (ex. ‘parlamento paritário de homens e mulheres’) e o problema das afirmative actions tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex. ‘quotas de deficientes’). É ainda com uma acentuação-radicalização da função antidiscriminatória dos direitos fundamentais que alguns grupos minoritários defendem a efetivação plena da igualdade de direitos numa sociedade multicultural e hiperinclusiva (‘direitos dos homossexuais’, ‘direitos das mães solteiras’, ‘direitos das pessoas portadoras de HIV’)

II.II. Análise do tema à luz do direito do Direito Constitucional Comparado

Outro ponto importante a ser analisado sobre tema em comento, é o estudo do Direito Constitucional Comparado. O Direito Constitucional Comparado tem contribuído de forma substancial para o aprimoramento da implantação das políticas de ação afirmativa. Essa especialização do Direito Constitucional nos revela como outros países instituíram políticas de ação afirmativa para minorias étnicas e raciais e grupos e pessoas sócio-politicamente vulneráveis. Diversos países do mundo incorporaram declaradamente princípios e regras de ação afirmativa nas suas Constituições. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, apesar de albergar esse instituto, mas não o faz declaradamente, mas de forma latente no Texto Fundamental.

A guisa de exemplos temos as seguintes Constituições:

- da África do Sul [9], de 1996, pós apartheid:

Bill of Rights(2) Equality includes the full and equal enjoyment of rights and freedoms. To promote the achievement of equality, legislative and other measures designed to protect or advance persons, or categories of persons disadvantaged by unfair discrimination in any be taken

- do Canadá, de 1982:

(4) Subsections (2) "and (3) do not any law, program or activity that has as its object the amelioration in a province of conditions of individuals in that province who are socially or economically disadvantaged if the rate or employment in that providence is below the rate of employment in Canada

- da Argentina, de 1994, no capítulo quarto – Atribuições do Congresso – dispõe no art. 23:

Legislar e promover medidas de ação positiva que garantam a igualdade real de oportunidades e de trato e pleno gozo e exercício dos direitos reconhecidos por esta Constituição e por tratados internacionais vigentes sobre direitos humanos, em particular das crianças, mulheres, anciãos e pessoas com incapacidade. (tradução nossa)

- da Colômbia de1991, com a Reforma de 1997, em diversos artigos, determina que:

Art. 7. El Estado reconoce y protege la diversidad étnica y cultural de la Nación colombiana".

Art. 13. Todas las personas nacen libres e iguales ante la ley, recibirán la misma protección y trato de las autoridades y gozarán de los mismos derechos, libertades y oportunidades sin ninguna discriminación por razones de sexo, raza, origen nacional o familiar, lengua, religión, opinión política o filosófica.

El Estado promoverá las condiciones para que la igualdad sea real y efeciva y adoptará medidas en favor de grupos discriminados o marginados".

- do Paraguai de 1992, artigo 46:

Todos os habitantes da República do Paraguai são iguais em dignidade e direitos. Não se admite discriminações. O Estado removerá os obstáculos e impedirá os fatores que os mantêm ou propiciam (tradução nossa)

Encontramos ainda a proteção particularizada das populações vulneráveis nos seguintes textos Constitucionais Europeus: a) Finlândia : art. 50, in fine; b) Suécia: cap.1 art. 2 in fine e cpa 2; arts. 14 e 15, in fine; c) Alemanha: arts. 6 (5); 20 (1); d) Bulgária: arts. 35(4), 65; e) Polônia : arts. 67(2), 81; f) Romênia; art. 17; g) Tchecoslováquia : art. 20(2); h) Áustria: art. 8º, Lei Fundamental 21.12.1867; art. 19; Tratado de Saint Germain; arts. 62 a 68; Tratado Internacional de 15.5. 1955; arts. 7, 26; j) Iugoslávia: Princípios Fundamentais inc. VII, parágrafo 2º (4º item), arts. 170, 171, 245 a 248.

