CAPÍTULO II – O ORDENAMENTO JURÍDICO
2.1 – O Sistema de Direito Positivo
Para introduzir este assunto, reemprega-se a conceituação encetada na introdução, na qual se diz que sistema é um conjunto unitário integrado por diversas subpartes, as quais se interrelacionam harmoniosamente com base em certos princípios, os quais as mantém integradas.
Corroborando com esta assertiva, segue abaixo uma definição léxica de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, para quem, sistema é:
1. Conjunto de elementos, entre os quais haja alguma relação. 2. Disposição das partes ou dos elementos de um todo, coordenados entre si, e que formam estrutura organizada. 3. Reunião de elementos naturais da mesma espécie. 4. Método, plano. 5. Modo, jeito. 6. Modo de governo, de administração, de organização social. [...]. (FERREIRA, 2002, p. 639)
Ressalta-se que, “a noção de sistema deve estar presente na mente do jurista, mesmo considerando a técnica da separação didática dos ramos do Direito, e além disso, do ponto de vista da ciência, o Direito é uno” (CARDOSO, 2009, p. 50).
Na mesma linha de raciocínio, Dirley da Cunha, apresenta o conceito de sistema com um enfoque mais jurídico do assunto, ao consignar que:
tem-se por sistema o conjunto ordenado e organizado de partes (normas jurídicas) componentes de um todo unitário, relacionadas entre si e interdependentes. O sistema jurídico consiste exatamente na reunião ou composição, numa perspectiva unitária, ordenada e organizada, coerente e harmônica, das diversas unidades normativas. – Grifo no original - (CUNHA JR., 2011, p. 34)
Posto isto, resulta esclarecido que o Ordenamento Jurídico é um sistema de normas oriundas do direito positivo.
2.1.1 – Os Princípios no Âmbito do Direito Positivo
Deveras, todo jurista ao encetar o tema “princípios”, inicia por destacar que referido termo é equívoco, porquanto apresenta uma pluralidade de significados. Outro ponto de consenso reside na ideia de que o termo em apreço exprime a noção de início. No sentido etimológico, apontado pelo tributarista Roque Antônio, princípio: “(do latim principium, principii) encerra a idéia de começo, origem, base. Em linguagem leiga é, de fato, o ponto de partida e o fundamento (causa) de um processo qualquer.” (sic) (CARRAZA, 2008, p. 36)
Para Maurício Godinho, princípio: “significa, ainda, ‘proposição elementar e fundamental que serve de base a uma ordem de conhecimentos’ e, nesta dimensão, ‘proposição lógica fundamental sobre a qual se apóia o raciocínio’” (DELGADO, 2006, p. 184).
Referido assunto, ganha importância na medida em que o estudo das normas é indissociávela da ideia de sistema (neste caso, diz-se princípios em relação ao sistema de direito positivo), os quais, por conseguinte, são estruturados sob certos princípios, dai a relevância de se analisar os princípios.
Observe-se que: “na presente análise, os princípios serão considerados em face do Direito, contudo, os princípios também guardam relação com a autonomia científica[7], a qual só se verifica quando um determinado ramo do saber passa a se sustentar por princípios prórpiros” (CARDOSO, 2009, p. 6).
Ademais, segue a definição mais recorrentemente citada, a do professor Celso Antônio Bandeira de Mello, onde se diz que princípio:
é, por definição mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo. (MELLO, 2008, pp. 942-943)
Outrossim, importa aduzir que no âmbito do sistema de direto positivo, existem às normas que em seu conjunto compõem o sistema. Contudo, daí surge um problema, pois, parte da doutrina entende que às normas são regras e princípios.