II.III. Análise do tema à luz do direito positivo brasileiro

Na ordem jurídica interna, por outro lado, o legislador brasileiro já tem experiência legislativa com políticas públicas de ação afirmativa, pois que editou leis e outros tipos normativos que reconhecem o direito à diferença de tratamento legal para diversos grupos considerados sócio-politicamente vulneráveis. É importante ressaltar, que as diversas normas jurídicas editadas não se referem ao termo "ação afirmativa" ou "medidas especiais", à exceção das leis editadas pelo Estado do Rio de Janeiro que se referem ao termo "cotas". Em geral, os termos empregados são: "reservar" (por exemplo, na Lei nº 9.504/97), "reservará" (por exemplo, na Carta Federal, o artigo 37, Inciso VIII) e "reservarão" (por exemplo, na Lei nº 5.465/68 – "Lei do Boi").

Apesar de pouco comentado pela literatura especializada, o pioneirismo na criação de políticas de ação afirmativa no âmbito do ensino público superior, antes mesmo da edição das leis de cotas pelo Estado do Rio de Janeiro, coube ao governo federal, em 1968, com a denominada "Lei do Boi’ (Lei 5.465/68). Essa lei, criada na época da ditadura militar e teve vigência até o Governo do presidente José Sarney, mas que acabou favorecendo os membros elite rural brasileira instituiu reserva de vagas (50%)

para a candidatos agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos dêstes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio", nos cursos de graduação de Agricultura e Veterinária

Outra iniciativa pioneira, mas também pouco comentada, originou-se do Poder Judiciário. Provocado pelo Ministério Público Federal (Procuradoria da República) no Estado do Ceará, por meio de uma Ação Civil Pública [10], o MM. Juizo da 6ª Vara Federal, determinou, em 15 de setembro de 1999, que a Universidade Federal do Estado do Ceará, "em nome do princípio da isonomia", "doravante e até ulterior deliberação", reservasse "cinqüenta por cento (50%) das vagas de todos os seus cursos para estudantes egressos da rede pública de ensino".

Dentre outros, destacamos abaixo, os principais princípios e regras do sistema legal nacional, que albergam políticas de ação afirmativa para negros no Brasil:

I.Constituição Federal, artigos:

- Preâmbulo (instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais (...) o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundadas na harmonia social);

- 1º, inciso III (princípio que resguarda o valor da dignidade humana);

- 3º, incisos I, III e IV (constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, bem como promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e erradicar a (...) marginalização e reduzir as desigualdades sociais);

- 4º, incisos II e VIII (a República Federativa do Brasil, No plano das relações internacionais, deve velar pela observância dos princípios da prevalência dos direitos humanos e do repúdio ao terrorismo e ao racismo);

- 5º, incisos XLI e XLII (consagra o princípio da igualdade; punição para qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, e, enuncia que racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei), e parágrafo 2º, consagrando a incorporação do direito advindos dos tratados internacionais);

- 7º inciso XXX (no campo dos direitos sociais, proíbe a diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil);

- 23, inciso X (combater (...) os fatores de marginalização);

- 37, inciso VIII (a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão);

- 145, § 1º (Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte...);

- 170, incisos VII (redução das desigualdades (...) sociais) e IX (tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País);

- 179 (A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei);

- 208, Inciso V (O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de (...). acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um);

- 227, inciso II - criação de programas (...) de integração social dos adolescentes portadores de deficiência.

- Art. 68. Do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) (Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos).

II. Leis ordinárias (federais):

- Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que prevê, em seu art. 354, cota de dois terços de brasileiros para empregados de empresas individuais ou coletivas;

- Decreto-Lei 5.452/43 (CLT), que estabelece, em seu art. 373-A, a adoção de políticas destinadas a corrigir as distorções responsáveis pela desigualdade de direitos entre homens e mulheres;

- Lei nº 5.465/68, que prescreveu a reserva de 50% de vagas dos estabelecimentos de Ensino Médio Agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária a candidatos agricultores ou filhos destes (mais conhecida como "Lei do Boi");

- Lei 8.112/90, que prescreve, no artigo 5º, § 2º, reserva de até 20% para os portadores de deficiências no serviço público civil da união;

- Lei 8.213/91, que fixou, em seu art. 93, reserva para as pessoas portadoras de deficiência no setor privado;

- Lei 8.666/93, que preceitua, em art. 24, inc. XX, a inexigibilidade de licitação para contratação de associações filantrópicas de pessoas portadoras de deficiência;

- Lei nº 9.029, de 13/04/95, que proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais, ou de permanência da relação jurídica de trabalho;

- Lei 9.504/97, que preconiza, em seu art. 10, § 3º, "reserva de vagas" para mulheres nas candidaturas partidárias.

II.IV. Posicionamento da doutrina jurídica nacional sobre o tema

A presunção de constitucionalidade das políticas públicas de ação afirmativa para negros conta com a adesão de expressiva parcela da doutrina brasileira especializada no assunto.

Joaquim B. Barbosa Gomes (2000), ministro do Supremo Tribunal Federal, enfrentando essa questão, e posicionando-se a favor da constitucionalidade das ações afirmativas em nosso país, afirma que:

No plano estritamente jurídico (que se subordina, a nosso sentir, à tomada de consciência assinalada nas linhas anteriores), o Direito Constitucional vigente no Brasil, é perfeitamente compatível com o princípio da ação afirmativa. Melhor dizendo, o Direito brasileiro já contempla algumas modalidades de ação afirmativa, inclusive em sede constitucional

E, conclui:

Assim, à luz desta respeitável doutrina, pode-se concluir que o Direito Constitucional brasileiro abriga, não somente o princípio e as modalidades implícitas e explícitas de ação afirmativa a que já fizemos alusão, mas também as que emanam dos tratados internacionais de direitos humanos assinados pelo nosso país.

Nesse mesmo passo, segue Marco Aurélio Mendes de Farias Mello [11], também Ministro do Supremo Tribunal Federal, aludindo que:

(...). E, aí, a Lei Maior é aberta com o artigo que lhe revela o alcance: constam como fundamentos da República Brasileira a cidadania e a dignidade da pessoa humana, e não nos esqueçamos jamais de que os homens não são feitos para as leis; as leis é que são feitas para os homens. Do artigo 3º vem-nos luz suficiente ao agasalho de uma ação afirmativa, a percepção de que o único modo de se corrigir desigualdades é colocar o peso da lei, com a imperatividade que ela deve ter em um mercado desequilibrado, a favor daquele que é discriminado, que é tratado de forma desigual

Recentemente, tivemos outro pronunciamento de um ministro do Supremo Tribunal Federal referendando a as políticas de ação afirmativa para negros no Brasil: o atual Presidente da excelsa Corte Suprema, Nelson Jobim. Já no seu discurso [12] de posse como Presidente da citada Corte, em 15 de junho de 2004, o Ministro Nelson Jobim, chamava a atenção dos presentes ao evento para o fato da

regra do convívio democrático. São estes os pressupostos da ação. São essas as exigências do futuro. Façamos um acordo a bem do Brasil e do seu futuro. De um Brasil que reclama a inclusão social e o bem estar de todos. Que exige o desenvolvimento social e econômico. Que passa a enfrentar os seus obstáculos culturais, sociais e econômicos. Que discute e quer dar solução à exclusão dos negros.

Já no dia 20 de agosto de 2004, o referido Ministro Nelson Jobim retomou a temática em uma palestra [13] que proferiu na Câmara Municipal de São Paulo, no seminário A inserção do Afro-descendente na sociedade brasileira, de iniciativa da vereadora Claudete Alves, ocasião em que ratificou os termos do seu discurso de posse. Nesta oportunidade, o ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, pronunciou-se sobre o tema nos seguintes termos:

(...) O que está por trás das chamadas ações afirmativas? Está exatamente atrás a evolução do tratamento do tema. Não mais ter só exclusivamente a forma reativa, da apenação penal, com todas as suas deficiências, não importa, mas ter também ações que sejam legitimadoras de políticas públicas que possam reduzir o âmbito da desigualdade. E não fazer com que a desigualdade se reproduza. É isto que está atrás dessa discussão das chamadas ações afirmativas e das chamadas quotas de negros ou negras nas universidades etc. (...)