Notadamente a doutrina majoritária classifica às normas como gênero das subespécies regras e princípios, nesse sentido (Dirley da Cunha Júnior, Roque Antônio Carraza, Paulo Bonavides e outros), na via oposta, encontra-se José Afonso da Silva, o qual, ao afirmar sua posição se vale de um escólio do eminente professor J. J. Gomes Canotilho, onde leciona que no sistema há normas e princípios. No entanto, ao fazê-lo adverte que o autor citado por ele divergiu no assunto em trabalhos distintos (SILVA, 2011, p. 92). Ora, a própria ressalva do autor enfraquece seu argumento.
Assim, para o presente estudo, opta-se por evitar o dualismo, portanto, adota-se a corrente majoritária, para a qual o sistema é composto por normas, a saber: normas-regras e normas-princípios, às quais interagem e mantém o sistema integrado como um todo unitário, sendo certo que suas subpartes interagem harmonicamente no afã de cumprirem o desiderato do sistema.
2.1.2 – A Unidade do Sistema
A essa altura, é intuitivo reconhecer que o direito é um sistema de normas, ou seja, de regras e princípios, sendo às regras os dispositivos expressos em texto de lei (comandos genériocos e abstratos); já os princípios, nem sempre se encontram positivados em norma, em geral possuem maior abstração do que uma regra.
Depreende-se, que ambas as espécies de normas interagem para reger condutas humanas a fim de garantir a harmonia e a paz social.
Para desenvolver este tópico, sintetiza-se às ideias mais aprofundadas na monografia “a atuação axiológico-normativa dos princípios no sistema de Direito Positivo brasileiro”[8], assim, conforme analisado em referido trabalho, o pressuposto fundamental de um princípio é a compatibilidade lógica das ideias que integram esse conjunto de elementos.
Nesse contexto, “se houver alguma incompatibilidade lógica entre as ideias de um mesmo sitema científico, duvidosas se tornam as referidas ideias, os fundamentos do sistema e até mesmo o próprio sistema” (DINIZ, 2003, p. 17)
Outrossim, há de se ter em vista a advertência de Paulo de Barros, quanto a pluralidade de sentidos da expressão “sistema”, onde se diz que:
Sistema jurídico é expressão ambígua que, em alguns contextos, pode provacar a falácia do equívoco. Com esse nome encontramos designados tanto o sistema da Ciência do Direito quanto o do direito positivo, instaurando-se certa instabilidade semântica que prejudica a fluência do discurso, de tal modo que, mesmo nas circunstancias de inocorrência de erro lógico, a compreensão do texto ficará comprometida, perdendo o melhor de sua consistência. (CARVALHO, 2003, p. 130)
De certo, as regras e princípios integram o sistema de Direito Positivo, como visto. Entretanto, imperioso se afigura que o sistema do qual ora se trata é o de normas e não o da Dogmática.
Em relação à correlação regra-princípio, Rizzatto Nunes, desta que: “os princípios situam-se no ponto mais alto de qualquer sistema jurídico, de forma genérica e abstrata, mas essa abstração não significa inincidência no plano da realidade”. (NUNES, 2008, p. 182)
Miguel Reale, por sua vez, destacou que os princípios são alicerces do sistema, de sorte que o estabiliza, visto que: “princípios são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”. (REALE M. , 1999, p. 60)
Outra noção doutrinária importante e, por certo bastante correta é assertiva de Antônio Cappi e Carlo Crispim Baiocchi Cappi, ao asseverar que: “o Direito, como qualquer cálculo lógico, seria um sistema científico axiomático formal, unitário, coerente e completo”. (CAPPI, 2004, p. 61) Notadamente, referida obra aborda o caráter lógico do sistema, haja vista que o Direito também pode ser concebido como um sistema lógico linguistico, tal como a matemática.
Corolário disso, nota-se que o Direito Positivo é um verdadeiro sistema, que funciona de forma coerente e harmônica na consecução da regulamentação da conduta humana no âmbito social.