Outros juristas respeitados por sua erudição no campo jurídico também se pronunciaram a favor da juridicidade das aludidas políticas públicas, senão vejamos:

- Dora Lúcia de Lima Bertúlio (2003, 15):

Não só não há inconstitucionalidade na proposição de medidas semelhantes aos programas de ação afirmativa em vigor nos Estados Unidos, como há o estímulo de que o Estado, por intermédio de seus poderes, incentive e crie mecanismos para minimizar e até eliminar quaisquer resquícios de discriminação racial no interior da sociedade

- Carlos Roberto de Siqueira Castro (2003, pp. 444-446 e 451):

"Tudo porque, em tal contexto de estatísticas sociais desfavoráveis para aqueles contingentes humanos inferiorizados da sociedade, a persistência nas generalizações legislativas, com adoção de normas simplistas, genéricas e iguais para todos, independentemente das notórias diferenças sociais e econômicas que são fruto, por exemplo, do escravismo e da cultura machista, não propicia a mobilidade e a emancipação social desses grupos discriminados e, até mesmo, aprofunda e reproduz os condenáveis preconceitos histórica e culturalmente enquistados no organismo social. Nesse campo de questões, que bem exprime as relações sempre tensas entre o Direito e a sociedade, a caracterizar o fenômeno a que designamos de constitucionalismo de resultado, percebe-se nitidamente o abandono do classicismo isonômico e a busca de instrumentos de aplicação e interpretação da Constituição capazes de enfrentar o imobilismo conservador e de prestigiar as políticas públicas mudancistas e de transformação social. Aqui, altera-se a dimensão e o próprio eixo de referência da igualdade, substituindo-se a idéia da não-discriminação formal pelo ideal da não-discriminação material. Por esse viés teórico, o postulado da isonomia não mais se refere apenas à proibição de tratamento discriminatório, mas inclui na análise sociológico-jurídica o impacto e as seqüelas sociais impostas pela longa sujeição histórica e cultural ao tratamento desigual antes prevalente. Nessa ótica, vislumbra-se o duplo aspecto (social e jurídico) da teorização da igualdade, ou seja, as "as teorias da discriminação", que no modelo americano foram denominadas de "teoria do tratamento diferencial" (disparate treatment theory) e "teoria do impacto diferencial" (disparate impact theory). Em tal ordem de convicções, as ações positivas despontam como um mecanismo da justiça distributiva, destinado a compensar inferioridades sociais, econômicas e culturais associadas a dados da natureza e ao nascimento dos indivíduos, como raça e sexo.

(...) Ressalte-se portanto que a ação afirmativa tem como objetivo não somente coibir a discriminação mas sobretudo eliminar os chamados "efeitos persistentes" da discriminação do passado, que tendem a perpetuar. Ainda nesse contexto, revela destacar que partindo-se da premissa de que os grupos minoritários normalmente não são representados ou sub-representados nos mais diversos ramos de atividade, as ações afirmativas pretendem a implantação de uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diversos domínios de atividade pública e privada. Nesse contexto, destaque-se que o efeito mais visível das políticas afirmativas, além do estabelecimento da diversidade e da representatividade propriamente ditas, é a eliminação de "barreiras invisíveis" que acabam por impedir o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subordiná-los.

(...) A adoção de cotas para ingresso de estudantes negros em universidades brasileiras afigura-nos como uma necessária medida para solucionar o desproporcional quadro do ensino superior em nosso País

- Marcelo Neves (1996, pp. 262-263):

(...) quanto mais se sedimenta historicamente e se efetiva a discriminação social negativa contra grupos étnico-raciais específicos, principalmente quando elas impliquem obstáculos relevantes ao exercício de direitos, tanto mais se justifica a discriminação jurídica positiva em favor dos seus membros, pressupondo-se que esta se oriente no sentido da integração igualitária de todos no Estado e na sociedade. (...) as discriminações legais positivas em favor da integração de negros e índios estão em consonância com os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, estabelecidos nos incisos III e IV do seu artigo 3º

- Hédio Silva Jr. (2002, 112):

Salvo engano, é certo que a Constituição de 1988, implícita e explicitamente, não apenas admitiu como prescreveu discriminações, a exemplo da proteção do mercado de trabalho da mulher (artigo 7o, XX) e da previsão de cotas para portadores de deficiência (artigo 37, VIII), donde se conclui que a noção de igualdade circunscrita ao significado estrito de não-discriminação foi contrapesada com uma nova modalidade de discriminação, visto como, sob o ângulo material, substancial, o princípio da igualdade admite sim a discriminação, desde que o discrímen seja empregado com a finalidade de promover a igualização

II.V. Posicionamento do poder judiciário nacional sobe o tema:

O Poder Judiciário brasileiro ainda não se manifestou definitivamente sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade dos programas de ação afirmativa instituídos até o momento em nosso país, porquanto as diversas ações ajuizadas nos tribunais que têm competência para exercer o controle direto de inconstitucionalidade (o Supremo Tribunal Federal e os Tribunais de Justiça locais) não foram julgadas no mérito [14]. Apesar disso, já foram proferidas sentenças por juízos de primeira instância, em sede de controle difuso de constitucionalidade, que julgando o mérito dos pedidos formulados nos diversos processos, concluíram pela constitucionalidade das leis que instituíram cotas em favor de negros em estabelecimentos públicos de educação superior.

No Estado do Rio de Janeiro, porém, os julgamentos de ações individuais, denominadas mandados de segurança, ainda não terminaram, se bem que a maioria dos pedidos formulados nestas ações estão sendo julgados improcedentes. Em ratificação ao alegado, transcrevemos um acórdão proferido no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no dia 10 dezembro de 2003, relatado pelo Desembargador Cláudio de Mello Tavares, da décima primeira Câmara Cível, na apelação nº 2003.001.27.194. O acórdão, julgado por unanimidade, manteve a decisão da primeira instância, ao denegar pedido incidental de inconstitucionalidade, formulado em mandado de segurança individual, impetrado por um candidato ao vestibular da Uerj preterido por outro candidato "cotista", concluindo pela constitucionalidade das leis impugnadas.

Apesar de a ementa do acórdão ser extensa, a mesma merece ser reproduzida pelos fundamentos que apresenta:

APELAÇÃO CÍVEL EM MANDADO DE SEGURANÇA. DENEGAÇÃO DO WRIT. SISTEMA DE COTA MÍNIMA PARA POPULAÇÃO NEGRA E PARDA E PARA ESTUDANTES ORIUNDOS DA REDE PÚBLICA ESTADUAL DE ENSINO. LEIS ESTADUAIS 3524/00 E 3708/01. EXEGESE DO TEXTO CONSTITUCIONAL. A ação afirmativa é um dos instrumentos possibilitadores da superação do problema do não cidadão, daquele que não participa política e democraticamente como lhe é na letra da lei fundamental assegurado, porque não se lhe reconhecem os meios efetivos para se igualar com os demais. Cidadania não combina com desigualdades. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que lhe buscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história pelas mãos calejadas dos discriminados. É preciso ter sempre presentes essas palavras. A correção das desigualdades é possível. Por isso façamos o que está a nosso alcance, o que está previsto na Constituição Federal, porque, na vida, não há espaço para o arrependimento, para a acomodação, para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber a origem, a tudo que é novo. Mas mãos à obra, a partir da confiança na índole dos brasileiros e nas instituições pátrias. O preceito do art. 5º, da CR/88, não difere dos contidos nos incisos I, III e IV, do art. 206, da mesma Carta. Pensar-se o inverso é prender-se a uma exegese de igualização dita estática, negativa, na contramão com eficaz dinâmica, apontada pelo Constituinte de 1988, ao traçar os objetivos fundamentais da República Brasileira. É bom que se diga que se 45% dos 170 milhões da população brasileira é composta de negros (5% de pretos e 40% de pardos); que se 22 milhões de habitantes do Brasil vivem abaixo da linha apontada como de pobreza e desses 70% são negros, a conclusão que decorre é de que, na realidade, o legislador estadual levou em conta, quando da fixação de cotas, o número de negros e pardos excluídos das universidades e a condição social da parcela da sociedade que vive na pobreza, como posto pela Procuradoria do Estado em sua manifestação. O único modo de deter e começar a reverter o processo crônico de desvantagem dos negros no Brasil é privilegiá-la conscientemente, sobretudo naqueles espaços em que essa ação compensatória tenha maior poder de multiplicação. Eis porque a implementação de um sistema de cotas se torna inevitável. Na medida em que não poderemos reverter inteiramente esta questão em curto prazo, podemos pelo menos dar o primeiro passo, qual seja, incluir negros na reduzida elite pensante do país.