2.1.3 – Edição de Normas
Assente o conceito de sistema de direito positivo, importa observar como nascem às normas jurídicas. Para tanto, vem a tona a ideia de separação das funções estatais em legislativa, executiva e judicial, sendo que, a atividade legiferante compete por óbivio ao Legislativo. Referida divisão, inicialmente esboçada por Aristóteles de Estagira (384 a 322 a.C.) e aperfeiçoada por Montesquieu em sua obra “De L’esprit des Lois” – “O Espírito das Leis” – (1689 a 1755), vem sendo reconhecida pelo Constitucionalismo como uma das exigências básicas de um verdadeiro Estado Democrático.
A par disso, sabe-se que a atividade legislativa, por óbvio pertence ao Legislativo, todavia, é imprescindível que referido mister seja desempenhado com regras precisas e claras a fim de que haja um rigor metodológico na elaboração das normas, com vistas a assegurar o interesse do povo, e a este processo atribui-se o nome de “processo legislativo”.
Com efeito, o Poder Legislativo realiza sua atividade típica de editar leis e para tanto, observa às regras atinentes ao processo legislativo, às quais se encontram previstas na Constituição, nos artigos 44 ao 69.
Eis que, conforme bem leciona o professor Dirley:
O processo legislativo pode envolver, basicamente, três procedimentos. Entende-se por procedimento o rito ou a forma de tramitação das propostas legislativas. A Constituição contempla: 1) o procedimento ordinário; 2) o procedimento sumário; e 3) os procedimentos especiais. (CUNHA JR., 2011, p. 1023)
Uma característica importante do processo legislativo, consiste na inovação da ordem jurídica, visto que, ao elaborar-se uma nova lei cria-se um direito novo, tutela-se uma nova conduta no meio social e, referida prerrogativa é pertencente (em sua forma típica) unicamente ao Legislativo.
É bem verdade que o Executivo e o Judiciário editam atos infranormativos, contudo, como o próprio nome sugere, tais atos encontram-se subordinados às leis e, por conseguinte, não inovam a ordem jurídica, mas apenas a regulamentam no sentido de conferir-lhe aplicabilidade.
Outrossim, em relação ao processo legislativo, pondere-se em linhas gerais suas fases internas[9], sendo elas:
a) apresentação do projeto, que, em regra, ocorrerá perante a Câmara dos Deputados [...]; b) exame do projeto pelas comissões permanentes, que emitirão pareceres a respeito; c) deliberação ou votação; e d) revisão na casa legislativa revisora, que, em regra, será o Senado, onde se repetirão todas as fases anteriores. (CUNHA JR., 2011, p. 1023) – [grifo no original]
Acresce-se, ainda, que às fases relacionadas à deliberação, são denominadas de fase constitutiva e a fase da promulgação e da publicação (que lhes são subsequêntes), são denominadas fase complementar, conforme lição de Pedro Lenza (2008, p. 406 a 409).
Outro dado dígno de nota, está relacionada às espécies normativas, às quais encontram-se insculpidas no bojo do artigo 59 da Constituição da República, quais sejam: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decreto legislativo e VII – resoluções. Observando-se que competirá à lei complementar dispor sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis (nos termos do parágrafo único do citado dispositivo).
Ressalta-se que, a lei é instituída para viger, de modo que, em regra, uma lei deve viger até que outra a revogue ou modifique (artigo 2º, do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1.942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), ressalvado às leis temporárias e excepcionais, ex vi legis artigo 2º e parágrafo único, do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1.940 (Código penal).
Pondere-se, ainda, que a norma terá sua vigência, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1.942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), depois de 45 (quarenta e cinco) dias oficialmente publicada e nos Estados estrangeiros, onde admitida, sua obrigatoriedade ocorrerá 3 (três) meses, depois de oficialmente publica. Destarte, o professor Fernando da Costa pondera o seguinte a respeito da vacatio legis:
Depois de elaborada, promulgada e sancionada, a lei é publicada. Mas, mesmo publicada, ela só começaa viger, via dee regra, depois de certo lapso de tempo, suficiente para se tornar conhecida. Esse lapso de tempo – vacatio legis – varia [...]. (TOURINHO FILHO, 1995, p. 89)
Quanto às espécies normativas é possível aduzir no sentido de que haja alguma hierarquia entre elas, com base na denominada “pirâmide de Kelsen”, mas não há consenso na doutrina se haveria ou não hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária, entretanto, entendemos que sim, posto que há distinção quanto o modo de elaboração de referidas normas e em alguns temas específicos o próprio legislador constituinte originário exigiu especificamente esta ou aquela modalidade normativa. Outrossim, conforme citado no parágrafo anterior, compete à lei complementar dispor sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis, ora, por referida circunstância, não resta dúvida de que a lei complementar deve ser reputada como hierarquicamente superior à lei ordinária.