O descortinamento de tal quadro de responsabilidade social, de postura afirmativa de caráter nitidamente emergencial, na busca de uma igualdade escolar entre brancos e negros, esses parcela significativa de elementos abaixo da linha considera como de pobreza, não permite que se vislumbre qualquer eiva de inconstitucionalidade nas leis 3.524/00 e 3708/01, inclusive no campo do princípio da proporcionalidade, já que traduzem tão-somente o cumprimento de objetivos fundamentais da República. Ainda que assim não fosse interpretada a questão exposta nos presentes autos, verifica-se da documentação instrutória do recurso que para o Curso de Letras a Apelada ofereceu 326 vagas, distribuídas entre os dois vestibulares (SADE, para alunos da rede pública, e o Vestibular Estadual 2003, para alunos que estudaram em escolas particulares). A Apelante concorreu a esse último, ou seja, a 163 vagas, optando pelas subopções G1 e G2, havendo para cada uma a oferta de 18 vagas. Ocorre que no cômputo final de pontos veio a alcançar, na sua melhor colocação, na opção G2 a 57ª posição, o que deixa evidenciado que mesmo que não houvesse a reserva de cota para negros e pardos não alcançaria classificação, razão pela qual, nega-se provimento ao recurso, mantendo-se in totum a decisão hostilizada.

II.VI. Posicionamento do movimento social (movimento negro) sobre o tema: petição de amicus curiae.

O Amicus Curiae é o "amigo da Corte", aquele que lhe presta informações sobre matéria de direito, objeto da controvérsia. Sua função é chamar a atenção dos julgadores para alguma matéria que poderia, de outra forma, escapar-lhe ao conhecimento. Um memorial de amicus curiae é produzido, assim, por quem não é parte no processo, com vistas a auxiliar a Corte para que esta possa proferir uma decisão acertada, ou com vistas a sustentar determinada tese jurídica em defesa de interesses públicos e privados de terceiros, que serão indiretamente afetados pelo desfecho da questão [15].

Foi exatamente isso que fizeram diversas entidades do movimento negro brasileiro, ao invés de cruzar os braços e, passivamente, aguardar as decisões a serem proferidas pelos tribunais, quando um deputado estadual propôs no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro duas Representações por Inconstitucionalidade, bem como quando a Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino – CONFENEN fez o mesmo perante o Supremo Tribunal Federal (uma Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI) contra as pioneiras leis que instituíram o ingresso diferenciado e permanência para negros na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Nesse cenário emergiu a citada figura do amicus curiae ("amigos da Corte") utilizada por um conjunto de organizações do Movimento Negro, nos anos 2003 e 2004, para defender os direitos da comunidade negra. Por exemplo, no caso da manifestação (memorial) apresentada perante o Supremo Tribunal Federal [16], de alguma forma inspirada nos amicus cuirae brief apresentados no caso da Universidade de Michigan perante a Suprema Corte dos EUA, enfatizou uma redefinição dos conceitos jurídicos em face das modificações da realidade, ou seja, buscou produzir uma peça jurídica que primasse pela interdisciplinaridade com as Ciências Sociais.

O Supremo Tribunal não chegou a apreciar as alegações contidas na petição apresentada pelas entidades do Movimento Social Negro, pois a ação foi extinta por falta de objeto, conforme já mencionado. Contudo, a iniciativa surtiu efeito positivo, pois inspirou a Advocacia-Geral da União (AGU), que obrigatoriamente participa da ADI, a produziu um parecer inteiramente favorável às leis estaduais reputadas inconstitucionais. No entendimento da Advocacia-Geral da União foram "irretocáveis as razões apresentadas pelas entidades amicus curiae em defesa da constitucionalidade dos dispositivos impugnados".

Sobre o autor
Luiz Fernando Martins da Silva

advogado, ex-diretor e assessor jurídico do Instituto de Pesquisa e Culturas Negras e do Centro Brasileiro de Informação e Documentação do Artista Negro

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Luiz Fernando Martins. As políticas públicas de ação afirmativa e seus mecanismos para negros no Brasil e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico nacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 598, 26 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6357. Acesso em: 3 dez. 2024.

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