Portanto, uma vez editadas, às normas jurídicas passam a compor o sistema de direito positivo, estando apta a reger condutas, criar direitos, prerrogativas e sujeições; garantindo ou restringindo interesses, bem como transendo novo regramento no seio socioal.
2.2 – As Antinomias e a Auto-integração das Normas
É importante salientar que, no âmbito do sistema de direito positivo, quando da análise de um caso em concreto é possível que o hermenêuta se depare com um determinado fato que aparentemente apresente mais de uma solução normativa possível. A este fenômeno normativo atribui-se o nome de antinomia.
Ab initio, convém destacar que tal qual o fenômeno da antinomia os denominados critérios de integração da norma jurídica, previstos no artigo 4º, do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1.942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) – analogia, costumes e princípios gerais de direito – em que pese o fato de igualmente auxiliarem quanto a aplicação da norma têm cabimento voltado para a hipótese de omissão da lei, pois, se eventualmente a lei for omissa, por outro lado o sistema não o é, de sorte que o próprio ordenamento jurídico vislumbrou a existência de tais institutos a fim de auto-integrar a norma e, por conseguinte, viabilizar solução em referidos casos.
Ora, evidentemente tais instrumentos não se aplicam para às hipóteses de antinomia, haja vista que neste último caso a lei não é omissa, antes pelo contrário, há em tese mais de uma norma possível a ser aplicada ao caso concreto. Depreende-se desta assertiva que o fenômeno da antinomia é solucionado por critérios próprios.
Observe-se, que para a caracterização da ocorrência do fenômeno da antinomia, são necessários alguns requisitos específicos, tais como apontado por Adriana:
são necessários os seguintes pressupostos: a) que sejam jurídicas; b) que estejam vigorando; c) que estejam concentradas em um mesmo ordenamento jurídico; d) que emanem de autoridades competentes num mesmo âmbito normativo, prescrevendo ordens ao mesmo sujeito; e) que tenham comandos opostos, por exemplo, que uma permita e a outra obrigue dada conduta, de forma que uma constitua a negação da outra; f) que o sujeito a que se dirigem fique numa situação insustentável. (ESTIGARA, 2005)
Feitas tais considerações, passa-se agora para a os critérios específicos para a solução dos casos de antinomia. Assim, com base no escólio do eminente Norberto Bobbio, tem-se o seguinte:
As regras fundamentais para a solução das antinomias são três:
a)o critério cronológico;
b)o critério hierárquico;
c)o critério da especialidade. (BOBBIO, 2014, p. 94)
Evidentemente, os respectivos nomes dos critérios apontados sugerem seu conceito, assim, verifica-se: a) critério cronológico – lex posterior derogat priori; b) critério hierárquico – lex superior derogat inferiori, e c) critério da especialidade – lex specialis derogat generali.
Ressalta-se, ainda, que para referido autor, podem ocorrer às antinomias solúveis (aparentes), ou às insolúveis (reais) (idem, ibidem). Corolário disso, é possível cogitar em uma possível antinomia quanto ao regramento a ser aplicado na norma penal-processual penal híbrida, pois, para o direito penal vigora o princípio da retroatividade benéfica, enquanto que no direito processual penal vigora o princípio do tempus regit actum, seja como for, o tema será melhor apreciado no capíto III.